Nesta página radiante e plena de energia positiva, bem sei que venho mijar na parada.
Bem sei que vens aqui rever e matar saudades de pessoas, mas acima de tudo de um tempo em que eras mais jovem e o mundo te entrava com mais impacto pelo corpo dentro.
É natural que lembres com nostalgia esse tempo em que tudo parecia tão intenso e onde o teu corpo de jovem homem ou de promissora Afrodite te enchiam o peito de orgulho e confiança ilimitada no futuro.
Bem sei que és feliz agora, e ainda bem, mas também sabemos que não podes deixar de sentir um pouco de desejo de olhar para trás.
Bem sei que amaste aqueles tempos em que o coração batia mais depressa, os professores eram jovens como tu és hoje,. quando víamos todos os dias o grande e excelente ser humano Abel, e tínhamos uma adolescência com alguma inocência como hoje gostas de lembrar.
Bem sei que se calhar as responsabilidades de hoje, um trabalho, te condicionam, e que o espelho já não entoa palavras meigas para teus olhos.
Mas sei também que com toda a certeza, podes não concordar com nada do que vou dizer, e sustentar com razão que nada do que é narrado se passou contigo como experiência.
Que nada disto se passou na escola, que tenhas dado por isso.
Que estou a exagerar, que sou traumatizado, que a ter ocorrido nenhuma relevância tem, ou importância teve, ou ainda que faz parte da vida.
Peço--te portanto que tomes o que se vai seguir, como uma ficção, caberá ao coração de cada um lembrar se existe um lado negro da lua.
Estes pesos na balança, fazem erguer mais alto esse prato sinistro ou inquietante para alguns, e é desse prato que te venho falar hoje.
Quando olhamos para trás, a memória prega-nos partidas, faz por dourar e apagar o que de feio nos possa ter parecido. A memória é como detergente, que reafirma a nódoa na brancura, ou a apaga por completo.
Tendemos assim a esquecer o que de menos bom se passou. Eu não esqueço, nem quero esquecer.
O que se passou é uma porta para me conhecer a mim e aos outros e não a vou fechar, porque quero viver contigo num mundo a sério e não num mundo cor de rosa.
Irónico, dizer-te isto num texto apresentado na página sobre a nossa escola, ainda por cima no Facebook, que tem parte do sucesso que tem, devido ao facto de que começou nos EUA exactamente como forma de ex colegas poderem perceber o que os outros andavam a fazer na vida.
Num misto de curiosidade e saudade genuína, como de comparação e até ressabiamento em relação a pessoas que de certa forma se marcaram uns aos outros.
Mais irónico ainda, quando se lê nesta página que é dedicada aos míticos e aos não míticos, frase animada de boas intenções e desprovida de maldades, por certo mas que não deixa de inquietar numa distinção clara entre 'nós' e 'eles'.
Chama-me o que quiseres, todos os nomes e palavras feias que conheceres, tudo o que de vernacular te lembrares, mas eu vou dar uma versão que podes tomar como ficção, e que se encosta às tuas memórias e é como elas tão verdadeira.
Mesmo que não tenhas sentido ou experienciado o mesmo, deixa nascer em ti a suspeita de que a comichão estava lá.
A vida é uma mão com uma potente bofetada. A bofetada é pior que o murro.
Esmurrada a nossa cara, geralmente apagamos, e acordamos com uma dor de ressaca.
Com a bofetada, é toda a cara que arde, numa dor humilhante e persistente que te arde na carne, com um zumbido no ouvido que também persiste.
Esta é a história desse zumbido. Muitos chamam-lhe 'crescer'.
Eu não.
Se com 'crescer' os degraus que calcorreámos fazem parte de um caminho onde só importa a meta, eu não quero esquecer nada.
E quero que te lembres.
Tu que ainda o ouves sem lhe sentir já o som, podes descobrir o que ele contribuiu para o que és hoje, o que lhe deves.
Quem quer que diga que olhar assim para as coisas é doença, ou até ressabiamento, terá a minha bênção, mas também me revela que não tem capacidade para pensar reflexivamente ou por cenários.
E que reduz a realidade ao mínimo denominador comum que lhe é mais confortável, tanto quanto mais redutor for de forma a que não suscite problemas que lhe abalem a fé.
Então, aqui vamos, e desde já irmão e irmã, obrigado por nos leres.
Paz.
_____
A escola, é o ambiente mais classista, conservador e condicionante que existe.
É também o templo onde aprendemos a ser cidadãos, onde nos instruímos, e tudo isso.
É exactamente com uma moeda ou como a lua, tem dois lados.
Educa-nos, mas também nos deforma, em certo sentido.
Transforma-se cada vez mais no local onde os nossos filhos são depositados para absorverem por oito ou mais horas, grande quantidades de matéria, numa lógica clara de rentabilização.
Tal como uma fábrica onde até nem falta o toque para o recreio que emula o toque de fim de turno.
Não a escola enquanto ideia que nasce na Revolução Francesa, mas a escola como se tornou hoje. E há bons exemplos em Portugal de algumas escolas que tentam fugir a este modelo, e pasme-se, conseguem melhores resultados.
Mas não é da ideia de escola que quero falar.
Quero falar da escola onde vemos outros meninos e meninas que reflectem outras famílias.
Nos idos anos 80 eu via que alguns meninos não tinham uma roupa tão gasta como a minha e até já parecia de melhor qualidade.
Outros meninos e meninas tinham botas Botilde e galochas com olhinhos de sapo na biqueira, que eram a última moda de Inverno, contraposta à moda de Verão que havia sido uma argola que se enfiava no tornozelo e que ligava por um pequeno tubo de plástico a um limão sobredimensionado que roçava pelo chão quando a criança o fazia girar em torno do pé saltando sobre ele ao pé coxinho.
Outros meninos e meninas ainda olhavam para mim porque a minha roupa não era tão gasta como a sua, e os meus brinquedos eram melhores, um bocadinho melhores, e eu podia levar papo-secos de tulicreme e eles/elas apenas levavam carcaças com margarina Planta, ou no pior dos casos, Vaqueiro.
Não pensávamos sobre isto claro, só importava o pião, os bilas, a chinchada, as bonecas, a colecção de blocos de notas perfumados do Pierrot e outros, as guerras da calhauzada...etc.
E também se notava embora difusamente, que por mais que se esforçasse, o Professor não tratava da mesma maneira os meninos e meninas de mais bem, dos meninos e meninas de menos bem, embora se esforçasse imenso para tal.
Infelizmente não dependia dele, pelo menos conscientemente.
Se calhar ainda tens resquícios destes zumbidos na memória, se calhar não, se calhar é por isso que dás aos teus filhos hoje tudo o que podes e o que não podes, para que eles não sintam pitada do que possas ter sentido...ou não.
Fomos para a Preparatória.
Já alguns meninos levavam sandes com paio York.
Mantínhamos rivalidades aguerridas com a escola da Sacor, que agora é um hospital privado para gente com dinheiro, mas em particular com a escola do Catujal.
Em guerrilha urbana aberta, por dignidade ou para provar quais os mais duros, transformava-se a paragem da Bobadela em frente à pastelaria Torp,no Carnaval, um campo de batalha com munições de sacos com água inertes previamente arremessados contra os autocarros, farinha e ovos partidos.
A capacidade de improvisar asneira estava no zénite, ou assim parece agora.
Passávamos os dias quando podíamos a subir e descer numa novidade que era o elevador dos prédios da rua que levava à entrada da escola preparatória da Bobadela, tentávamos incendiar um carro estranho que era um Lótus branco de aspecto futurista acendendo fósforos para dentro de um dos seus dois depósitos de gasolina que se abriam facilmente.
Rebentávamos bombas de Carnaval bem potentes em tudo o que era lado, em claro frenesim tribal, jogávamos à bola com as couves e lombardos das desguarnecidas hortas circundantes.
Ouvíamos a música 'Final Countdown' dos Europe e olhávamos com alguma ansiedade para o futuro pois tínhamos entrado para uma coisa estranha chamada CEE.
Apanhávamos rãs que vendíamos na escola para depois ir comprar cromos e fascinados pela riqueza disponível, chegámos a roubar durante uma hora todas as canetas que pareciam de valor, dos estojos da criançada e professores que deixavam as portas abertas e estavam no intervalo.
Fomos apanhados porque a Sandra era memorável na sua roliça generosidade de carnes agraciada com o epíteto de 'Gordinha' e então apertada em interrogatório policial delatou sobre os companheiros do crime.
Já se ia para o Centro Comercial da Portela, comer croissants de chocolate e comprar carteiras da moda, com velcro ruidoso e marca 'Dunas'.
Já perguntávamos às miúdas se queriam curtir, e passávamos horas a tactear com a língua todo o ambiente dentário da outra pessoa, olhando para um relógio que não funcionava e dizendo como medalha ao peito que tínhamos dado beijos de mais de uma hora.
Um ou outro precisava de ajuda, pois o nariz às vezes atrapalhava e não fosse uma ajuda caridosa de algum mais experiente sucediam-se os choques frontais de narizes.
Por acaso descobriu-se o desporto do apalpanço, que era mais engraçado por ter de se fugir a uma lambada bem valente, que pela espremidela que se dava nos rabos prematuros das cachopas.
Aqui, como na primária, os meninos mais populares davam-se bem. Na primária recebiam a maior parte dos bilhetes a dizer 'Eu gosto de ti'. A evolução para o preparatório implicava um aumentar da fasquia, que se traduzia numa promiscuidade dentária que faria corar de inveja muito dentista profissional.
Alguns meninos jogavam ping pong com raquetes de marca, adornados por belos e refinados estojos, e pegas super hiper mega especiais anti transpirantes, na sala de convívio, outros utilizavam raquetes de madeira imitanto a forma geométrica circular em interpretação livre, e com dois bocados de alcatifa em cada face.
Que víssemos, começaram a surgir os primeiros Adidas a três contos e quinhentos, e esses começaram a distinguir de forma mais perceptível, quem podia e quem não podia, quem pertencia e quem não pertencia.
Os índios, os Huckleberry Finns do pedaço, já começavam a ganhar consciência de um distanciamento em surdina na forma de estar nas coisas, e se por uma lado invejavam os ténis de marca que nem todo o progenitor se prestava a oferecer, por outro ressentiam-se com aqueles que por terem acesso a esses bens, os rentabilizavam socialmente.
Quem não tem cão caça com gato ou melhor com Sanjo, que custavam um conto e duzentos, e com sorte um blusão da Chenco parecido com aqueles que os reformados e o António Guterres usava antes de ser Primeiro Ministro, uns anos depois.
Mas na altura estava no top. A marca.
Fomos para a Secundária.
7º O na escola secundária de São João da Talha.
A escola já era habitada por uma velha guarda um ou dois anos mais velhos que nós, e com uma gravidade nos modos semelhante à de senadores e senadoras veteranos.
Já não eram as posses a única categoria de distinção social, mas também a antiguidade do posto, leia-se progressão na escolaridade obrigatória e antiguidade da certidão de nascimento.
Posição ganha é para ser mantida. E nada como uma boa dose de arrogância e má cara para meter na ordem os pirralhos e pirralhas invasores, do espaço semi adulto já estabelecido.
Nesta escola, já não eram os professores de educação física que torciam ligeiramente o nariz aos meninos e às meninas que não investiam muito em ténis de marca e fatos de treino da moda, muitos dos quais da marca Olympic, e a eterna Adidas.
Talvez vissem nesta falta de investimento, indícios de desinteresse pela disciplina.
Agora eram os professores de Educação Visual que esperavam as melhores réguas, borrachas, compassos e marcadores, e estojos a condizer, sob pena de uma torção sumária de nariz.
Os bens de prestígio generalizavam-se ao ritmos das modas do consumo juvenil, blusões de penas Duffy, blusões pretos, vermelhos ou azuis da Refrigue com gola felpuda preta, botas Dr Martens, calças Soviet, Levis, Benetton, Chevignon, blusões de ganga a Lee usados até o algodão se desfazer na gola, alguns tinham aparelhagens Pioneer que davam os bons dias, e outros até tinham scooters que davam 120 km hora.
Começaram a surgir os mais veteranos com Sis Sachs restauradas e com estilo vintage.
O corredor que levava ao refeitório/sala de convívio era uma verdadeira passagem de modelos, onde nos mirávamos de alto a baixo, e nos mostrávamos através de adereços.
Alguns, como o meu caso, achavam que não estavam apetrechados a ser populares, nem a darem-se ao trabalho da conversão que passava por ler revistas da moda coeva e dar-se com os expoentes dessa trend.
Infelizmente preferia a Gina e a Tânia, a Revelação, a Newlook francesa e as páginas centrais da revista do Correio da Manhã ao Domingo, que me dava ao trabalho de recortar e combinar artisticamente nos meus cadernos escolares para choque e indignação dos meus professores em particular das professoras.
Optei assim pelas revistas porno e pelo campo de basquetebol, e se não desenvolvi a minhas inexistentes capacidades sociais, hoje sei pelo menos torcer os tornozelos como ninguém, e em 10 lançamentos, com bom vento faço 5 triplos, se estiver inspirado.
Cheguei a ir fazer treinos de captação ao Sacavenense, mas achei estranho que uma equipa de basquetebol precisasse de guarda redes, e foi então que vi que me tinha enganado no balneário.
Passei assim ao lado da NBA.
Explode o Metal pela 2a vez, com bandeiras como o 'Symphony of Destruction' dos Megadeth, e o black álbum dos Metallica.
De súbito a escola pinta-se de preto e cabelos compridos, há um crítico musical em cada aluno e passeiam-se discos de vinil dos Metallica, Slayer, Testament, Kreator e tantos outros, em pulsos recheados de picos, blusões de ganga sem mangas e quanto mais sujos melhor, sem faltar o mega patch nas costas de preferência com o bordado mais chocante possível.
Saem de novo do baú as tshirts do 'Metal up your ass' e a reacção surge com os acid, facilmente identificáveis por filosofias diferentes, que dispensavam as calças apertadas que tantos quistos dermóides nos rabiosques promoveram, e os cabelos compridos, mas não dispensavam os pins com um smiley na lapela.
Combinou-se até uma luta no parque de Vale de Figueira para esclarecer esta estranha rivalidade.
Depois surgem ou ressurgem os skaters, que passavam mais tempo com as pranchas na mão ou a falar da química dos componentes das rodas que saiam nos states, que efectivamente a gastar a sola no asfalto, salvo raras e tardias excepções.
A partir daí torna-se impossível enumerar o passar das modas, mas algumas espalhavam-se virulentamente através da MTV que alguns apanhavam por satélite.
No pico da metalada fomos ao concerto de Guns N Roses de lenços pretos ou xailes na cabeça, e 'Sweet Child of Mine' na boca, e cheirámos o limão de Alvalade quando os Metallica cá deram o primeiro concerto, ignorando quase por completo os 'The Cult' e o vocalista bipolar.
As fases 'de bem' sucediam às de rebeldia embora alguns indefectíveis se mantivessem fiéis à moda anterior.
Os metaleiros, dos quais cheguei a fazer parte com a formação de uma banda de garagem igual às milhentas que surgiram a imitar o James Hetfield um pouco por todo o país, embora o sonho tenha durado sensivelmente o mesmo que os meus dotes vocais.
Ou seja fui mais depressa despedido da banda que formei, que o tempo que levei a reunir todos os músicos. É preciso muito para despedir alguém de uma banda amadora de heavy metal por não saber cantar.
Esqueci-me dizer que de música só sei o que sai nas colunas do rádio, e portanto, depois da tentativa de deixar crescer o cabelo que nunca me passou das orelhas, me deixei de escrever letras de um novo estilo que seria o death metal ecológico, exortando por exemplo no meio de riffs, a que se salvasse o lobo ibérico.
Para o meu insucesso artístico contribuiu também a minha falta total de dotes sociais, e de irreverência de estrela, que no caso do nosso grupo, os metaleiros, passava pelo desempenhar o papel de maluco, o que intumescia as ninfetas.
Para isso bastava treinar uma pose ou postura de 'que me estou a cagar para tudo' e 'que eu é que sei e tu és um quadrado/limitado/igual a todos os outros/etc'.
Esta era uma pose por vezes contraditória, uma outra versão em negativo de um 'nós' que está on, e de um 'eles' que está off.
Actos de escarrar e lamber o escarro, ou de estar à chuva debaixo de uma caleira de um dos pavilhões, era para o comum dos mortais motivo de gozo e danação eterna nos risos dos semelhantes, mas para os metaleiros era o ouro pelo qual mantinham o brilho que projectavam, sob epítetos de 'maluco' espectacular' em clara sintonia e respeitabilidade pelas outras tribos dos bem aceites.
Aos metaleiros até era permitida a façanha de serem mal educados com os professores e de serem grunhos de estimação, o que naquele tempo era privilégio. Mas os verdadeiros metaleiros apenas curtiam metal.
O ponto alto da carreira de qualquer um era o coma alcoólico, ou em excursões, ou ouro sobre azul, no recinto escolar, o que elevava a efémera glória eterna o mítico.
Com o adormecimento do metal até ao advento do nu metal, a rebeldia mainstream foi mais o menos representada por uma parte da nossa geração que infelizmente sucumbiu face aos psicotrópicos, mas que durante uns tempos, pelo menos até começarmos a ver os óbitos e as prostituições, manteve o look de renegado sobre os iniciantes.
A passagem do tempo, caro irmão, irmã, revela a nossos olhos algo que podes achar idiota e contra argumentar, nesta espécie de mecanismo de estratificação social, que não se fica apenas pelos critérios de posses materiais, ou pela posse do 'cool', mas se expande também ao mercado da carne.
Pois no fundo, não se trata esta estratificação senão de mercado da carne.
O grau de sofisticação ou afinação com a moda presente como meios de mater a auréola 'cool', junta-se o grau de beleza física, que por si fixa o grau de desejo e por consequência de aceitação.
Alguém considerado 'feio' mas sofisticado, tinha mais probabilidade de ser aceite que bonitos não sofisticados. Digo bonitos, porque neste aspecto era mais fácil para as cachopas o entrosamento no tecido dos 'populares'.
Por mais matrafona que a rapariga fosse, uma pequena aculturação bastava para a calibrar de forma igual às restantes, ao passo que as 'feias' e em menor grau os 'feios' e 'borbulhentos', tinham de desenvolver uma personalidade vincada e descomplexarem-se sob pena de caírem sob a oprobidade dos 'outros'.
O barómetro da sofisticação, regra geral, determinava, os grupos que se formavam ou sob que forma inconsciente se compunham.Muitas das vezes formavam-se grupos por rejeição dos estereótipos, de outros grupos 'estereotipozantes'.
A sofisticação não era apenas psicológica, mas também geográfica, regra geral, os autóctones da Bobadela eram mais sofisticados, e assim vistos, que os de São João da Talha, Portela de Azóia, Santa Iria.
Quanto mais próximos do 12º ano mais à vontade os alunos se iam sentindo pois subiam na hierarquia de bicagem, ou como se diz em americano 'pecking order'.
Chegava-se a olhar até para os portadores de acne recém chegados aos portões da escola secundária de São João da Talha, com alguma condescendência tal não era a frescura dessa condição na memória individual.
A maior parte dos integrados sofisticados já pensava muito à frente, fosse a nível do que querer e fazer da vida, fosse da mundividência já construída, especialmente no que concerne ao mundo dos adultos que levam a roupa muito a sério.
As saudosas festas na nossa sala de convívio, a entrega à música com copos a cheios de algo a imitar gin tónico na mão, que a AE disponibilizava, com cachopas sofisticadas no meio e cachopos não sofisticados de encontro à parede e de olhos bem abertos.
Elas com cachopos sofisticados gritando com estilo e patine as músicas de Transvision Vamp e o último êxito, uns tais de Quinta do Bill e não sei que de filhos da nação.
Elas totalmente inacessíveis, com camisas brancas desabotoadas, com um fosso medieval traçado com o olhar para os que usavam tshirts e calças de ganga gasta, Não sofisticados.
Talvez esteja teatralmente a exagerar, espero que não a ser injusto.
O canto do cisne do já falado metal ocorre com os Pantera, 'vulgar display of power' e 'cowboys from hell', mas aqui o metal tradicional estava ferido de morte, cabelos compridos já não eram requisito obrigatório.
As gerações que entravam pelos portões, 7º, 8º, 9º, 10º, já não eram tão fundamentalistas e por isso de mais fácil adesão e adaptação às modas, e menos dadas a tribites.
Entraram já plenamente europeizadas,embora a estrutura discriminatória se mantivesse, aplicava-se essencialmente de forma mais subtil, mais ligado ao carácter do porreirismo reinante, e não tanto à aderência a bens de prestígio.
Voltando um pouco atrás, na mesma altura que surgem as tshirts de 'and justice for all' brancas, surge também o Spectrum, e a tecnologia é só mais outra estrada por onde se ordenam as diferenças.
Alguns tinham o 48k, outros o 128k que já tinha música, tão complexa como qualquer grito de Tamagotchi moderno.
Surge o boom do +2, (a que alguns se distanciavam com o commodore 64, ou o msx), dependendo a variação mais por questões de a que loja se ia, que a verdadeiras opções ideológicas.
O +2 dispensava a ligação homoerótica umbilical a um gravador externo mas não a presença constante de uma chave de fendas.
Corríamos ao carinhosamente senhor 'Gordo', cuja pastelaria ficava ao pé da loja de pneus em frente à paragem da rodoviária antes dos Lobatos. Passávamos lá horas a escolher cassetes de jogos.
Comprávamos a Capital que tinha o único suplemento de informática e vibrávamos com o Paradise Café. Má escolha de palavra para enunciar este jogo feito por portugueses para portugueses.
Iamos a Moscavide a pé ou de bicicleta sem inspecção e travões, para comprar os jogos do vício.
Os mais sérios e com posses já tinham computadores Olivetti com disquetes do tamanho de estiradores, programavam em MS DOS e para eles o Target Renegade era brincadeira de criança.
Surge o Commodore Amiga e depois o PC.
Mesmo no Amiga havia os segmentos, a populaça com o 500, os pros com o 2000 e depois surgem os novos ricos com o 600 e o 1200.
Numa perspectiva geral, a nossa escola foi o denominador comum que agregou os diferentes grupos de pessoas que por sua vez reflectem não a variedade como alguns gostam de afirmar, mas a uniformidade de um sistema discriminatório.
A nossa forma de pensar de crianças, não diferia assim tanto no essencial, mais diferindo as condições materiais e o apego a uma ideologia de sofisticação.
A diferença revela-se abissalmente maior quanto mais nos afastarmos geograficamente, por exemplo, entre São João da Talha e Rio de Mouro ou São João da Talha e Salesianos.
E o que é que isto te interessa?
Até que ponto as tuas condições materiais te levaram a gostar de metal ou acid, ou a emular os jovens tardios de Beverly Hills 90210?
Quantas das coisas te passam hoje pela cabeça, resultam da forma como a miúda mais popular olhava para ti como se fosses transparente ou de um campeonato completamente diferente do dela, ou do rapaz com quem curtiste atrás do pavilhão de electrotecnia, que curtiu porque apostou com os amigos ou para chatear a namorada?
O que é que isso mudou em ti, e assim ajudou a enformar o resto da tua vida?
De que forma a aceitação das regras tácitas do jogo contribuíram para aceitares e integrares a existência natural de uma hierarquia, da aceitação de um status quo ou de uma forma de ver o mundo, que pouco ou nada terá a ver com a tua própria cogitação?
Quantos patinhos feios não se tornaram cisnes e quantas pessoas populares e sofisticadas não continuam a perpetuar a conservação daquilo que é uma das bases da estratificação social?
Como na canção:
«All in all you were all just bricks in the wall.»
Os bons tempos e as memórias banham o passado que aqui celebramos quando espreitamos o perfil uns dos outros para ver como seguiu o caminho de cada um.
No último ano que passei na nossa escola, já se faziam praxes aos recém chegados, na recorrente forma de fomentar a integração diferenciando.
Há qualquer coisa que me escapa no alcance das palavras, e que talvez se achares nexo a algo do que foi dito possas ajudar a clarificar.
O melhor da vida são as pessoas, e nesta página reencontramos rostos conhecidos e alguns parceiros e parceiras de viagem.
Até que ponto vale a pena olhar para a sombra na miragem, que paira só se quisermos olhar?
Vale a pena olhar para os tijolos menos conseguidos que ajudaram a fazer o que és hoje?
Podem os teus filhos um dia sentir nem que ao de leve como uma brisa estival pela pele passando, essa discriminação suave implícita ou explícita, consciente ou inconsciente porque não tens dinheiro para comprar a lancheira do sponge bob ou a blusa da floribela, ou porque os teus filhos nasceram com uma beleza não convencional ou sem capacidades de socialização e serão saco de pancada social a não ser que aprendam a ser 'fortes'?
Não é um grande drama que se levanta com isto.
Apenas uma sugestão para reflectir.
A memória torna a pílula dourada, e relembrar objectivamente para lá desse brilho não é tirar valor, é trazer para a luz aquilo que à chuva já não parecia uma aguarela.
Paz.
Bem sei que vens aqui rever e matar saudades de pessoas, mas acima de tudo de um tempo em que eras mais jovem e o mundo te entrava com mais impacto pelo corpo dentro.
É natural que lembres com nostalgia esse tempo em que tudo parecia tão intenso e onde o teu corpo de jovem homem ou de promissora Afrodite te enchiam o peito de orgulho e confiança ilimitada no futuro.
Bem sei que és feliz agora, e ainda bem, mas também sabemos que não podes deixar de sentir um pouco de desejo de olhar para trás.
Bem sei que amaste aqueles tempos em que o coração batia mais depressa, os professores eram jovens como tu és hoje,. quando víamos todos os dias o grande e excelente ser humano Abel, e tínhamos uma adolescência com alguma inocência como hoje gostas de lembrar.
Bem sei que se calhar as responsabilidades de hoje, um trabalho, te condicionam, e que o espelho já não entoa palavras meigas para teus olhos.
Mas sei também que com toda a certeza, podes não concordar com nada do que vou dizer, e sustentar com razão que nada do que é narrado se passou contigo como experiência.
Que nada disto se passou na escola, que tenhas dado por isso.
Que estou a exagerar, que sou traumatizado, que a ter ocorrido nenhuma relevância tem, ou importância teve, ou ainda que faz parte da vida.
Peço--te portanto que tomes o que se vai seguir, como uma ficção, caberá ao coração de cada um lembrar se existe um lado negro da lua.
Estes pesos na balança, fazem erguer mais alto esse prato sinistro ou inquietante para alguns, e é desse prato que te venho falar hoje.
Quando olhamos para trás, a memória prega-nos partidas, faz por dourar e apagar o que de feio nos possa ter parecido. A memória é como detergente, que reafirma a nódoa na brancura, ou a apaga por completo.
Tendemos assim a esquecer o que de menos bom se passou. Eu não esqueço, nem quero esquecer.
O que se passou é uma porta para me conhecer a mim e aos outros e não a vou fechar, porque quero viver contigo num mundo a sério e não num mundo cor de rosa.
Irónico, dizer-te isto num texto apresentado na página sobre a nossa escola, ainda por cima no Facebook, que tem parte do sucesso que tem, devido ao facto de que começou nos EUA exactamente como forma de ex colegas poderem perceber o que os outros andavam a fazer na vida.
Num misto de curiosidade e saudade genuína, como de comparação e até ressabiamento em relação a pessoas que de certa forma se marcaram uns aos outros.
Mais irónico ainda, quando se lê nesta página que é dedicada aos míticos e aos não míticos, frase animada de boas intenções e desprovida de maldades, por certo mas que não deixa de inquietar numa distinção clara entre 'nós' e 'eles'.
Chama-me o que quiseres, todos os nomes e palavras feias que conheceres, tudo o que de vernacular te lembrares, mas eu vou dar uma versão que podes tomar como ficção, e que se encosta às tuas memórias e é como elas tão verdadeira.
Mesmo que não tenhas sentido ou experienciado o mesmo, deixa nascer em ti a suspeita de que a comichão estava lá.
A vida é uma mão com uma potente bofetada. A bofetada é pior que o murro.
Esmurrada a nossa cara, geralmente apagamos, e acordamos com uma dor de ressaca.
Com a bofetada, é toda a cara que arde, numa dor humilhante e persistente que te arde na carne, com um zumbido no ouvido que também persiste.
Esta é a história desse zumbido. Muitos chamam-lhe 'crescer'.
Eu não.
Se com 'crescer' os degraus que calcorreámos fazem parte de um caminho onde só importa a meta, eu não quero esquecer nada.
E quero que te lembres.
Tu que ainda o ouves sem lhe sentir já o som, podes descobrir o que ele contribuiu para o que és hoje, o que lhe deves.
Quem quer que diga que olhar assim para as coisas é doença, ou até ressabiamento, terá a minha bênção, mas também me revela que não tem capacidade para pensar reflexivamente ou por cenários.
E que reduz a realidade ao mínimo denominador comum que lhe é mais confortável, tanto quanto mais redutor for de forma a que não suscite problemas que lhe abalem a fé.
Então, aqui vamos, e desde já irmão e irmã, obrigado por nos leres.
Paz.
_____
A escola, é o ambiente mais classista, conservador e condicionante que existe.
É também o templo onde aprendemos a ser cidadãos, onde nos instruímos, e tudo isso.
É exactamente com uma moeda ou como a lua, tem dois lados.
Educa-nos, mas também nos deforma, em certo sentido.
Transforma-se cada vez mais no local onde os nossos filhos são depositados para absorverem por oito ou mais horas, grande quantidades de matéria, numa lógica clara de rentabilização.
Tal como uma fábrica onde até nem falta o toque para o recreio que emula o toque de fim de turno.
Não a escola enquanto ideia que nasce na Revolução Francesa, mas a escola como se tornou hoje. E há bons exemplos em Portugal de algumas escolas que tentam fugir a este modelo, e pasme-se, conseguem melhores resultados.
Mas não é da ideia de escola que quero falar.
Quero falar da escola onde vemos outros meninos e meninas que reflectem outras famílias.
Nos idos anos 80 eu via que alguns meninos não tinham uma roupa tão gasta como a minha e até já parecia de melhor qualidade.
Outros meninos e meninas tinham botas Botilde e galochas com olhinhos de sapo na biqueira, que eram a última moda de Inverno, contraposta à moda de Verão que havia sido uma argola que se enfiava no tornozelo e que ligava por um pequeno tubo de plástico a um limão sobredimensionado que roçava pelo chão quando a criança o fazia girar em torno do pé saltando sobre ele ao pé coxinho.
Outros meninos e meninas ainda olhavam para mim porque a minha roupa não era tão gasta como a sua, e os meus brinquedos eram melhores, um bocadinho melhores, e eu podia levar papo-secos de tulicreme e eles/elas apenas levavam carcaças com margarina Planta, ou no pior dos casos, Vaqueiro.
Não pensávamos sobre isto claro, só importava o pião, os bilas, a chinchada, as bonecas, a colecção de blocos de notas perfumados do Pierrot e outros, as guerras da calhauzada...etc.
E também se notava embora difusamente, que por mais que se esforçasse, o Professor não tratava da mesma maneira os meninos e meninas de mais bem, dos meninos e meninas de menos bem, embora se esforçasse imenso para tal.
Infelizmente não dependia dele, pelo menos conscientemente.
Se calhar ainda tens resquícios destes zumbidos na memória, se calhar não, se calhar é por isso que dás aos teus filhos hoje tudo o que podes e o que não podes, para que eles não sintam pitada do que possas ter sentido...ou não.
Fomos para a Preparatória.
Já alguns meninos levavam sandes com paio York.
Mantínhamos rivalidades aguerridas com a escola da Sacor, que agora é um hospital privado para gente com dinheiro, mas em particular com a escola do Catujal.
Em guerrilha urbana aberta, por dignidade ou para provar quais os mais duros, transformava-se a paragem da Bobadela em frente à pastelaria Torp,no Carnaval, um campo de batalha com munições de sacos com água inertes previamente arremessados contra os autocarros, farinha e ovos partidos.
A capacidade de improvisar asneira estava no zénite, ou assim parece agora.
Passávamos os dias quando podíamos a subir e descer numa novidade que era o elevador dos prédios da rua que levava à entrada da escola preparatória da Bobadela, tentávamos incendiar um carro estranho que era um Lótus branco de aspecto futurista acendendo fósforos para dentro de um dos seus dois depósitos de gasolina que se abriam facilmente.
Rebentávamos bombas de Carnaval bem potentes em tudo o que era lado, em claro frenesim tribal, jogávamos à bola com as couves e lombardos das desguarnecidas hortas circundantes.
Ouvíamos a música 'Final Countdown' dos Europe e olhávamos com alguma ansiedade para o futuro pois tínhamos entrado para uma coisa estranha chamada CEE.
Apanhávamos rãs que vendíamos na escola para depois ir comprar cromos e fascinados pela riqueza disponível, chegámos a roubar durante uma hora todas as canetas que pareciam de valor, dos estojos da criançada e professores que deixavam as portas abertas e estavam no intervalo.
Fomos apanhados porque a Sandra era memorável na sua roliça generosidade de carnes agraciada com o epíteto de 'Gordinha' e então apertada em interrogatório policial delatou sobre os companheiros do crime.
Já se ia para o Centro Comercial da Portela, comer croissants de chocolate e comprar carteiras da moda, com velcro ruidoso e marca 'Dunas'.
Já perguntávamos às miúdas se queriam curtir, e passávamos horas a tactear com a língua todo o ambiente dentário da outra pessoa, olhando para um relógio que não funcionava e dizendo como medalha ao peito que tínhamos dado beijos de mais de uma hora.
Um ou outro precisava de ajuda, pois o nariz às vezes atrapalhava e não fosse uma ajuda caridosa de algum mais experiente sucediam-se os choques frontais de narizes.
Por acaso descobriu-se o desporto do apalpanço, que era mais engraçado por ter de se fugir a uma lambada bem valente, que pela espremidela que se dava nos rabos prematuros das cachopas.
Aqui, como na primária, os meninos mais populares davam-se bem. Na primária recebiam a maior parte dos bilhetes a dizer 'Eu gosto de ti'. A evolução para o preparatório implicava um aumentar da fasquia, que se traduzia numa promiscuidade dentária que faria corar de inveja muito dentista profissional.
Alguns meninos jogavam ping pong com raquetes de marca, adornados por belos e refinados estojos, e pegas super hiper mega especiais anti transpirantes, na sala de convívio, outros utilizavam raquetes de madeira imitanto a forma geométrica circular em interpretação livre, e com dois bocados de alcatifa em cada face.
Que víssemos, começaram a surgir os primeiros Adidas a três contos e quinhentos, e esses começaram a distinguir de forma mais perceptível, quem podia e quem não podia, quem pertencia e quem não pertencia.
Os índios, os Huckleberry Finns do pedaço, já começavam a ganhar consciência de um distanciamento em surdina na forma de estar nas coisas, e se por uma lado invejavam os ténis de marca que nem todo o progenitor se prestava a oferecer, por outro ressentiam-se com aqueles que por terem acesso a esses bens, os rentabilizavam socialmente.
Quem não tem cão caça com gato ou melhor com Sanjo, que custavam um conto e duzentos, e com sorte um blusão da Chenco parecido com aqueles que os reformados e o António Guterres usava antes de ser Primeiro Ministro, uns anos depois.
Mas na altura estava no top. A marca.
Fomos para a Secundária.
7º O na escola secundária de São João da Talha.
A escola já era habitada por uma velha guarda um ou dois anos mais velhos que nós, e com uma gravidade nos modos semelhante à de senadores e senadoras veteranos.
Já não eram as posses a única categoria de distinção social, mas também a antiguidade do posto, leia-se progressão na escolaridade obrigatória e antiguidade da certidão de nascimento.
Posição ganha é para ser mantida. E nada como uma boa dose de arrogância e má cara para meter na ordem os pirralhos e pirralhas invasores, do espaço semi adulto já estabelecido.
Nesta escola, já não eram os professores de educação física que torciam ligeiramente o nariz aos meninos e às meninas que não investiam muito em ténis de marca e fatos de treino da moda, muitos dos quais da marca Olympic, e a eterna Adidas.
Talvez vissem nesta falta de investimento, indícios de desinteresse pela disciplina.
Agora eram os professores de Educação Visual que esperavam as melhores réguas, borrachas, compassos e marcadores, e estojos a condizer, sob pena de uma torção sumária de nariz.
Os bens de prestígio generalizavam-se ao ritmos das modas do consumo juvenil, blusões de penas Duffy, blusões pretos, vermelhos ou azuis da Refrigue com gola felpuda preta, botas Dr Martens, calças Soviet, Levis, Benetton, Chevignon, blusões de ganga a Lee usados até o algodão se desfazer na gola, alguns tinham aparelhagens Pioneer que davam os bons dias, e outros até tinham scooters que davam 120 km hora.
Começaram a surgir os mais veteranos com Sis Sachs restauradas e com estilo vintage.
O corredor que levava ao refeitório/sala de convívio era uma verdadeira passagem de modelos, onde nos mirávamos de alto a baixo, e nos mostrávamos através de adereços.
Alguns, como o meu caso, achavam que não estavam apetrechados a ser populares, nem a darem-se ao trabalho da conversão que passava por ler revistas da moda coeva e dar-se com os expoentes dessa trend.
Infelizmente preferia a Gina e a Tânia, a Revelação, a Newlook francesa e as páginas centrais da revista do Correio da Manhã ao Domingo, que me dava ao trabalho de recortar e combinar artisticamente nos meus cadernos escolares para choque e indignação dos meus professores em particular das professoras.
Optei assim pelas revistas porno e pelo campo de basquetebol, e se não desenvolvi a minhas inexistentes capacidades sociais, hoje sei pelo menos torcer os tornozelos como ninguém, e em 10 lançamentos, com bom vento faço 5 triplos, se estiver inspirado.
Cheguei a ir fazer treinos de captação ao Sacavenense, mas achei estranho que uma equipa de basquetebol precisasse de guarda redes, e foi então que vi que me tinha enganado no balneário.
Passei assim ao lado da NBA.
Explode o Metal pela 2a vez, com bandeiras como o 'Symphony of Destruction' dos Megadeth, e o black álbum dos Metallica.
De súbito a escola pinta-se de preto e cabelos compridos, há um crítico musical em cada aluno e passeiam-se discos de vinil dos Metallica, Slayer, Testament, Kreator e tantos outros, em pulsos recheados de picos, blusões de ganga sem mangas e quanto mais sujos melhor, sem faltar o mega patch nas costas de preferência com o bordado mais chocante possível.
Saem de novo do baú as tshirts do 'Metal up your ass' e a reacção surge com os acid, facilmente identificáveis por filosofias diferentes, que dispensavam as calças apertadas que tantos quistos dermóides nos rabiosques promoveram, e os cabelos compridos, mas não dispensavam os pins com um smiley na lapela.
Combinou-se até uma luta no parque de Vale de Figueira para esclarecer esta estranha rivalidade.
Depois surgem ou ressurgem os skaters, que passavam mais tempo com as pranchas na mão ou a falar da química dos componentes das rodas que saiam nos states, que efectivamente a gastar a sola no asfalto, salvo raras e tardias excepções.
A partir daí torna-se impossível enumerar o passar das modas, mas algumas espalhavam-se virulentamente através da MTV que alguns apanhavam por satélite.
No pico da metalada fomos ao concerto de Guns N Roses de lenços pretos ou xailes na cabeça, e 'Sweet Child of Mine' na boca, e cheirámos o limão de Alvalade quando os Metallica cá deram o primeiro concerto, ignorando quase por completo os 'The Cult' e o vocalista bipolar.
As fases 'de bem' sucediam às de rebeldia embora alguns indefectíveis se mantivessem fiéis à moda anterior.
Os metaleiros, dos quais cheguei a fazer parte com a formação de uma banda de garagem igual às milhentas que surgiram a imitar o James Hetfield um pouco por todo o país, embora o sonho tenha durado sensivelmente o mesmo que os meus dotes vocais.
Ou seja fui mais depressa despedido da banda que formei, que o tempo que levei a reunir todos os músicos. É preciso muito para despedir alguém de uma banda amadora de heavy metal por não saber cantar.
Esqueci-me dizer que de música só sei o que sai nas colunas do rádio, e portanto, depois da tentativa de deixar crescer o cabelo que nunca me passou das orelhas, me deixei de escrever letras de um novo estilo que seria o death metal ecológico, exortando por exemplo no meio de riffs, a que se salvasse o lobo ibérico.
Para o meu insucesso artístico contribuiu também a minha falta total de dotes sociais, e de irreverência de estrela, que no caso do nosso grupo, os metaleiros, passava pelo desempenhar o papel de maluco, o que intumescia as ninfetas.
Para isso bastava treinar uma pose ou postura de 'que me estou a cagar para tudo' e 'que eu é que sei e tu és um quadrado/limitado/igual a todos os outros/etc'.
Esta era uma pose por vezes contraditória, uma outra versão em negativo de um 'nós' que está on, e de um 'eles' que está off.
Actos de escarrar e lamber o escarro, ou de estar à chuva debaixo de uma caleira de um dos pavilhões, era para o comum dos mortais motivo de gozo e danação eterna nos risos dos semelhantes, mas para os metaleiros era o ouro pelo qual mantinham o brilho que projectavam, sob epítetos de 'maluco' espectacular' em clara sintonia e respeitabilidade pelas outras tribos dos bem aceites.
Aos metaleiros até era permitida a façanha de serem mal educados com os professores e de serem grunhos de estimação, o que naquele tempo era privilégio. Mas os verdadeiros metaleiros apenas curtiam metal.
O ponto alto da carreira de qualquer um era o coma alcoólico, ou em excursões, ou ouro sobre azul, no recinto escolar, o que elevava a efémera glória eterna o mítico.
Com o adormecimento do metal até ao advento do nu metal, a rebeldia mainstream foi mais o menos representada por uma parte da nossa geração que infelizmente sucumbiu face aos psicotrópicos, mas que durante uns tempos, pelo menos até começarmos a ver os óbitos e as prostituições, manteve o look de renegado sobre os iniciantes.
A passagem do tempo, caro irmão, irmã, revela a nossos olhos algo que podes achar idiota e contra argumentar, nesta espécie de mecanismo de estratificação social, que não se fica apenas pelos critérios de posses materiais, ou pela posse do 'cool', mas se expande também ao mercado da carne.
Pois no fundo, não se trata esta estratificação senão de mercado da carne.
O grau de sofisticação ou afinação com a moda presente como meios de mater a auréola 'cool', junta-se o grau de beleza física, que por si fixa o grau de desejo e por consequência de aceitação.
Alguém considerado 'feio' mas sofisticado, tinha mais probabilidade de ser aceite que bonitos não sofisticados. Digo bonitos, porque neste aspecto era mais fácil para as cachopas o entrosamento no tecido dos 'populares'.
Por mais matrafona que a rapariga fosse, uma pequena aculturação bastava para a calibrar de forma igual às restantes, ao passo que as 'feias' e em menor grau os 'feios' e 'borbulhentos', tinham de desenvolver uma personalidade vincada e descomplexarem-se sob pena de caírem sob a oprobidade dos 'outros'.
O barómetro da sofisticação, regra geral, determinava, os grupos que se formavam ou sob que forma inconsciente se compunham.Muitas das vezes formavam-se grupos por rejeição dos estereótipos, de outros grupos 'estereotipozantes'.
A sofisticação não era apenas psicológica, mas também geográfica, regra geral, os autóctones da Bobadela eram mais sofisticados, e assim vistos, que os de São João da Talha, Portela de Azóia, Santa Iria.
Quanto mais próximos do 12º ano mais à vontade os alunos se iam sentindo pois subiam na hierarquia de bicagem, ou como se diz em americano 'pecking order'.
Chegava-se a olhar até para os portadores de acne recém chegados aos portões da escola secundária de São João da Talha, com alguma condescendência tal não era a frescura dessa condição na memória individual.
A maior parte dos integrados sofisticados já pensava muito à frente, fosse a nível do que querer e fazer da vida, fosse da mundividência já construída, especialmente no que concerne ao mundo dos adultos que levam a roupa muito a sério.
As saudosas festas na nossa sala de convívio, a entrega à música com copos a cheios de algo a imitar gin tónico na mão, que a AE disponibilizava, com cachopas sofisticadas no meio e cachopos não sofisticados de encontro à parede e de olhos bem abertos.
Elas com cachopos sofisticados gritando com estilo e patine as músicas de Transvision Vamp e o último êxito, uns tais de Quinta do Bill e não sei que de filhos da nação.
Elas totalmente inacessíveis, com camisas brancas desabotoadas, com um fosso medieval traçado com o olhar para os que usavam tshirts e calças de ganga gasta, Não sofisticados.
Talvez esteja teatralmente a exagerar, espero que não a ser injusto.
O canto do cisne do já falado metal ocorre com os Pantera, 'vulgar display of power' e 'cowboys from hell', mas aqui o metal tradicional estava ferido de morte, cabelos compridos já não eram requisito obrigatório.
As gerações que entravam pelos portões, 7º, 8º, 9º, 10º, já não eram tão fundamentalistas e por isso de mais fácil adesão e adaptação às modas, e menos dadas a tribites.
Entraram já plenamente europeizadas,embora a estrutura discriminatória se mantivesse, aplicava-se essencialmente de forma mais subtil, mais ligado ao carácter do porreirismo reinante, e não tanto à aderência a bens de prestígio.
Voltando um pouco atrás, na mesma altura que surgem as tshirts de 'and justice for all' brancas, surge também o Spectrum, e a tecnologia é só mais outra estrada por onde se ordenam as diferenças.
Alguns tinham o 48k, outros o 128k que já tinha música, tão complexa como qualquer grito de Tamagotchi moderno.
Surge o boom do +2, (a que alguns se distanciavam com o commodore 64, ou o msx), dependendo a variação mais por questões de a que loja se ia, que a verdadeiras opções ideológicas.
O +2 dispensava a ligação homoerótica umbilical a um gravador externo mas não a presença constante de uma chave de fendas.
Corríamos ao carinhosamente senhor 'Gordo', cuja pastelaria ficava ao pé da loja de pneus em frente à paragem da rodoviária antes dos Lobatos. Passávamos lá horas a escolher cassetes de jogos.
Comprávamos a Capital que tinha o único suplemento de informática e vibrávamos com o Paradise Café. Má escolha de palavra para enunciar este jogo feito por portugueses para portugueses.
Iamos a Moscavide a pé ou de bicicleta sem inspecção e travões, para comprar os jogos do vício.
Os mais sérios e com posses já tinham computadores Olivetti com disquetes do tamanho de estiradores, programavam em MS DOS e para eles o Target Renegade era brincadeira de criança.
Surge o Commodore Amiga e depois o PC.
Mesmo no Amiga havia os segmentos, a populaça com o 500, os pros com o 2000 e depois surgem os novos ricos com o 600 e o 1200.
Numa perspectiva geral, a nossa escola foi o denominador comum que agregou os diferentes grupos de pessoas que por sua vez reflectem não a variedade como alguns gostam de afirmar, mas a uniformidade de um sistema discriminatório.
A nossa forma de pensar de crianças, não diferia assim tanto no essencial, mais diferindo as condições materiais e o apego a uma ideologia de sofisticação.
A diferença revela-se abissalmente maior quanto mais nos afastarmos geograficamente, por exemplo, entre São João da Talha e Rio de Mouro ou São João da Talha e Salesianos.
E o que é que isto te interessa?
Até que ponto as tuas condições materiais te levaram a gostar de metal ou acid, ou a emular os jovens tardios de Beverly Hills 90210?
Quantas das coisas te passam hoje pela cabeça, resultam da forma como a miúda mais popular olhava para ti como se fosses transparente ou de um campeonato completamente diferente do dela, ou do rapaz com quem curtiste atrás do pavilhão de electrotecnia, que curtiu porque apostou com os amigos ou para chatear a namorada?
O que é que isso mudou em ti, e assim ajudou a enformar o resto da tua vida?
De que forma a aceitação das regras tácitas do jogo contribuíram para aceitares e integrares a existência natural de uma hierarquia, da aceitação de um status quo ou de uma forma de ver o mundo, que pouco ou nada terá a ver com a tua própria cogitação?
Quantos patinhos feios não se tornaram cisnes e quantas pessoas populares e sofisticadas não continuam a perpetuar a conservação daquilo que é uma das bases da estratificação social?
Como na canção:
«All in all you were all just bricks in the wall.»
Os bons tempos e as memórias banham o passado que aqui celebramos quando espreitamos o perfil uns dos outros para ver como seguiu o caminho de cada um.
No último ano que passei na nossa escola, já se faziam praxes aos recém chegados, na recorrente forma de fomentar a integração diferenciando.
Há qualquer coisa que me escapa no alcance das palavras, e que talvez se achares nexo a algo do que foi dito possas ajudar a clarificar.
O melhor da vida são as pessoas, e nesta página reencontramos rostos conhecidos e alguns parceiros e parceiras de viagem.
Até que ponto vale a pena olhar para a sombra na miragem, que paira só se quisermos olhar?
Vale a pena olhar para os tijolos menos conseguidos que ajudaram a fazer o que és hoje?
Podem os teus filhos um dia sentir nem que ao de leve como uma brisa estival pela pele passando, essa discriminação suave implícita ou explícita, consciente ou inconsciente porque não tens dinheiro para comprar a lancheira do sponge bob ou a blusa da floribela, ou porque os teus filhos nasceram com uma beleza não convencional ou sem capacidades de socialização e serão saco de pancada social a não ser que aprendam a ser 'fortes'?
Não é um grande drama que se levanta com isto.
Apenas uma sugestão para reflectir.
A memória torna a pílula dourada, e relembrar objectivamente para lá desse brilho não é tirar valor, é trazer para a luz aquilo que à chuva já não parecia uma aguarela.
Paz.