O poder das palavras só surge por despeito das condições materiais insustentáveis em palheiro ignífugo a todo o hálito.
O poder das palavras só surge pelo completo desrespeito por uma norma e por uma decisão acerca da insustentabilidade desta intermitência.
Não espero portanto mudar o mundo ou criar culto entre corações envernizados, apenas deixar meia dúzia de folhas escritas que atestem que eu fui vivo em determinado tempo e espaço antes que o amarelo do finito desfaça o papel em átomos que voem ao vento.
Que algum dia algum desconhecido leia estas palavras minhas e o placebo traidor da minha vida perdure uns instantes como sombra de nuvem de chuva além da minha morte.
Chamo-me José tenho 37 anos e vivi os últimos onze meses da minha vida na rua de mão dada com a Estação de Santa Apolónia.
O meu plano é terminar esta confissão, embebedar-me uma última vez com vinho tinto barato em embalagem tetra park desbotada e matar-me.
Matar-me não. Pôr fim à vida do meu corpo, que morto já estou eu há dois anos, desde que perdi o emprego, a casa para o banco, a mulher a filha e o meu amor-próprio.
Não decidi ainda se me lanço da ponte, ou nos carris de Belém, onde os comboios circulam mais embalados. É-me indiferente de qualquer das formas, talvez choque meia dúzia de transeuntes, e lhes estrague o dia, mas sei que me ligam mais desfeito em bocados de carne que chorando e vomitando como agora rente ao chão por me sentir um pedaço de merda. Desviam o olhar e fingem não me ver como se eu fosse imperdoável responsável da perdição que se abateu sobre mim. Tratam-me como merda que nem um olhar merece, e sinto-me como merda.
Sou ou fui uma pessoa normal. Quero que penses de mim, que fui uma pessoa normal que se passou. Só as pessoas que se passam é que se matam.
Sempre fui o que se pode chamar de um pobre diabo. Que por mercê da sorte ou inferior condição genética, sou fraco de cabeça ante ti forte leitor com juízo na vida.
Passei-me e deixei de querer viver. Morro anónimo como enteado bastardo que te dá asco só de lembrar.
Cresci na primária a comer sandes de margarina Vaqueiro, pobre mas não tão pobre que não conseguisse disfarçar. É fodido pernoitar ininterruptamente neste limbo em que não se é totalmente pobre de morar em barraca, e não ser rico o suficiente para levar sandes de paio para o recreio. De uns têm os colegas e professores pena, de outros aceitam-nos como mínimo. Aqueles e aquelas como eu são castigados porque apenas parecem desleixados, e o andrajoso que nos cobre parece mesmo ser falta de asseio, cresci com raiva dos olhares que censuram e o meu pai cumpre a promessa de me expulsar de casa quando fui para a tropa, que acabando me lança na rua sem um ofício que não o de limpar as cagadeiras de sargentos e oficiais cuja dignidade de casta se eleva acima do cheiro.
Dou comigo a acartar baldes de massa e a receber os mesmos olhares reprovadores com excepção da que viria a ser minha mulher, pois já eu trazia um ordenado aceitável de servente.
Para aumentarem os lucros os empreiteiros contratam estrangeiros que ganham menos do que eu, e aos quais o Estado faz vista grossa na exploração por interessar à economia.
Boa noite e um queijo, ando dois anos no limbo do fundo de desemprego, e em formações da treta que nada me ensinam senão que há muita gente a ganhar à conta dos fundos da CEE para formação profissional.
O meu ex patrão anda de Mercedes e eu arranjo emprego a cortar erva à beira da estrada, o dinheiro mal dá para pagar a renda e a televisão que é o meu único prazer nesta vida de merda, e fico sem emprego e a minha mulher já andava estranha toda arranjada como nunca se arranjou para mim, e um dia fui bater na janela do carro do outro que tem um restaurante na Baixa e lhe pode dar mais conforto material que eu, andei com a filha ao colo para ela ter juízo e voltar assim, fiquei só, ela com a custódia da filha e eu que nunca soube seduzir uma mulher ou fazer alguma coisa de produtiva tenho os meus amigos aqui a partilhar um pacote tetra pack de tinto, cagando sentenças filosóficas sem consistência pela boca aproveitando o torpor alcoólico para desabafar que se existe um deus sarcástico lá em cima, gostaríamos de saber qual o pecado da nossa essência que nos fez merecer o castigo.
Assim sendo mandar-me-ei ao encontro de dois rodados de camião na 2º circular em hora de ponta de forma a incomodar-te a vida o máximo que me é possível, não porque te invejo mas porque me vês com a mesma solidariedade que esta vida que já nada tem que me cative.
O poder das palavras só surge pelo completo desrespeito por uma norma e por uma decisão acerca da insustentabilidade desta intermitência.
Não espero portanto mudar o mundo ou criar culto entre corações envernizados, apenas deixar meia dúzia de folhas escritas que atestem que eu fui vivo em determinado tempo e espaço antes que o amarelo do finito desfaça o papel em átomos que voem ao vento.
Que algum dia algum desconhecido leia estas palavras minhas e o placebo traidor da minha vida perdure uns instantes como sombra de nuvem de chuva além da minha morte.
Chamo-me José tenho 37 anos e vivi os últimos onze meses da minha vida na rua de mão dada com a Estação de Santa Apolónia.
O meu plano é terminar esta confissão, embebedar-me uma última vez com vinho tinto barato em embalagem tetra park desbotada e matar-me.
Matar-me não. Pôr fim à vida do meu corpo, que morto já estou eu há dois anos, desde que perdi o emprego, a casa para o banco, a mulher a filha e o meu amor-próprio.
Não decidi ainda se me lanço da ponte, ou nos carris de Belém, onde os comboios circulam mais embalados. É-me indiferente de qualquer das formas, talvez choque meia dúzia de transeuntes, e lhes estrague o dia, mas sei que me ligam mais desfeito em bocados de carne que chorando e vomitando como agora rente ao chão por me sentir um pedaço de merda. Desviam o olhar e fingem não me ver como se eu fosse imperdoável responsável da perdição que se abateu sobre mim. Tratam-me como merda que nem um olhar merece, e sinto-me como merda.
Sou ou fui uma pessoa normal. Quero que penses de mim, que fui uma pessoa normal que se passou. Só as pessoas que se passam é que se matam.
Sempre fui o que se pode chamar de um pobre diabo. Que por mercê da sorte ou inferior condição genética, sou fraco de cabeça ante ti forte leitor com juízo na vida.
Passei-me e deixei de querer viver. Morro anónimo como enteado bastardo que te dá asco só de lembrar.
Cresci na primária a comer sandes de margarina Vaqueiro, pobre mas não tão pobre que não conseguisse disfarçar. É fodido pernoitar ininterruptamente neste limbo em que não se é totalmente pobre de morar em barraca, e não ser rico o suficiente para levar sandes de paio para o recreio. De uns têm os colegas e professores pena, de outros aceitam-nos como mínimo. Aqueles e aquelas como eu são castigados porque apenas parecem desleixados, e o andrajoso que nos cobre parece mesmo ser falta de asseio, cresci com raiva dos olhares que censuram e o meu pai cumpre a promessa de me expulsar de casa quando fui para a tropa, que acabando me lança na rua sem um ofício que não o de limpar as cagadeiras de sargentos e oficiais cuja dignidade de casta se eleva acima do cheiro.
Dou comigo a acartar baldes de massa e a receber os mesmos olhares reprovadores com excepção da que viria a ser minha mulher, pois já eu trazia um ordenado aceitável de servente.
Para aumentarem os lucros os empreiteiros contratam estrangeiros que ganham menos do que eu, e aos quais o Estado faz vista grossa na exploração por interessar à economia.
Boa noite e um queijo, ando dois anos no limbo do fundo de desemprego, e em formações da treta que nada me ensinam senão que há muita gente a ganhar à conta dos fundos da CEE para formação profissional.
O meu ex patrão anda de Mercedes e eu arranjo emprego a cortar erva à beira da estrada, o dinheiro mal dá para pagar a renda e a televisão que é o meu único prazer nesta vida de merda, e fico sem emprego e a minha mulher já andava estranha toda arranjada como nunca se arranjou para mim, e um dia fui bater na janela do carro do outro que tem um restaurante na Baixa e lhe pode dar mais conforto material que eu, andei com a filha ao colo para ela ter juízo e voltar assim, fiquei só, ela com a custódia da filha e eu que nunca soube seduzir uma mulher ou fazer alguma coisa de produtiva tenho os meus amigos aqui a partilhar um pacote tetra pack de tinto, cagando sentenças filosóficas sem consistência pela boca aproveitando o torpor alcoólico para desabafar que se existe um deus sarcástico lá em cima, gostaríamos de saber qual o pecado da nossa essência que nos fez merecer o castigo.
Assim sendo mandar-me-ei ao encontro de dois rodados de camião na 2º circular em hora de ponta de forma a incomodar-te a vida o máximo que me é possível, não porque te invejo mas porque me vês com a mesma solidariedade que esta vida que já nada tem que me cative.