I
Qualquer interessado por assuntos de cultura, sabe identificar na matriz
cultural europeia, duas influências conformadoras, a grega e a judaica, no que concerne à forma como olhamos o tempo.
O tempo circular grego e o tempo linear judaico-cristão estão na
base da nossa contextualização do tempo, do fenómeno temporal.
No tempo grego, observa-se a circularidade, a repetição dos
mesmos ciclos, o eterno retorno projecta a sua sombra sobre a realidade fazendo cair como cacimba matinal, a náusea do sem sentido, propositada na Grécia antiga. Cumpria a função de fazer sedimentar na mente colectiva uma forma de olhar trágica e épica sobre o mundo, sobre o real.
Por isso eram os gregos considerados as crianças da Antiguidade
mas com uma sabedoria fatal, sobre a existência (como o notam Platão e
Nietzsche).
A cultura judaica organiza linearmente o tempo entre o Génesis e
a Revelação, e depois desta invenção, já não era possível voltar atrás.
Já não conseguimos nem queremos conseguir planear uma vida em
que aos avanços corresponderão os retrocessos, ao esforço corresponderá mais esforço e martírio (e hoje Sísifo, Tântalo, Atlas, Filoctetes, etc. são cada vez mais incompreensíveis para a nossa forma de pensar) num absurdo que nenhuma acção justifica a não ser numa dinâmica de auto-sacrifício abnegado.
O tempo linear é devedor de uma divindade monoteísta, e essencialmente histórica.
Jeová é o Deus dos judeus, um deus do tempo, da narrativa, e o
único. É um deus que se revela na História e revela o seu plano, o de santificar o seu nome perante a Humanidade. Esta concepção de tempo é portanto uma invenção sem paralelo, é uma temporalidade teleológica, se bem que a antiguidade grega tenha tido tentativas de conformação teleológica como é o caso da Teoria das Ideias platónica ou as eras de Hesíodo. A própria narrativa que inaugura a historiografia europeia, de Heródoto, nos apresenta uma bela narrativa, árida, circular, exausta pelos ciclos que descreve.
II
A mundividência ocidental contemporânea, como em tudo o que lucrativo,
apropria-se e conforma na mente colectiva, os piores lados de ambas as
concepções de tempo. O tempo do eterno retorno e da mortificação cíclica sem sentido aparece nos pequenos ciclos, na abordagem sacrificial permanente que se incute no compromisso ontológico dos sujeitos, sejam as oito horas de trabalho abstracto até à reforma, os avanços e retrocessos civis, a ideia tão cristã de progresso, com a sua aparente evolução tecnológica, que se fosse verdadeira já teria reformulado várias vezes os laços sociais que ainda perduram, inutáveis como só a biologia evolutiva pode comprovar.
Tudo o que implique sacrifício sem sentido do sujeito, abnegação acéfala e conformidade, e temos a circularidade do tempo como dado adquirido e
inquestionável.
No entanto, sem um aditivo, esta metafísica não funcionaria, pois a sua eficácia depende da adesão à mundividência ovina que propõe. Para que
o hamster não se sinta na girândola o tempo linear da Revelação revela-se como um tempo de translação em órbita elíptica no qual as eras parecem querer reflectir um avanço efectivo do curso humano, ainda que corresponda apenas ao movimento aparente do Sol.
Ou seja, o sujeito é manipulado a aceitar a vida como uma sucessão cíclica de dores e prazeres, geralmente dores, com os exercícios de auto-sacrifício maquinal, mas para que não se sinta preso como pião em caixa de
sapatos, projecta-se a esperança para um futuro não muito próximo, submissa às vicissitudes de uma suposta natureza humana, que facilmente o sujeito aceita devido a uma compreensão superficial do mundo, incutida a palmadinhas nas costas através de uma máquina de propaganda, e de uma historiografia que prefere narrar uma sucessão de revoluções, e não as condições do surgimento dessas revoluções ou os processos contrarrevolucionários consequentes.
Onde todo e qualquer avanço real nas condições de vida e concretização da sua possibilidade é feito a conta gotas. Esta crença na roda da fortuna e na lentidão do progresso social, é a maior violência, do maior cinismo, e a maior condição de menorização e alienação da população pois está na
base de um compromisso ontológico que justifica o conservadorismo, de duas formas.
Uma, que consiste em embotar a linha vermelha da revolta, aquela
que ultrapassada nos obriga a não continuarmos passivos, a outra que consiste em olhar para as coisas, para os eventos como uma ordem lenta e inexorável, quase independente da vontade humana, onde a tradição desempenha uma importância determinante e grave.
Apenas no rompimento deste compromisso ontológico se pode
almejar fazer nova revolução. Só através da violência pode isto ser
possível.
No caso concreto português, o conforto do compromisso ontológico, isto é, a crença acarinhada por maior parte da população acerca de um funcionamento do mundo, faz sempre de cada protesto, um exercício de vaidade civil, onde se joga segundo as regras do nosso carrasco. Isto é, mira-se a residência do Presidente da República ao som de cantorias, agendam-se greves para conveniência de feriados e fins de semana, opta-se por um exercício de preocupação pela imagem perante os outros. O que retira razão de ser ao protesto. Se se protesta, isto é, se uma indignação força a que se faça algo, então é para se fazer. Caso contrário mais vale conter a raiva, ou as palavras de ordem que exigem uma revolução mitigada na qual o sistema opressivo não desaparece mas paga um pouco melhor para se continuar no torpor de tempos recentes, que moldaram o presente.
III
As revoluções são cíclicas, o que mostra uma dinâmica, não como se faz crer, de progresso, de maior liberdade em maior liberdade, mas de dinâmicas de restauração, pois se hipoteticamente a história é uma luta de classes, a exploração do homem pelo homem é a vitória da classe conservadora.
Dividir a atenção por acontecimentos marcantes, como se se
tratasse de uma marcha da liberdade embota a noção de que há uma exigência de uma revolução final e duradoura, uma revolução que acabe com todas as revoluções, caso contrário não vale a pena sair à rua. De que adianta mitigar a exploração vil do homem pelo seu semelhante, com preço de sangue, se no espaço de umas gerações tudo volta quase ao mesmo, como Sísifo empurrando o rochedo montanha acima.
Surge assim a erupção revolucionária como o romper da
normalidade, como se o uso da guilhotina fosse por si só um ponto de viragem um anacronismo da pasmaceira de todos os períodos não revolucionários, anteriores e posteriores.
É assim a acção violenta apresentada como um rompimento de um
suposto tecido de normalidade, um abuso excessivo e intolerável decorrente de um sistema que porventura seria corrigível.
Não é apresentada na maior parte das vezes, como a violência que
decorre da violência da demissão de revoluções anteriores, ou como a
consequência da insidiosa acção de exploração e opressão.
Tendemos a esquecer que qualquer ponto de partida é já um ponto
de chegada e que essa erupção revolucionária é a coacção da consciência de que não se pode mais ficar passivo perante a violência que em surdina,
implicitamente sempre gera estes focos de alívio.
São assim todas as revoluções a válvula de escape legitimadora da opressão do homem pelo homem, perante a qual se tentam estabelecer leis que impeçam ou mitiguem efeitos, que mais não fazem que dissipar o calor da revolta, ingenuamente, a lei é uma armadilha para os parvos. A lei mais constante de todos os códigos é curiosamente ou não a lei da
propriedade.
IV
Podemos ficar impávidos e serenos perante a fatalidade destes ritmos históricos e sociais, ou podemos afiar a nossa indignação.
O princípio de razão suficiente aplicado ao sujeito, como razão
da sua própria existência, e o princípio de identidade como formulador da sua (sujeito) unicidade, irrepetibilidade, forjam uma ideia que torna inaceitável a nossa passividade.
Quantas vidas no passado, presente e futuro, foram perdidas para que nos deixemos dar ao luxo de nada fazer senão passar ‘como cão por vinha
vindimada’ perante a repetição dos mesmos ritmos de revolução/reacção?
Como aceitar a perda de algo único e repetível, como a vida de um ser, que se sacrificou pelo amor aos outros?
Como viver com a culpa de deixar assorear o seu legado?
Como se pode viver sabendo que a nossa dependência da alienação, produzirá futuramente novas vítimas?
A aceitação cobarde desta inacção é sinónimo sine qua non de um
compromisso ontológico no qual se aceita a opressão, se aceita que outros lutem ou tenham lutado por nós, que é natural haver fluxos e refluxos na história política e social da Humanidade.
Quem é afinal o verdadeiro ser civilizado, aquele que tanto vai
a uma manifestação mostrar a sua indignação para outros verem como vai à praia em dia de legitimação eleitoral de poderes corruptos, ou aquele que se organiza e almeja de forma violenta a não repetição dessa corrupção, muito além da violência contra lojas, mas de forma realmente insurrecta e
organizada?...
O cavalgar a sociedade por parte das elites motivadas pela
manutenção do status quo, é o grande Terror, a hecatombe lenta, inexorável, por vezes adoçada com a corrupção do conforto, a eugenia metódica, cínica e atávica que deveria estar muito além da citada linha vermelha da nossa indignação.
O que está na base desta violência subterrânea mas omnipresente baseia-se no ancião mecanismo de fingir que está tudo bem até ao crime, quando na realidade os crimes são sempre resultado da corrupção, e assim cada revolução é a sua própria anulação se não for uma revolução final, pois cada revolução é o atestado de que a anterior não resultou, e que todas as que se seguirão apenas serão temporárias.
V
A corrosão da conformidade, a corrosão do conforto são os vícios que corroem a República e a Europa. Vejo os pavões retóricos que servem os partidos que têm ganho com quase 4 décadas de 'democracia responsável', com fatos de seda e camisas engomadas, com base no rosto e cabelos bem penteados, unhas bem tratadas e pompa nos gestos e pergunto-me se a democracia ocidental terá hoje a mesma convicção nos princípios que tem com a aparência. Os oprimidos vivem narcoticamente sob o vício do juízo, julgam pela aparência, para poderem decidir quem lhes trata do futuro, ou assim pensam.
Presos ao tempo linear do progresso científico a conta gotas planeado, e ao tempo circular papagueado como condição de uma existência que tem de ser paga, vejo os servos que acham que têm algo a perder, além da sua dignidade no amor ao próximo, o seu conforto e mundo de espectáculo, com gordura circulando nas veias e infantilidades saindo da boca. A maior conquista do senhor foi conseguir que o servo se apercebesse da prisão de veludo e tivesse vontade dela sair.
A liberdade paga-se e Robespierre sabia-lo.
E paga-se caro.
VI
A maior violência consiste não no operar da guilhotina, mas na manipulação da apreensão da realidade, que apenas inicia outro ciclo opressivo. O burguês odeia a populaça tomada como truculenta e dada à violência que mais não escorre senão do desespero, e da falta de esperança no futuro bem como da crença clara de viver um momento único, mas que no cômputo geral das coisas tem efeitos limitados.
Todo e qualquer acto que tenha provocado estorvo ou dolo ao
cidadão, por parte do Estado é um acto de violência. O dar a outra face é criar a condição para a próxima violência. Manifestações pacíficas são dar a outra face. Repito, dar a outra face é a violência que gera a próxima agressão.
Uma resposta não violenta à violência é um acto violento gerador de violência.
A aceitação desta violência é uma contribuição para a
guilhotina.
Robespiérre não foi violento. Não teve escolha, de acordo com o
seu projecto de acabar com a violência. Violentos são os promotores de
revoluções, os que criam as condições e os que as promovem. Os governos
conservadores são os promotores de revoluções, lenta e ardilosamente adequando ao tempo do progresso falacioso a legislação que mais não é que a ferramenta supostamente neutra do contrato social. A cada conquista, os supostos representantes sedimentam-se acomodam-se e organizam-se, labutando pacientemente para contornar a brutalidade das conquistas
revolucionárias.
É mais visível uma cabeça decepada que um sem abrigo que morre
anónimo na rua, e por isso dizemos que preferimos tudo ao caos, mas é apenas uma questão de visibilidade do real.
Nada se alterará sem violência. A violência é o único argumento
politicamente útil, afirmar o contrário é cair na ingenuidade que garante a
opressão, ergo a violência.
VII
O célebre debate entre Cunhal e Soares, só foi vital no seu contexto, não nos argumentos apresentados. Mas foi por causa da presença de duas forças dispostas a exercer violência. Estas massas são invocadas através de ideologia, isto é através da apreensão manipulada da realidade a que o sujeito escolhe aderir. A opção posterior pelo até hoje resistente comportamento responsável, pelo arco governativo, em detrimento do mais radical dos radicalismos revolucionários, criou as condições para a violência que sentimos hoje, e cujo principal efeito é já não acreditar em revoluções que não seja a semi final, a guerra civil.
A aceitação do compromisso ontológico dominante ou generalizado,
é uma violência que cada sujeito único e irrepetível faz a si mesmo e aos outros por amor do seu conforto e seus grilhões.
Coloquem-se de novo cravos nas espingardas, ou deixem-se
donzelas pernoitar em fotos com elementos policiais instrumentais ao serviço da repressão, ao fazermos o que sempre temos feito, vamos obter o que sempre temos obtido.
Qualquer interessado por assuntos de cultura, sabe identificar na matriz
cultural europeia, duas influências conformadoras, a grega e a judaica, no que concerne à forma como olhamos o tempo.
O tempo circular grego e o tempo linear judaico-cristão estão na
base da nossa contextualização do tempo, do fenómeno temporal.
No tempo grego, observa-se a circularidade, a repetição dos
mesmos ciclos, o eterno retorno projecta a sua sombra sobre a realidade fazendo cair como cacimba matinal, a náusea do sem sentido, propositada na Grécia antiga. Cumpria a função de fazer sedimentar na mente colectiva uma forma de olhar trágica e épica sobre o mundo, sobre o real.
Por isso eram os gregos considerados as crianças da Antiguidade
mas com uma sabedoria fatal, sobre a existência (como o notam Platão e
Nietzsche).
A cultura judaica organiza linearmente o tempo entre o Génesis e
a Revelação, e depois desta invenção, já não era possível voltar atrás.
Já não conseguimos nem queremos conseguir planear uma vida em
que aos avanços corresponderão os retrocessos, ao esforço corresponderá mais esforço e martírio (e hoje Sísifo, Tântalo, Atlas, Filoctetes, etc. são cada vez mais incompreensíveis para a nossa forma de pensar) num absurdo que nenhuma acção justifica a não ser numa dinâmica de auto-sacrifício abnegado.
O tempo linear é devedor de uma divindade monoteísta, e essencialmente histórica.
Jeová é o Deus dos judeus, um deus do tempo, da narrativa, e o
único. É um deus que se revela na História e revela o seu plano, o de santificar o seu nome perante a Humanidade. Esta concepção de tempo é portanto uma invenção sem paralelo, é uma temporalidade teleológica, se bem que a antiguidade grega tenha tido tentativas de conformação teleológica como é o caso da Teoria das Ideias platónica ou as eras de Hesíodo. A própria narrativa que inaugura a historiografia europeia, de Heródoto, nos apresenta uma bela narrativa, árida, circular, exausta pelos ciclos que descreve.
II
A mundividência ocidental contemporânea, como em tudo o que lucrativo,
apropria-se e conforma na mente colectiva, os piores lados de ambas as
concepções de tempo. O tempo do eterno retorno e da mortificação cíclica sem sentido aparece nos pequenos ciclos, na abordagem sacrificial permanente que se incute no compromisso ontológico dos sujeitos, sejam as oito horas de trabalho abstracto até à reforma, os avanços e retrocessos civis, a ideia tão cristã de progresso, com a sua aparente evolução tecnológica, que se fosse verdadeira já teria reformulado várias vezes os laços sociais que ainda perduram, inutáveis como só a biologia evolutiva pode comprovar.
Tudo o que implique sacrifício sem sentido do sujeito, abnegação acéfala e conformidade, e temos a circularidade do tempo como dado adquirido e
inquestionável.
No entanto, sem um aditivo, esta metafísica não funcionaria, pois a sua eficácia depende da adesão à mundividência ovina que propõe. Para que
o hamster não se sinta na girândola o tempo linear da Revelação revela-se como um tempo de translação em órbita elíptica no qual as eras parecem querer reflectir um avanço efectivo do curso humano, ainda que corresponda apenas ao movimento aparente do Sol.
Ou seja, o sujeito é manipulado a aceitar a vida como uma sucessão cíclica de dores e prazeres, geralmente dores, com os exercícios de auto-sacrifício maquinal, mas para que não se sinta preso como pião em caixa de
sapatos, projecta-se a esperança para um futuro não muito próximo, submissa às vicissitudes de uma suposta natureza humana, que facilmente o sujeito aceita devido a uma compreensão superficial do mundo, incutida a palmadinhas nas costas através de uma máquina de propaganda, e de uma historiografia que prefere narrar uma sucessão de revoluções, e não as condições do surgimento dessas revoluções ou os processos contrarrevolucionários consequentes.
Onde todo e qualquer avanço real nas condições de vida e concretização da sua possibilidade é feito a conta gotas. Esta crença na roda da fortuna e na lentidão do progresso social, é a maior violência, do maior cinismo, e a maior condição de menorização e alienação da população pois está na
base de um compromisso ontológico que justifica o conservadorismo, de duas formas.
Uma, que consiste em embotar a linha vermelha da revolta, aquela
que ultrapassada nos obriga a não continuarmos passivos, a outra que consiste em olhar para as coisas, para os eventos como uma ordem lenta e inexorável, quase independente da vontade humana, onde a tradição desempenha uma importância determinante e grave.
Apenas no rompimento deste compromisso ontológico se pode
almejar fazer nova revolução. Só através da violência pode isto ser
possível.
No caso concreto português, o conforto do compromisso ontológico, isto é, a crença acarinhada por maior parte da população acerca de um funcionamento do mundo, faz sempre de cada protesto, um exercício de vaidade civil, onde se joga segundo as regras do nosso carrasco. Isto é, mira-se a residência do Presidente da República ao som de cantorias, agendam-se greves para conveniência de feriados e fins de semana, opta-se por um exercício de preocupação pela imagem perante os outros. O que retira razão de ser ao protesto. Se se protesta, isto é, se uma indignação força a que se faça algo, então é para se fazer. Caso contrário mais vale conter a raiva, ou as palavras de ordem que exigem uma revolução mitigada na qual o sistema opressivo não desaparece mas paga um pouco melhor para se continuar no torpor de tempos recentes, que moldaram o presente.
III
As revoluções são cíclicas, o que mostra uma dinâmica, não como se faz crer, de progresso, de maior liberdade em maior liberdade, mas de dinâmicas de restauração, pois se hipoteticamente a história é uma luta de classes, a exploração do homem pelo homem é a vitória da classe conservadora.
Dividir a atenção por acontecimentos marcantes, como se se
tratasse de uma marcha da liberdade embota a noção de que há uma exigência de uma revolução final e duradoura, uma revolução que acabe com todas as revoluções, caso contrário não vale a pena sair à rua. De que adianta mitigar a exploração vil do homem pelo seu semelhante, com preço de sangue, se no espaço de umas gerações tudo volta quase ao mesmo, como Sísifo empurrando o rochedo montanha acima.
Surge assim a erupção revolucionária como o romper da
normalidade, como se o uso da guilhotina fosse por si só um ponto de viragem um anacronismo da pasmaceira de todos os períodos não revolucionários, anteriores e posteriores.
É assim a acção violenta apresentada como um rompimento de um
suposto tecido de normalidade, um abuso excessivo e intolerável decorrente de um sistema que porventura seria corrigível.
Não é apresentada na maior parte das vezes, como a violência que
decorre da violência da demissão de revoluções anteriores, ou como a
consequência da insidiosa acção de exploração e opressão.
Tendemos a esquecer que qualquer ponto de partida é já um ponto
de chegada e que essa erupção revolucionária é a coacção da consciência de que não se pode mais ficar passivo perante a violência que em surdina,
implicitamente sempre gera estes focos de alívio.
São assim todas as revoluções a válvula de escape legitimadora da opressão do homem pelo homem, perante a qual se tentam estabelecer leis que impeçam ou mitiguem efeitos, que mais não fazem que dissipar o calor da revolta, ingenuamente, a lei é uma armadilha para os parvos. A lei mais constante de todos os códigos é curiosamente ou não a lei da
propriedade.
IV
Podemos ficar impávidos e serenos perante a fatalidade destes ritmos históricos e sociais, ou podemos afiar a nossa indignação.
O princípio de razão suficiente aplicado ao sujeito, como razão
da sua própria existência, e o princípio de identidade como formulador da sua (sujeito) unicidade, irrepetibilidade, forjam uma ideia que torna inaceitável a nossa passividade.
Quantas vidas no passado, presente e futuro, foram perdidas para que nos deixemos dar ao luxo de nada fazer senão passar ‘como cão por vinha
vindimada’ perante a repetição dos mesmos ritmos de revolução/reacção?
Como aceitar a perda de algo único e repetível, como a vida de um ser, que se sacrificou pelo amor aos outros?
Como viver com a culpa de deixar assorear o seu legado?
Como se pode viver sabendo que a nossa dependência da alienação, produzirá futuramente novas vítimas?
A aceitação cobarde desta inacção é sinónimo sine qua non de um
compromisso ontológico no qual se aceita a opressão, se aceita que outros lutem ou tenham lutado por nós, que é natural haver fluxos e refluxos na história política e social da Humanidade.
Quem é afinal o verdadeiro ser civilizado, aquele que tanto vai
a uma manifestação mostrar a sua indignação para outros verem como vai à praia em dia de legitimação eleitoral de poderes corruptos, ou aquele que se organiza e almeja de forma violenta a não repetição dessa corrupção, muito além da violência contra lojas, mas de forma realmente insurrecta e
organizada?...
O cavalgar a sociedade por parte das elites motivadas pela
manutenção do status quo, é o grande Terror, a hecatombe lenta, inexorável, por vezes adoçada com a corrupção do conforto, a eugenia metódica, cínica e atávica que deveria estar muito além da citada linha vermelha da nossa indignação.
O que está na base desta violência subterrânea mas omnipresente baseia-se no ancião mecanismo de fingir que está tudo bem até ao crime, quando na realidade os crimes são sempre resultado da corrupção, e assim cada revolução é a sua própria anulação se não for uma revolução final, pois cada revolução é o atestado de que a anterior não resultou, e que todas as que se seguirão apenas serão temporárias.
V
A corrosão da conformidade, a corrosão do conforto são os vícios que corroem a República e a Europa. Vejo os pavões retóricos que servem os partidos que têm ganho com quase 4 décadas de 'democracia responsável', com fatos de seda e camisas engomadas, com base no rosto e cabelos bem penteados, unhas bem tratadas e pompa nos gestos e pergunto-me se a democracia ocidental terá hoje a mesma convicção nos princípios que tem com a aparência. Os oprimidos vivem narcoticamente sob o vício do juízo, julgam pela aparência, para poderem decidir quem lhes trata do futuro, ou assim pensam.
Presos ao tempo linear do progresso científico a conta gotas planeado, e ao tempo circular papagueado como condição de uma existência que tem de ser paga, vejo os servos que acham que têm algo a perder, além da sua dignidade no amor ao próximo, o seu conforto e mundo de espectáculo, com gordura circulando nas veias e infantilidades saindo da boca. A maior conquista do senhor foi conseguir que o servo se apercebesse da prisão de veludo e tivesse vontade dela sair.
A liberdade paga-se e Robespierre sabia-lo.
E paga-se caro.
VI
A maior violência consiste não no operar da guilhotina, mas na manipulação da apreensão da realidade, que apenas inicia outro ciclo opressivo. O burguês odeia a populaça tomada como truculenta e dada à violência que mais não escorre senão do desespero, e da falta de esperança no futuro bem como da crença clara de viver um momento único, mas que no cômputo geral das coisas tem efeitos limitados.
Todo e qualquer acto que tenha provocado estorvo ou dolo ao
cidadão, por parte do Estado é um acto de violência. O dar a outra face é criar a condição para a próxima violência. Manifestações pacíficas são dar a outra face. Repito, dar a outra face é a violência que gera a próxima agressão.
Uma resposta não violenta à violência é um acto violento gerador de violência.
A aceitação desta violência é uma contribuição para a
guilhotina.
Robespiérre não foi violento. Não teve escolha, de acordo com o
seu projecto de acabar com a violência. Violentos são os promotores de
revoluções, os que criam as condições e os que as promovem. Os governos
conservadores são os promotores de revoluções, lenta e ardilosamente adequando ao tempo do progresso falacioso a legislação que mais não é que a ferramenta supostamente neutra do contrato social. A cada conquista, os supostos representantes sedimentam-se acomodam-se e organizam-se, labutando pacientemente para contornar a brutalidade das conquistas
revolucionárias.
É mais visível uma cabeça decepada que um sem abrigo que morre
anónimo na rua, e por isso dizemos que preferimos tudo ao caos, mas é apenas uma questão de visibilidade do real.
Nada se alterará sem violência. A violência é o único argumento
politicamente útil, afirmar o contrário é cair na ingenuidade que garante a
opressão, ergo a violência.
VII
O célebre debate entre Cunhal e Soares, só foi vital no seu contexto, não nos argumentos apresentados. Mas foi por causa da presença de duas forças dispostas a exercer violência. Estas massas são invocadas através de ideologia, isto é através da apreensão manipulada da realidade a que o sujeito escolhe aderir. A opção posterior pelo até hoje resistente comportamento responsável, pelo arco governativo, em detrimento do mais radical dos radicalismos revolucionários, criou as condições para a violência que sentimos hoje, e cujo principal efeito é já não acreditar em revoluções que não seja a semi final, a guerra civil.
A aceitação do compromisso ontológico dominante ou generalizado,
é uma violência que cada sujeito único e irrepetível faz a si mesmo e aos outros por amor do seu conforto e seus grilhões.
Coloquem-se de novo cravos nas espingardas, ou deixem-se
donzelas pernoitar em fotos com elementos policiais instrumentais ao serviço da repressão, ao fazermos o que sempre temos feito, vamos obter o que sempre temos obtido.