I
Trabalho. O dia todo. O formigueiro da submissão pica-me até nos poucos minutos em que fujo para fingir que almoço, quando circulo pela via rápida em filas intermináveis que derem a ganhar muito dinheiro a muita gente que não nós, e que se calhar agora passam por mim em carros de grande cilindrada, ar condicionado e Mozart nos rádios de alta fidelidade.
Dizem-me que nada fiz para ter uma vida decente, que uma vida decente é cara e tem de ser paga a sangue, paga com esforço, paga com distância de tudo aquilo que amo nesta vida, dos meus filhos, dos meus pais, dos meus próximos.
A competição e a avareza tomaram conta da forma de relacionamento entre as pessoas, e os colegas de trabalho raramente são amigos, e à impessoalidade chama-se profissionalismo. Sou um dos milhares de anónimos que põe fim à vida sem que os jornais o noticiem. São mais colunáveis outras colunas de fumo para as massas. Ninguém fará as estatísticas daqueles que morrem na sombra do anonimato, por dívidas, por solidão, por exclusão, por inadaptação.
Inadaptação a um mundo de merda é hoje sinónimo de estigma. Os fortes espezinham os fracos, com hinos a Galton, são malucos, são estranhos, têm pancada. Como se fosse são viver uma vida de opressão onde as pequenas fugas são os créditos fáceis cedidos com caras sorridentes e os incumprimentos com desdéns judicativos. Claro foda-se claro, endividas como podes para esquecer o facto que és pobre e levas vida de emigrante no teu próprio país. A infância fez-te promessas que aparecem traídas assim que sais da universidade, e o desafogo material não parece ocorrer nunca. És revolucionário no teu ninho de indigência, mas conservador nos teus fartos jantares com amigos ou nas discos por aí e acolá.
Só és merda, quando a onde te domina, quando te enrola e traz para o fundo sem saberes para onde está o Norte, e aí és o alvo das risotas, das desconsiderações externas e internas pois que pensas mal se achas que a tua própria consciência te vai deixar em paz.
Sofre aí filho da puta que nada mais mereces que aquilo que a vida te dá, se encheste o cu, agora pagas pelo juízo que não tiveste.
Que caralho de sociedade esta onde se dividem as pessoas entre normais e entre anormais, entre ajuizadas e entre tresloucadas. O auto flagelo da correcção, daquela forma de estar na qual o sujeito divide o mundo entre ajuízados e os outros cuja epítome é a mentalidade de polícia, que adopta uma postura de indefectível cumprimento das regras que todos os dias vê transgredidas, adopta com ele a visão assustadoramente exacta de um mundo lógico e ordenado em vias de funcionar bem não fossem os inaptos a moer a engrenagem.
O auto flagelo da correcção que qualquer drogado ou pedinte reconhece no olhar do transeunte que passa e que lhe nega a esmola ou a compreensão. O auto flagelo da correcção que serve para uma população inteira como critério para os seus juízos de valor.
Os silêncios de admiração ante as histórias de sucesso empresarial ou as espertezas cometidas, e eu e todos os outros que suspiramos os últimos golfos de ar, a um momento pensamos que as opiniões são uma epidemia, a certeza plena e inamovível de quem se sente na certeza da sua visão do mundo, é uma força tremenda ainda que amputada de pernas, que torna cada um em zombie ao serviço da sua própria miséria. É a prisão a este mundo, ao imediato, ao afã e à curta vida de formiga que transforma os homens em ratos e as mulheres em figuras ridículas, pena que só a àgua do Tejo, sob o alto desta ponte encarnada só agora mo mostre.
Trabalho o dia todo, e mal consigo dormir. Não me chega o dinheiro que ganho, e até nem fui dos que se endividou mais. Nunca tive uma casa, ou tenho alguma perspectiva de ter filhos.
Ainda pergunto à vida, isto é a mim mesmo, que caralho vim eu fazer à vida senão cumprir as aspirações coevas de meus progenitores. Durante anos não nos ralámos com a direcção do comboio que passava lá ao fundo e que determina a nossa vida. O algodão de um suposto progresso embalava-nos no sono dogmático da conformidade, e a bem da verdade estávamos em assim, em torpor narcoléptico, em calmaria imbecilizante. Acho que sois loucos se não vos perguntais para que caralho serve estarmos vivos.
É a vida uma crónica hedonista que se rememora antes do fim numa velhice enublada?
É a sucessão das fases inertes assim que o tempo passa por elas, das fodas, das jantaradas, dos corpos de mulheres que agarrámos, das bebedeiras que coleccionámos e dos amigos que perdemos? Que caralho dá valor a esta merda? Que fazer com esta merda que me deram, um espírito e um corpo, a meter numa merda de emprego e fazer como todos os outros fazem?
Esta merda aperta e todos estrebucham pela sua fatia. Parece que o socialismo morreu...
II
A acefalia é uma nova forma de regime político. Implica uma ideologia baseada na simplicidade de ideias. A comparação com os processos lógicos da computação não é mera coincidência. O mundo ficou mais ‘tecnológico’ mas a dimensão espiritual do hipotálamo parace ter sido varrida para debaixo de um monte de silíca em processo entrópico.
Os arrogantes de merda de agora, herdeiros genéticos dos arrogantes de merda de então, sim, daqueles que nas primeiras décadas do século acreditavam mais na solução de todas as aflições humanas através da técnica, até que Auschwitz os calou. A técnica ao serviço da morte abriu portas para outras vidas, e pareceu querer camuflar aquele cerebrelo primitivo, e assim mascarou através de código binário a eterna divisão social já conhecida, e da qual os discursos hodiernos à mesa do jantar são devedores.
Começaram por ridicularizar o discurso interminável do espírito, as letras são tretas, e as línguas servem apenas para tradução, a Filosofia para abrir empresas de auto ajuda e aperfeiçoamento humano, a História para legitimar nacionalismos ou ideias políticas, a Geografia para elaborar estudos de impacto ambiental. Despiram-nas de toda a tensão criadora e problemática na mesma acção que tornou as universidades em centros de formação profissional e mercantilizou professores e alunos.
Logo as Humanidades, que eram aquilo que de melhor tínhamos para remoer a merda que nos querem fazer acreditar.
Quando disseram que o contribuinte isto, o contribuinte aquilo, ninguém bufou nem um sorriso de despeito.
Passámos de cidadão a contribuinte, e todas as almas que assim acederam a pensar gostaram da ideia, pois ao ver o que descontavam por mês para um aparelho estatal, gostaram de pensar que iriam ter algum tipo de poder neutro e objectivo naquilo que se faria ao dinheiro.
O cidadão partira, deixou viúva a sua república e casou com as Finanças. Ao cidadão não se exigia que se preocupasse com a sua comunidade política, coisa chata que delegava em outros a quem pagava para fazer isso. Mediante a visão do mundo teria no cardápio o partido político correspondente, ao qual não faltavam as pitadas de sal virtual em forma de conspirações e teorias cabalísticas geralmente maniqueístas, que prendem o espectador ao viciante espectáculo, ao qual se juntou tardiamente o debitar diário de comentadores políticos, que são pagos para nos dizerem o que não vemos ‘lá’.
O contribuinte começou a tornar-se cada vez mais consciente do dinheiro que largava para o Estado, essa entidade abstracta, só presente nas marchas dos políticos e nas paradas militares. Começou o contribuinte a achar que só tinha palavra a dizer enquanto pagador dessa fanfarra toda, e que se havia gente a viver-lhe nas costas dos descontos, isso seria intolerável. Vai de malhar nos espertos e nos sem nada, enquanto se admirava em silêncio os elegantes alguém que são afamados para a populaça. Ao filho da puta que levanta o subsídio de sobrevivência se lançam vitupérios, mas ao tubarão da falcatrua que se reconhece da tv num qualquer supermercado se devem vénias e nos desfazemos em sorrisos. Afinal que se dizer de um filho da puta que nos desfalcou em milhões, pode ser uma cabala contra ele, que é tão digno por se achar tão senhor de si mesmo. Mesmo que seja culpado esperto é ele que sabe jogar no sistema, não é como o filho da puta que levanta o rendimento social de inserção, que nem para roubar é excelente, só esperto.
A divisão e a preocupação com a divisa, criou uma sociedade cínica, onde se torce o olho a construir um hospital a Norte do Mondego, e se olha com bons olhos mais um casino em Lisboa ou vice versa.
Não temos ninguém que nos salve e poucos escrevem sobre o domínio da linguagem, não só por especialistas, como por assassinos contratados postos a decidir o que é bom para o mercado ou mau, e a submeter a lógicas economicistas, a matéria dos cursos.
Precisaríamos de umas largas centenas de críticos sociais a trabalhar em contínuo para poder dar a imagem a esta sociedade do que ela é e se tornou, mas como não dá dinheiro, o pobre português atávico e emigrante vai continuar a fazer vénia ao senhor que passa e aos navios que passam por ele.
As Letras são tretas.
Trabalho. O dia todo. O formigueiro da submissão pica-me até nos poucos minutos em que fujo para fingir que almoço, quando circulo pela via rápida em filas intermináveis que derem a ganhar muito dinheiro a muita gente que não nós, e que se calhar agora passam por mim em carros de grande cilindrada, ar condicionado e Mozart nos rádios de alta fidelidade.
Dizem-me que nada fiz para ter uma vida decente, que uma vida decente é cara e tem de ser paga a sangue, paga com esforço, paga com distância de tudo aquilo que amo nesta vida, dos meus filhos, dos meus pais, dos meus próximos.
A competição e a avareza tomaram conta da forma de relacionamento entre as pessoas, e os colegas de trabalho raramente são amigos, e à impessoalidade chama-se profissionalismo. Sou um dos milhares de anónimos que põe fim à vida sem que os jornais o noticiem. São mais colunáveis outras colunas de fumo para as massas. Ninguém fará as estatísticas daqueles que morrem na sombra do anonimato, por dívidas, por solidão, por exclusão, por inadaptação.
Inadaptação a um mundo de merda é hoje sinónimo de estigma. Os fortes espezinham os fracos, com hinos a Galton, são malucos, são estranhos, têm pancada. Como se fosse são viver uma vida de opressão onde as pequenas fugas são os créditos fáceis cedidos com caras sorridentes e os incumprimentos com desdéns judicativos. Claro foda-se claro, endividas como podes para esquecer o facto que és pobre e levas vida de emigrante no teu próprio país. A infância fez-te promessas que aparecem traídas assim que sais da universidade, e o desafogo material não parece ocorrer nunca. És revolucionário no teu ninho de indigência, mas conservador nos teus fartos jantares com amigos ou nas discos por aí e acolá.
Só és merda, quando a onde te domina, quando te enrola e traz para o fundo sem saberes para onde está o Norte, e aí és o alvo das risotas, das desconsiderações externas e internas pois que pensas mal se achas que a tua própria consciência te vai deixar em paz.
Sofre aí filho da puta que nada mais mereces que aquilo que a vida te dá, se encheste o cu, agora pagas pelo juízo que não tiveste.
Que caralho de sociedade esta onde se dividem as pessoas entre normais e entre anormais, entre ajuizadas e entre tresloucadas. O auto flagelo da correcção, daquela forma de estar na qual o sujeito divide o mundo entre ajuízados e os outros cuja epítome é a mentalidade de polícia, que adopta uma postura de indefectível cumprimento das regras que todos os dias vê transgredidas, adopta com ele a visão assustadoramente exacta de um mundo lógico e ordenado em vias de funcionar bem não fossem os inaptos a moer a engrenagem.
O auto flagelo da correcção que qualquer drogado ou pedinte reconhece no olhar do transeunte que passa e que lhe nega a esmola ou a compreensão. O auto flagelo da correcção que serve para uma população inteira como critério para os seus juízos de valor.
Os silêncios de admiração ante as histórias de sucesso empresarial ou as espertezas cometidas, e eu e todos os outros que suspiramos os últimos golfos de ar, a um momento pensamos que as opiniões são uma epidemia, a certeza plena e inamovível de quem se sente na certeza da sua visão do mundo, é uma força tremenda ainda que amputada de pernas, que torna cada um em zombie ao serviço da sua própria miséria. É a prisão a este mundo, ao imediato, ao afã e à curta vida de formiga que transforma os homens em ratos e as mulheres em figuras ridículas, pena que só a àgua do Tejo, sob o alto desta ponte encarnada só agora mo mostre.
Trabalho o dia todo, e mal consigo dormir. Não me chega o dinheiro que ganho, e até nem fui dos que se endividou mais. Nunca tive uma casa, ou tenho alguma perspectiva de ter filhos.
Ainda pergunto à vida, isto é a mim mesmo, que caralho vim eu fazer à vida senão cumprir as aspirações coevas de meus progenitores. Durante anos não nos ralámos com a direcção do comboio que passava lá ao fundo e que determina a nossa vida. O algodão de um suposto progresso embalava-nos no sono dogmático da conformidade, e a bem da verdade estávamos em assim, em torpor narcoléptico, em calmaria imbecilizante. Acho que sois loucos se não vos perguntais para que caralho serve estarmos vivos.
É a vida uma crónica hedonista que se rememora antes do fim numa velhice enublada?
É a sucessão das fases inertes assim que o tempo passa por elas, das fodas, das jantaradas, dos corpos de mulheres que agarrámos, das bebedeiras que coleccionámos e dos amigos que perdemos? Que caralho dá valor a esta merda? Que fazer com esta merda que me deram, um espírito e um corpo, a meter numa merda de emprego e fazer como todos os outros fazem?
Esta merda aperta e todos estrebucham pela sua fatia. Parece que o socialismo morreu...
II
A acefalia é uma nova forma de regime político. Implica uma ideologia baseada na simplicidade de ideias. A comparação com os processos lógicos da computação não é mera coincidência. O mundo ficou mais ‘tecnológico’ mas a dimensão espiritual do hipotálamo parace ter sido varrida para debaixo de um monte de silíca em processo entrópico.
Os arrogantes de merda de agora, herdeiros genéticos dos arrogantes de merda de então, sim, daqueles que nas primeiras décadas do século acreditavam mais na solução de todas as aflições humanas através da técnica, até que Auschwitz os calou. A técnica ao serviço da morte abriu portas para outras vidas, e pareceu querer camuflar aquele cerebrelo primitivo, e assim mascarou através de código binário a eterna divisão social já conhecida, e da qual os discursos hodiernos à mesa do jantar são devedores.
Começaram por ridicularizar o discurso interminável do espírito, as letras são tretas, e as línguas servem apenas para tradução, a Filosofia para abrir empresas de auto ajuda e aperfeiçoamento humano, a História para legitimar nacionalismos ou ideias políticas, a Geografia para elaborar estudos de impacto ambiental. Despiram-nas de toda a tensão criadora e problemática na mesma acção que tornou as universidades em centros de formação profissional e mercantilizou professores e alunos.
Logo as Humanidades, que eram aquilo que de melhor tínhamos para remoer a merda que nos querem fazer acreditar.
Quando disseram que o contribuinte isto, o contribuinte aquilo, ninguém bufou nem um sorriso de despeito.
Passámos de cidadão a contribuinte, e todas as almas que assim acederam a pensar gostaram da ideia, pois ao ver o que descontavam por mês para um aparelho estatal, gostaram de pensar que iriam ter algum tipo de poder neutro e objectivo naquilo que se faria ao dinheiro.
O cidadão partira, deixou viúva a sua república e casou com as Finanças. Ao cidadão não se exigia que se preocupasse com a sua comunidade política, coisa chata que delegava em outros a quem pagava para fazer isso. Mediante a visão do mundo teria no cardápio o partido político correspondente, ao qual não faltavam as pitadas de sal virtual em forma de conspirações e teorias cabalísticas geralmente maniqueístas, que prendem o espectador ao viciante espectáculo, ao qual se juntou tardiamente o debitar diário de comentadores políticos, que são pagos para nos dizerem o que não vemos ‘lá’.
O contribuinte começou a tornar-se cada vez mais consciente do dinheiro que largava para o Estado, essa entidade abstracta, só presente nas marchas dos políticos e nas paradas militares. Começou o contribuinte a achar que só tinha palavra a dizer enquanto pagador dessa fanfarra toda, e que se havia gente a viver-lhe nas costas dos descontos, isso seria intolerável. Vai de malhar nos espertos e nos sem nada, enquanto se admirava em silêncio os elegantes alguém que são afamados para a populaça. Ao filho da puta que levanta o subsídio de sobrevivência se lançam vitupérios, mas ao tubarão da falcatrua que se reconhece da tv num qualquer supermercado se devem vénias e nos desfazemos em sorrisos. Afinal que se dizer de um filho da puta que nos desfalcou em milhões, pode ser uma cabala contra ele, que é tão digno por se achar tão senhor de si mesmo. Mesmo que seja culpado esperto é ele que sabe jogar no sistema, não é como o filho da puta que levanta o rendimento social de inserção, que nem para roubar é excelente, só esperto.
A divisão e a preocupação com a divisa, criou uma sociedade cínica, onde se torce o olho a construir um hospital a Norte do Mondego, e se olha com bons olhos mais um casino em Lisboa ou vice versa.
Não temos ninguém que nos salve e poucos escrevem sobre o domínio da linguagem, não só por especialistas, como por assassinos contratados postos a decidir o que é bom para o mercado ou mau, e a submeter a lógicas economicistas, a matéria dos cursos.
Precisaríamos de umas largas centenas de críticos sociais a trabalhar em contínuo para poder dar a imagem a esta sociedade do que ela é e se tornou, mas como não dá dinheiro, o pobre português atávico e emigrante vai continuar a fazer vénia ao senhor que passa e aos navios que passam por ele.
As Letras são tretas.