Chamo-me Andrade.
Sou um dos panhonhas da vida. Deves conhecer-me, vês-me na rua.
Sou uma daquelas pessoas que conheces e esqueces imediatamente sob o peso de um
juízo fácil e imediato.
«É um perdedor», um vale nada, um inapto, um triste, um
desgraçado, um zé ninguém, sentencias em
introspecção.
Penso que tens razão.
Não gosto de trabalhar.
Detesto.
Odeio o mundo do trabalho, pelo menos tal e qual o tenho
conhecido até agora.
A verdade do trabalho é uma verdade feita e mais santificada que
a necessidade de comer carne todos os
dias.
Não me vejo como particularmente rebelde nem particularmente
disfuncional. A necessidade que tenho de te dizer isto mostra-nos claramente
que começar uma cruzada contra o ‘trabalho’ é visto como rebeldia estéril ou
sinal de cabecinha fraca.
Dizes-me que também tu não gostas nada de trabalhar mas que tem
de ser. Que o mundo é assim e que tens de pagar a tua vida, que faz parte de ser
adulto, que se não trabalhamos nada aparece feito, morreríamos à fome,
ficaríamos parados a meio do progresso, que toda a gente tem de
trabalhar.
Quando insisto cedes e dizes-me para procurar qualquer coisa que
eu goste de fazer. Eu gosto de conspirar contra o
trabalho.
Dou comigo assustado quando sozinho na minha cabeça e após os
convívios, as gargalhadas, os discursos e as festas de natal, mergulho em
cogitações nas quais as companhias, os risos, as palavras e os rituais me
parecem um tal véu de ilusão, relativo mas absoluto, um andar intermédio onde
todos vivem e no qual escolho retirar-me para viver numa cave auscultando a
vida perene e falsa do andar de cima.
Assusto-me com a certeza que tenho que os outros é que estão
enganados. Por isso pago.
Pago com provocações, discussões constantes, desconsiderações, e
sou de certa forma ostracizado, estrangeiro na minha vizinhança, porque pura e
simplesmente não me consigo limitar a fingir que vivo como todos, e forço-me a
engolir a revolta que guardo dentro de
mim.
Em meu redor se encontra tecida uma teia, uma rede de relações
humanas que me tentam puxar para a razão para a normalidade, para a razão, e a
normalidade dá-me vómitos. Estarei tão alienado que consigo reflectir sobre a
minha doença e a normalidade dos
outros?
I
Desde que comecei a trabalhar aos 16 anos, que senti que algo
havia de profundamente errado no trabalho. Eram os braços doridos no Verão
quando nas férias grandes trabalhava junto com minha mãe numa fábrica. Não
percebia muito bem como podiam andar com olhar alegre as pessoas que lá
trabalhavam, quando todos tínhamos durante 8 horas de ficar retidos num
rectangular recinto.
Por detrás da gravidade da função via eu nos operários uma vida
que latejava, verdadeiramente humana, eram as intrigas, as gargalhadas, o choque
de gerações, as dinâmicas entre os sexos, as dinâmicas entre chefes e chefiados,
as novidades dos serviços e as relações com as máquinas, e todo o pano comum era
o de desempenhar um esforço para se poder levar para casa o sustento e sair de
cara lavada à rua perante os olhares judicativos dos outros, aqueles a quem
nunca confessaremos que o trabalho é uma canga com medo que pensem que somos
maluquinhos e nos relativizem. Nada há de pior que ser relativizado, ser
des-considerado no seio dos outros, é como não ter palavra a dizer. O
desconsiderado pode falar mas ninguém o leva a sério. É de certa forma afastado
do núcleo vivo da comunidade reduzido à única e mais abstracta categoria de ser
humano, é uma pessoa, mas sem poder político, sem capacidade de intervenção no
núcleo vivo que são as diversas redes de comunidade e cumplicidade que o
rodeiam. É em parte por isto que tanta gente se preocupa com a postura e as
atitudes em público, sob pena de fomentar confiança a mais ou medo de perder
relevância ou perder o tal poder político. A criança por exemplo era naquele
tempo um des-considerado, pois exprimia-se mas no fundo o que contava era a
sapiência fatal dos adultos que estavam convictos da sua maior experiência e
acerto de pensamento em relação à realidade, bem como o maior peso dos velhos
nessa partilha de uma visão fatal sobre a ‘vida’, sob expressões como
‘antigamente tinha-se de fazer assim ou assado, não é como hoje em
dia…’.
Estruturava-se assim no meio proletário uma das ínfimas gradações
que se podem olhar em mornas noites de Estio. A sabedoria dos velhos podia ser
útil como exemplo ou como base de dados. Hoje num mundo tão aparentemente
evoluído e frenético, os velhos são bens descartáveis. Excepto para a indústria
que os explora como isco.
No Verão seguinte comecei a formação em obras, com a pintura do
interior de uma vivenda entregue a 5 homens de diferentes idades e cuja ligação
suburbana passava por se conhecerem uns aos outros lá no bairro. Fazia tudo o
que me mandavam mas me diziam que me faltava fibra. Ao mais novo eu tentava
seduzir para assuntos mais pueris como observar a parede de outro ângulo ou a
colecção de isqueiros do dono da casa. Mas tal era evitado pelo seu medo de ser
incluído na mesma categoria de mascote que me pertencia, afinal uma não entrega
absoluta à missão significava a desconsideração de um mundo para o qual queria
entrar, o dos adultos.
A missão não me suscitava qualquer interesse, nem as conversas
que eram orientadas para a criação de boa disposição no desenrolar da jorna. Era
eu que ia buscar o tinto com sumol ao frigorífico, era o
aguadeiro.
Lavava os rolos, as trinchas, descarregava os sacos de cimento,
cuja minha inconsciência de adolescente, me fez querer também ser adulto, e nada
melhor que pegar em 50 quilos de Portland e ganhar uma hérnia discal para mais
tarde recordar.
Era insuportável a rotina de nada fazer, e ter de estar condenado
a estar ali, pese embora a solidariedade e bondade dos participantes, para
comigo. Não me seduzia a rotina, e era suportável porque sabia que mais um mês e
voltaria à escola. O trabalho era
sazonal.
Respeitava e admirava os companheiros que levavam a empreitada
adiante, e que se sacrificavam aparentemente sem esforço. Abominava a canga
monótona que nos conformava a
convivência.
Amealhados os trocos lá fui comprando a minha televisão e vídeo
vhs para ver filmes alugados nos clubes de vídeo
locais.
No ano a seguir já entrei para a função de acartar baldes de
massa para fazer a betonilha mas o vigor da idade não fazia sentir o cansaço e
mantinha-se o ânimo por poder
conviver com meus próximos
a execução fraterna de um propósito comum. O melhor do trabalho é mesmo o
convívio humano que através dele se vive.
Entre os meus camaradas de labuta as primeiras percepções de uma veia
coerciva pois a dignificação do trabalho nas conversas sobre política, nas
avaliações das personalidades de conhecidos comuns onde a disponibilidade para o
trabalho representa um valor moral, e onde o meu estranhamento residia por saber
que abomino a repetição e o trabalho forçado e abstracto, embora parecer ser o
único. Em que ponto é que o sujeito abdica da resistência e da revolta contra
essa imposição e a abraça incondicionalmente? Quando é que cada um cede e
transforma esta realidade coerciva num pilar judicativo da sua visão do
mundo?
Passa-se um ponto de ruptura ou é mais fácil ceder à evidência do
trabalho? No trabalho desde que se o aceite, se o ame, se o defenda, tudo é
fácil. Os encomiastas são considerados e ouvidos, positivamente discriminados,
porque aceitaram a evidência da vida.
Calões e preguiçosos, laboriosos e dinâmicos, senhores e servos,
cantam em uníssono esta melodia elogiosa. Falar contra o trabalho não é insulto,
é tolice.
Nem tão pouco não querer fazer nenhum. Insulto é não respeitar a
ritualidade do trabalho, a solenidade da sua realidade.’Serviço é serviço,
conhaque é conhaque’ e a vida é um enclave entre o mundo do labor e o
sono.
Empreiteiros passavam por mim e o tratamento não era o de igual
para igual, mas de alguém que se sente sentar em degraus acima, mesmo
concidadãos de mesma classe social, precisam de vincar a sua antiguidade ou
monopólio técnico de sapiência das coisas, numa clara estratificação que visa
estabelecer hierarquias que asseguram os operadores, protegendo contra o caos
da relatividade da condição humana. Sabendo cada um o seu lugar, nenhum se
perde, e o mundo aparece estruturado.
O patrão tem sempre razão especialmente quando é
cortejado.
Eram tempos folgados, o admirável mundo novo da riqueza aparente
tornava relativamente aprazível viver num ambiente sem pressão mas a rotina, a
repetição sem sentido de uma missão que não é para cumprir mas para ir
cumprindo, faziam-me ansiar por fazer algo em adulto que não passasse por
semelhante harmonia.
Foi a explosão da construção civil que arrastou também milhares
de trabalhadores de outros países para o novo el dorado de estuque rachado e
vigamento deficiente. Com eles chegaram os tempos das vacas magras pois a
competição lançou os preços por aí abaixo e foi cada vez mais difícil viver
condignamente.
Certas vezes vinha para casa de transportes e a repulsa pela
condição de trabalho braçal e sujo era patente nos olhos dos observadores que
se perdiam brevemente a avaliar o andrajoso jovem
como mais um condenado à mesma mediocridade especialmente numa altura em
que quem se vergava nos sectores tradicionais era considerado como
anacronismo.
Temia essas ocasiões e cheguei a levar roupa de casa para não
passar por isso. Outros companheiros faziam o mesmo. O olhar judicativo na
carreira de autocarro, e as poses de superioridade eram tão assertivos que uma
estátua de pedra se sentiria de manteiga na instalação
dúvida.
Trabalhar nas obras era considerado fracasso nesse distante
Portugal moderno. Os clientes que
contratavam os ‘nossos’ serviços tratavam com proximidade o patrão’ mas com
soberba os empregados. Acabei o secundário com esperanças de poder escapar a
esta lógica de hierarquização e desigualdade. Estava farto de escola e decidi
cumprir o meu serviço militar voluntariando-me. Repetição do mesmo, o melhor é
a camaradagem, o pior a contínua variação dos modos de tratamento, mesmo dentro
daqueles que teoricamente estariam em posições equivalentes. Já não passava já
por uma questão de garantir respeito, mas também de garantir uma visão acerca
de si e do seu valor, de acordo com a antiguidade ou a experiência. Os que
supostamente ocupavam as cúpulas do oficialato tratavam os de fundo de tabela
como epsilons do Huxley, ‘ó Zé nabo calcula-me lá isto’ mostrando por vezes uma
convicção latente de que a diferenciação em dignidade obedecia a factos
científicos de origem genética. Adorava o que fazia a maior parte das vezes e
não me lembro de negar a nada, insuflado que estava da crença de que servia o
meu país. Mas sentia que queria e tinha capacidade para algo mais exigente. Até
que nem fosse para garantir um pouco da dignidade de tratamento que desde a
adolescência me escapava. Talvez se fosse doutor e pudesse provar que não era
mais um, como me sentia tratado, pudesse finalmente viver em igualdade com os
homens. Estudei e entrei para a Universidade. Durante uns tempos não cabia em
mim de orgulho. Já não me sentia tanto com as diferenças de tratamento porque
agora fazia algo que só alguns faziam, e tinha sido seriado e até nem me tinha
saído nada mal.
O primeiro ano foi nulo, demorei-me a ambientar e acabei por ter
de sair da tropa já numa fase em que me sentia de igual para com os outros que
como eu tinham um curso superior, ou estavam em vias de o
ter.
Custear o meu percurso levou-me a trabalhar em cinemas, a fazer e
servir pipocas em contacto com o público, que quase nunca é simpático e tratam o
funcionário de forma mais displicente que o contratador de serviços. É difícil
levar a sério um trabalho onde a merda calha sempre aos mesmos e onde após
determinada absorção desse mesma matéria fecal, geralmente com exposições
prolongadas, se evoluiu para um patamar onde o que há a desempenhar não é tão
mau, e onde geralmente se começa a aprender o ofício de capataz, isto é a
incentivar coercivamente os outros para o trabalho. Algumas boas almas advogam
que se começa por baixo para aprender o ofício, mas em geral, evolui-se do
trabalho sujo para o ‘administrativo’ não parecendo haver relação entre por
exemplo a técnica de atender telefonemas e a função de gestão de um grupo de
operadores de atendimento, a não ser que a conversa telefónica transmita noções
de gestão. Ou seja, fora do discurso oficial o que existe é uma longa cadeia de
hierarquias que exigem mais obediência e interiorização do sistema vigente, que
propriamente competência. É esta a minha experiência.
Além de que sempre me interessou o facto de que os piores
trabalhos são os mais mal pagos. Alguns escudam-se na ideia de que quem estudou
merece recompensa. Eu e milhares de outros estudámos e não obtivemos nenhuma
recompensa que não comprar um bilhete de avião para voar daqui para fora.
Outros escudam-se na ideia de que houve uma aposta em cursos errados e os
madraços optaram pelos mais fáceis, mas lá fora, para onde se compra o bilhete
de avião, se pede inclusivamente aquilo que aqui não tem aceitação de
mercado.
Adiante, depois dos cinemas passei para a facilidade de empregos
no sector de recolha de lixo. Vulgarmente conhecido como ‘call centers’ onde
pernoitei 10 anos e com consequências psicológicas até hoje em mim perdurando.
Se me tivesse aguentado hoje poderia ser coordenador ou supervisor e quem sabe
até chefiar um departamento obscuro
qualquer.
Mas não conseguia, esforçava-me, mas o nó no estômago e as
náuseas colhiam a sua vítima a partir de determinado tempo. Umas vezes porque
não aguentava, outras porque mudava porque achava que tinha arranjado algo
melhor. Nunca estive ou queria estar de coração num sítio que não respeitava,
com a cultura burguesa de camisas engomadas por fora das calças de ganga que
cobriam sapatinhos de vela e espreitavam as poupas de gel e laca. Desprezava as
projecções de vida louca pelos bares da moda lisboeta, perpétua continuação da
aura de popularidade ou sucesso social que havia observado no secundário. Os
«populares» do call center eram os que conjugavam uma vida social
preenchida e uma sapiência fatal acerca de tudo o que se passava no serviço.
Eram os que impunham um respeito e mistificação pela hierarquia, pelos chefes,
ainda assim de forma mais rebuscada e serôdia que alguns dos professores
universitários que conheci que se referiam a colegas seus pela total extensão
dos títulos académicos.
O call center em que
trabalhava, tinha contrato com várias empresas de trabalho temporário, que
retinham dois terços do valor total pago, por cada operador. A função era
disponibilizar e disciplinar o recurso humano que serviria para dar a cara
perante o cliente, umas vezes para questões de funcionamento do serviço, outras
para mascarar as burradas cometidas em tanta mudança de gestão e chefias, a
níveis intermédios e superiores da corporação. Se algo funcionava, não era
garantia que pudesse continuar. Um pouco como as revoluções no Ministério da
Educação, cada gestor de topo queria deixar a sua marca e reformulava como lhe
apetecia, e o que era verdade num dia era mentira no outro. Na salinha
refeitório tínhamos água engarrafada e microondas para aquecer os tupperwares,
com arroz de frango ou massa com atum, ou o omnipresente arroz de tomate com
carapau frito.
No Natal havia uma festa da empresa onde os chefes
confraternizavam de igual para igual com os outros, que porreirice a deles, mas
geralmente só quem acreditava naquela merda é que
ia.
A maior parte estava ali para desenrascar alguma faceta da sua
vida e depois partia para algo melhor. A facilidade de emprego fazia-me despedir
e procurar outra coisa só encontrando aquilo de que eu havia fugido em primeiro
lugar. Mas adorei os tempos de escola, miúdas, cinema, livros e tudo isso. Dei
por mim a trabalhar para um banco a vender cartões de crédito, onde a solenidade
pelo serviço era acompanhada por um dinamismo de manga
arregaçada.
Era giro porque era obrigado a usar gravata. Quem me deu formação
foi uma loura bombástica que vestia sempre de branco e tinha uns mamilos
extrovertidos e grandes como botões de antigo amplificador hifi a válvulas.
Ensinou-me a mim e a a um companheiro de formação, que não acreditava na
fidelidade, e que não era fiel ao namorado, numa tentativa clara de angariar
séquito entre nós.
Em todos os centros de atendimento em que passei, havia a
promessa difusa de que se nos esforçássemos podíamos passar para funções
melhores, podíamos até vir a fazer parte do
clã.
Sempre tive pudor sobre essa determinação. Eu estudava o que
gostava e queria fazer o que gostava. Outros colegas meus tinham estudado para
ter o canudo, para no futuro poderem mostrar que tinham completado uma formação
e que a culpa seria do mercado por não os absorver. O curso era uma espécie de
cicatriz de guerra que revelava a dignidade e a reverência devida ao
combatente.
Ao menos tinham tentado e poderem lamentar-se da injustiça do
mundo era quase tão bom como ter ‘arranjado’ trabalho na sua área de
formação.
Enviava imensas propostas para a casa dos clientes mas eles não
compravam o cartão, apreciavam a minha simpatia mas não queriam aquilo, e uma
chamada de alguém que se queixou da dificuldade de gerir o ordenado e do peso
que seria o cartão, fez-me decidir a não colocar lá os pés nem a impingir aquilo
ao meu próximo.
Utilizei a animosidade entre mim e a coordenadora para formular
um desentendimento que servisse para justificar para mim e para outros o sair de
mais um emprego. Curioso como mesmo saindo de uma merda que sinto que me oprime,
não consigo deixar de me sentir
deprimido durante uns tempos.
Voguei umas temporadas sem trabalhar, ocasionalmente fazia uma
temporada num centro de apoio, mas gradualmente fui queimando o meu nome nas
empresas de trabalho temporário e um dos meus últimos foi num projecto pioneiro
que nunca saiu da fase de projecto, naquele que seria o primeiro operador de
telecomunicações a facultar videochamadas, e para o qual acorri, pensando que o
pioneirismo seria sinónimo de tratamento mais ético e responsável para com a
mão de obra barata. Nessa altura os TFT’s eram novidade e caros para caraças, e
cada computador tinha dois. Verifiquei assim que pude o material no computador
e verifiquei que tinha do mais barato por dentro. A coisa havia sido de facto
baseada na imagem e não me refiro á videochamada.
Os coordenadores eram seleccionados de forma que ainda hoje é
ignota, e por causa do pioenirismo do projecto, da sua fase inicial, sabiam
tanto ou menos que os operadores a quem davam formação. A sua maior mestria era
mesmo assente nos dotes teatrais com que assumiam a sua posição de capatazes,
por vezes com episódios deliciosos, como o Conguito a saltar ao lado de um
colega nosso a quem o computador prendou com a protecção de ecrã, e o Congas a
saltar e a gritar ‘Desliga isso, lá em baixo estão a disparar os alarmes!’ o
que revelou para nós duas coisas, que havia monitorização dos computadores, e
que o Congas não sabia o que era o fenómeno da protecção de
ecrã.
O Conguito era assim chamado por causa das horas que passava no
solário para ter um aspecto bem sucedido e saudável mesmo no Inverno. Tinha um
Golf preto com estofos de pele creme, e usava brilhantina no cabelo preto,
especialista em manter uma imagem que o colocasse em igualdade de dignidade da
namorada que o escolhera pelos mesmos motivos. Era também conhecido por ‘cu de
pato’ por causa da geometria arrojada dos seus glúteos, sob as calças caqui e
sapatos de vela que envergava invariavelmente a combinar com as suas camisas de
marca.
Havia também o Miguel, o gay de serviço que por causa de um
problema de pele, cheirava mal, e quando instado a tratar do assunto, por um
supervisor com o mesmo problema, foi fazer queixa da empresa por discriminação
homofóbica. Levava livros gigantescos e anotados de programação web, para
passar a imagem de tech sapiente, mas a sua inoportuna farsa deitava-lhe os
esforços por terra, pois ninguém lhe ligava nenhuma. A última vez que soube
dele era candidato do PSD, responsável e tão preocupado com o próximo, como
sempre,( ou seja nada) a uma
qualquer junta de freguesia dos subúrbios
lisboetas.
O centro de apoio estava pejado de personagens e a nexistência de
trabalho e a camaradagem desenvolvida fez-nos todos ficar lá até ao fim do
projecto. Lembro-me das matronas que tinham uma capacidade de projectar uma aura
de eficiência que era hipnótica, particularmente se contássemos os passos dados,
geralmente o dobro dos necessários para percorrer determinada distância. Uma
delas, psicóloga de formação, era uma águia na leitura dos jogos de poder e das
relações, e de a quem devia sorrir, encontrei-a mais tarde numa formação para um
emprego de treta, numa fase menos boa que tive, e era ela a formadora
comportamental, numa matéria que é sempre a mesma e que eu já cuspo pelas
orelhas. Notei que algo havia mudado, pois cumprimentei-a com dois beijos e um
abraço mesmo em cima da mão que me estendeu, ao que no decurso da formação
liguei o pc para ver o que se passava, foi admoestado, e durante a pausa para
café escapuli-me para não mais voltar.
Outro o Ruben, tentou uns anos mais tarde meter-me num esquema
Ponzie, a teresa julgo que prosseguiu no teatro, o Filó na televisão e outros
tantos que se dispersaram.
Farto da merda dos call centers dediquei-me a outro emprego de
entrada fácil, a vigilância privada. Duas semanas de formação numa empresa cujo
símbolo difere das demais, e sou colocado num cliente a fazer os turnos da
noite, de onde saio meio embriagado de sono preparando-me para dormir quando os
outros vão trabalhar. A empresa cliente recebia dinheiro do Estado para fazer
coisas ecológicas que eram averbadas e destruídas de seguida
para serem reutilizadas de novo para receber mais subsídios.
Muitas vezes saia directo para as aulas às 8 da manhã, e o professor não
queria dar matéria enquanto não aparecessem os meus colegas que não gostavam de
se levantar tão cedo, e passava o tempo a falar sobre o então primeiro ministro
que havia feito a sua licenciatura nos conturbados meandros de quando se
saneavam professores em períodos
revolucionários.
Acabou este emprego por ter consequências desastrosas a nível
académico e não consegui ter aproveitamento e perdi o
ano.
Saí dessa empresa e passei o restante ano dedicando-me só à
escola mas eis que surge a necessidade de pagar o passe social e outras coisas
para poder estudar e vejo-me de novo numa empresa de vigilância, desta feita
com nome de herbívoro. Dois dias de formação e sou colocado em Monsanto ao fim
de semana 14 horas de pé, orientando trânsito e perdendo mais tempo que o
normal para chegar por transportes públicos ao local, facto comunicado à chefia
e pela chefia ignorado, pois o compadrio fazia com que certos privilegiados
ficavam nos postos mais perto de Alcântara, e eu perdia 1 hora a pé e 2
esperando na paragem por ser colocado no cu de Judas do
Parque.
Ao contestar o facto, sou desconsiderado pelo superior, ao que
lhe indico que deve fazer o próximo serviço, pois eu não o farei. Entrego a
farda, e desejo boa sorte.
Por intermédio de amigo vou trabalhar para um part time em
empresa que me paga muito bem por 4 horas, e faço lá um ano inteiro, ia
inclusivé assinar contrato mais sério, quando num dia não contacto um cliente
que ostensivamente me falta ao respeito e por azar de lhe retorquir, fez queixa
à chefia de topo da empresa, que conhecia bem, e que lhe permitia entrar no
incumprimento que me levou ao contacto, e desta forma fui
despedido.
Sou contratado para um emprego que me havia sido vendido como
trabalhando com computadores, e no primeiro dia descarrego um camião de vidro,
com uma lágrima no olho por pensar nas horas que havia passado
a ler e a absorver alta cultura para um dia
ensinar.
O empresário que me contratou não sabia fazer crescer a empresa e
por isso alugou parte do espaço o que permitiu continuar a ser o senhor
patrão.
Pagava balúrdios por reparações informáticas insignificantes, mas
era picuinhas em tudo o resto. Fui-me mantendo porque até nem se ganhava mal,
até ao dia em que decidiu embrirrar com o desgraçado do meu companheiro de
turno, acossado por todos os outros colegas, só por ser alguém de calma índole,
e que não respondia a provocações.
Ao tratar mal o outro, lembrei-lhe calmamente que podia chamar a atenção
para o trabalho mas não rebaixar e insultar as pessoas a nível ordinário, ao que
ele se riu e praguejou, ora então o patrão não podia falar como quisesse com o
empregado na sua fábrica, e a coisa escalou a partir dali, acabando com ele a
insultar as minhas costas no momento em que lhas presenteei para me ir embora. A
intenção dele era levar o outro a despedir-se mas eu antecipei-me até porque já
estava farto do emprego onde por forretice, a máquina principal estava mal
construída e quase todas as semanas parava obrigando a que os empregados
desempenhassem funções perigosas e se desunhassem para a colocar de novo a
trabalhar. Eu havia-lo feito duas vezes quando era melhor deixá-la parada. Se o
patrão não queria saber não era eu que me ia ralar, e os meus colegas, que se
continuassem a divertir a conspirar uns contra os
outros.
Voltei lá uma semana depois com umas cervejas para me despedir e
deixei abraços a toda a gente.
Voltei a um call center, voltei a sair, entrei para um emprego
onde iam aproveitar as minhas competências informáticas, e a melhor forma que
encontraram para isso foi numa garagem fechado a confirmar e anotar números de
série de terminais portáteis de
pagamento.
Saído de lá voltei a trabalhar num call center desta feita para
outra empresa de comunicações que já me havia despedido, e que me fez abrir
recibos verdes. Trabalhei lá um mês, a rotina e a pressão não me davam
capacidade criadora, pelo contrário.
Decido tirar outro curso, nem sei bem para quê, e volto para a
vigilância de onde ainda não saí porque só a faço ao fim de
semana.
Sou um dos panhonhas da vida. Deves conhecer-me, vês-me na rua.
Sou uma daquelas pessoas que conheces e esqueces imediatamente sob o peso de um
juízo fácil e imediato.
«É um perdedor», um vale nada, um inapto, um triste, um
desgraçado, um zé ninguém, sentencias em
introspecção.
Penso que tens razão.
Não gosto de trabalhar.
Detesto.
Odeio o mundo do trabalho, pelo menos tal e qual o tenho
conhecido até agora.
A verdade do trabalho é uma verdade feita e mais santificada que
a necessidade de comer carne todos os
dias.
Não me vejo como particularmente rebelde nem particularmente
disfuncional. A necessidade que tenho de te dizer isto mostra-nos claramente
que começar uma cruzada contra o ‘trabalho’ é visto como rebeldia estéril ou
sinal de cabecinha fraca.
Dizes-me que também tu não gostas nada de trabalhar mas que tem
de ser. Que o mundo é assim e que tens de pagar a tua vida, que faz parte de ser
adulto, que se não trabalhamos nada aparece feito, morreríamos à fome,
ficaríamos parados a meio do progresso, que toda a gente tem de
trabalhar.
Quando insisto cedes e dizes-me para procurar qualquer coisa que
eu goste de fazer. Eu gosto de conspirar contra o
trabalho.
Dou comigo assustado quando sozinho na minha cabeça e após os
convívios, as gargalhadas, os discursos e as festas de natal, mergulho em
cogitações nas quais as companhias, os risos, as palavras e os rituais me
parecem um tal véu de ilusão, relativo mas absoluto, um andar intermédio onde
todos vivem e no qual escolho retirar-me para viver numa cave auscultando a
vida perene e falsa do andar de cima.
Assusto-me com a certeza que tenho que os outros é que estão
enganados. Por isso pago.
Pago com provocações, discussões constantes, desconsiderações, e
sou de certa forma ostracizado, estrangeiro na minha vizinhança, porque pura e
simplesmente não me consigo limitar a fingir que vivo como todos, e forço-me a
engolir a revolta que guardo dentro de
mim.
Em meu redor se encontra tecida uma teia, uma rede de relações
humanas que me tentam puxar para a razão para a normalidade, para a razão, e a
normalidade dá-me vómitos. Estarei tão alienado que consigo reflectir sobre a
minha doença e a normalidade dos
outros?
I
Desde que comecei a trabalhar aos 16 anos, que senti que algo
havia de profundamente errado no trabalho. Eram os braços doridos no Verão
quando nas férias grandes trabalhava junto com minha mãe numa fábrica. Não
percebia muito bem como podiam andar com olhar alegre as pessoas que lá
trabalhavam, quando todos tínhamos durante 8 horas de ficar retidos num
rectangular recinto.
Por detrás da gravidade da função via eu nos operários uma vida
que latejava, verdadeiramente humana, eram as intrigas, as gargalhadas, o choque
de gerações, as dinâmicas entre os sexos, as dinâmicas entre chefes e chefiados,
as novidades dos serviços e as relações com as máquinas, e todo o pano comum era
o de desempenhar um esforço para se poder levar para casa o sustento e sair de
cara lavada à rua perante os olhares judicativos dos outros, aqueles a quem
nunca confessaremos que o trabalho é uma canga com medo que pensem que somos
maluquinhos e nos relativizem. Nada há de pior que ser relativizado, ser
des-considerado no seio dos outros, é como não ter palavra a dizer. O
desconsiderado pode falar mas ninguém o leva a sério. É de certa forma afastado
do núcleo vivo da comunidade reduzido à única e mais abstracta categoria de ser
humano, é uma pessoa, mas sem poder político, sem capacidade de intervenção no
núcleo vivo que são as diversas redes de comunidade e cumplicidade que o
rodeiam. É em parte por isto que tanta gente se preocupa com a postura e as
atitudes em público, sob pena de fomentar confiança a mais ou medo de perder
relevância ou perder o tal poder político. A criança por exemplo era naquele
tempo um des-considerado, pois exprimia-se mas no fundo o que contava era a
sapiência fatal dos adultos que estavam convictos da sua maior experiência e
acerto de pensamento em relação à realidade, bem como o maior peso dos velhos
nessa partilha de uma visão fatal sobre a ‘vida’, sob expressões como
‘antigamente tinha-se de fazer assim ou assado, não é como hoje em
dia…’.
Estruturava-se assim no meio proletário uma das ínfimas gradações
que se podem olhar em mornas noites de Estio. A sabedoria dos velhos podia ser
útil como exemplo ou como base de dados. Hoje num mundo tão aparentemente
evoluído e frenético, os velhos são bens descartáveis. Excepto para a indústria
que os explora como isco.
No Verão seguinte comecei a formação em obras, com a pintura do
interior de uma vivenda entregue a 5 homens de diferentes idades e cuja ligação
suburbana passava por se conhecerem uns aos outros lá no bairro. Fazia tudo o
que me mandavam mas me diziam que me faltava fibra. Ao mais novo eu tentava
seduzir para assuntos mais pueris como observar a parede de outro ângulo ou a
colecção de isqueiros do dono da casa. Mas tal era evitado pelo seu medo de ser
incluído na mesma categoria de mascote que me pertencia, afinal uma não entrega
absoluta à missão significava a desconsideração de um mundo para o qual queria
entrar, o dos adultos.
A missão não me suscitava qualquer interesse, nem as conversas
que eram orientadas para a criação de boa disposição no desenrolar da jorna. Era
eu que ia buscar o tinto com sumol ao frigorífico, era o
aguadeiro.
Lavava os rolos, as trinchas, descarregava os sacos de cimento,
cuja minha inconsciência de adolescente, me fez querer também ser adulto, e nada
melhor que pegar em 50 quilos de Portland e ganhar uma hérnia discal para mais
tarde recordar.
Era insuportável a rotina de nada fazer, e ter de estar condenado
a estar ali, pese embora a solidariedade e bondade dos participantes, para
comigo. Não me seduzia a rotina, e era suportável porque sabia que mais um mês e
voltaria à escola. O trabalho era
sazonal.
Respeitava e admirava os companheiros que levavam a empreitada
adiante, e que se sacrificavam aparentemente sem esforço. Abominava a canga
monótona que nos conformava a
convivência.
Amealhados os trocos lá fui comprando a minha televisão e vídeo
vhs para ver filmes alugados nos clubes de vídeo
locais.
No ano a seguir já entrei para a função de acartar baldes de
massa para fazer a betonilha mas o vigor da idade não fazia sentir o cansaço e
mantinha-se o ânimo por poder
conviver com meus próximos
a execução fraterna de um propósito comum. O melhor do trabalho é mesmo o
convívio humano que através dele se vive.
Entre os meus camaradas de labuta as primeiras percepções de uma veia
coerciva pois a dignificação do trabalho nas conversas sobre política, nas
avaliações das personalidades de conhecidos comuns onde a disponibilidade para o
trabalho representa um valor moral, e onde o meu estranhamento residia por saber
que abomino a repetição e o trabalho forçado e abstracto, embora parecer ser o
único. Em que ponto é que o sujeito abdica da resistência e da revolta contra
essa imposição e a abraça incondicionalmente? Quando é que cada um cede e
transforma esta realidade coerciva num pilar judicativo da sua visão do
mundo?
Passa-se um ponto de ruptura ou é mais fácil ceder à evidência do
trabalho? No trabalho desde que se o aceite, se o ame, se o defenda, tudo é
fácil. Os encomiastas são considerados e ouvidos, positivamente discriminados,
porque aceitaram a evidência da vida.
Calões e preguiçosos, laboriosos e dinâmicos, senhores e servos,
cantam em uníssono esta melodia elogiosa. Falar contra o trabalho não é insulto,
é tolice.
Nem tão pouco não querer fazer nenhum. Insulto é não respeitar a
ritualidade do trabalho, a solenidade da sua realidade.’Serviço é serviço,
conhaque é conhaque’ e a vida é um enclave entre o mundo do labor e o
sono.
Empreiteiros passavam por mim e o tratamento não era o de igual
para igual, mas de alguém que se sente sentar em degraus acima, mesmo
concidadãos de mesma classe social, precisam de vincar a sua antiguidade ou
monopólio técnico de sapiência das coisas, numa clara estratificação que visa
estabelecer hierarquias que asseguram os operadores, protegendo contra o caos
da relatividade da condição humana. Sabendo cada um o seu lugar, nenhum se
perde, e o mundo aparece estruturado.
O patrão tem sempre razão especialmente quando é
cortejado.
Eram tempos folgados, o admirável mundo novo da riqueza aparente
tornava relativamente aprazível viver num ambiente sem pressão mas a rotina, a
repetição sem sentido de uma missão que não é para cumprir mas para ir
cumprindo, faziam-me ansiar por fazer algo em adulto que não passasse por
semelhante harmonia.
Foi a explosão da construção civil que arrastou também milhares
de trabalhadores de outros países para o novo el dorado de estuque rachado e
vigamento deficiente. Com eles chegaram os tempos das vacas magras pois a
competição lançou os preços por aí abaixo e foi cada vez mais difícil viver
condignamente.
Certas vezes vinha para casa de transportes e a repulsa pela
condição de trabalho braçal e sujo era patente nos olhos dos observadores que
se perdiam brevemente a avaliar o andrajoso jovem
como mais um condenado à mesma mediocridade especialmente numa altura em
que quem se vergava nos sectores tradicionais era considerado como
anacronismo.
Temia essas ocasiões e cheguei a levar roupa de casa para não
passar por isso. Outros companheiros faziam o mesmo. O olhar judicativo na
carreira de autocarro, e as poses de superioridade eram tão assertivos que uma
estátua de pedra se sentiria de manteiga na instalação
dúvida.
Trabalhar nas obras era considerado fracasso nesse distante
Portugal moderno. Os clientes que
contratavam os ‘nossos’ serviços tratavam com proximidade o patrão’ mas com
soberba os empregados. Acabei o secundário com esperanças de poder escapar a
esta lógica de hierarquização e desigualdade. Estava farto de escola e decidi
cumprir o meu serviço militar voluntariando-me. Repetição do mesmo, o melhor é
a camaradagem, o pior a contínua variação dos modos de tratamento, mesmo dentro
daqueles que teoricamente estariam em posições equivalentes. Já não passava já
por uma questão de garantir respeito, mas também de garantir uma visão acerca
de si e do seu valor, de acordo com a antiguidade ou a experiência. Os que
supostamente ocupavam as cúpulas do oficialato tratavam os de fundo de tabela
como epsilons do Huxley, ‘ó Zé nabo calcula-me lá isto’ mostrando por vezes uma
convicção latente de que a diferenciação em dignidade obedecia a factos
científicos de origem genética. Adorava o que fazia a maior parte das vezes e
não me lembro de negar a nada, insuflado que estava da crença de que servia o
meu país. Mas sentia que queria e tinha capacidade para algo mais exigente. Até
que nem fosse para garantir um pouco da dignidade de tratamento que desde a
adolescência me escapava. Talvez se fosse doutor e pudesse provar que não era
mais um, como me sentia tratado, pudesse finalmente viver em igualdade com os
homens. Estudei e entrei para a Universidade. Durante uns tempos não cabia em
mim de orgulho. Já não me sentia tanto com as diferenças de tratamento porque
agora fazia algo que só alguns faziam, e tinha sido seriado e até nem me tinha
saído nada mal.
O primeiro ano foi nulo, demorei-me a ambientar e acabei por ter
de sair da tropa já numa fase em que me sentia de igual para com os outros que
como eu tinham um curso superior, ou estavam em vias de o
ter.
Custear o meu percurso levou-me a trabalhar em cinemas, a fazer e
servir pipocas em contacto com o público, que quase nunca é simpático e tratam o
funcionário de forma mais displicente que o contratador de serviços. É difícil
levar a sério um trabalho onde a merda calha sempre aos mesmos e onde após
determinada absorção desse mesma matéria fecal, geralmente com exposições
prolongadas, se evoluiu para um patamar onde o que há a desempenhar não é tão
mau, e onde geralmente se começa a aprender o ofício de capataz, isto é a
incentivar coercivamente os outros para o trabalho. Algumas boas almas advogam
que se começa por baixo para aprender o ofício, mas em geral, evolui-se do
trabalho sujo para o ‘administrativo’ não parecendo haver relação entre por
exemplo a técnica de atender telefonemas e a função de gestão de um grupo de
operadores de atendimento, a não ser que a conversa telefónica transmita noções
de gestão. Ou seja, fora do discurso oficial o que existe é uma longa cadeia de
hierarquias que exigem mais obediência e interiorização do sistema vigente, que
propriamente competência. É esta a minha experiência.
Além de que sempre me interessou o facto de que os piores
trabalhos são os mais mal pagos. Alguns escudam-se na ideia de que quem estudou
merece recompensa. Eu e milhares de outros estudámos e não obtivemos nenhuma
recompensa que não comprar um bilhete de avião para voar daqui para fora.
Outros escudam-se na ideia de que houve uma aposta em cursos errados e os
madraços optaram pelos mais fáceis, mas lá fora, para onde se compra o bilhete
de avião, se pede inclusivamente aquilo que aqui não tem aceitação de
mercado.
Adiante, depois dos cinemas passei para a facilidade de empregos
no sector de recolha de lixo. Vulgarmente conhecido como ‘call centers’ onde
pernoitei 10 anos e com consequências psicológicas até hoje em mim perdurando.
Se me tivesse aguentado hoje poderia ser coordenador ou supervisor e quem sabe
até chefiar um departamento obscuro
qualquer.
Mas não conseguia, esforçava-me, mas o nó no estômago e as
náuseas colhiam a sua vítima a partir de determinado tempo. Umas vezes porque
não aguentava, outras porque mudava porque achava que tinha arranjado algo
melhor. Nunca estive ou queria estar de coração num sítio que não respeitava,
com a cultura burguesa de camisas engomadas por fora das calças de ganga que
cobriam sapatinhos de vela e espreitavam as poupas de gel e laca. Desprezava as
projecções de vida louca pelos bares da moda lisboeta, perpétua continuação da
aura de popularidade ou sucesso social que havia observado no secundário. Os
«populares» do call center eram os que conjugavam uma vida social
preenchida e uma sapiência fatal acerca de tudo o que se passava no serviço.
Eram os que impunham um respeito e mistificação pela hierarquia, pelos chefes,
ainda assim de forma mais rebuscada e serôdia que alguns dos professores
universitários que conheci que se referiam a colegas seus pela total extensão
dos títulos académicos.
O call center em que
trabalhava, tinha contrato com várias empresas de trabalho temporário, que
retinham dois terços do valor total pago, por cada operador. A função era
disponibilizar e disciplinar o recurso humano que serviria para dar a cara
perante o cliente, umas vezes para questões de funcionamento do serviço, outras
para mascarar as burradas cometidas em tanta mudança de gestão e chefias, a
níveis intermédios e superiores da corporação. Se algo funcionava, não era
garantia que pudesse continuar. Um pouco como as revoluções no Ministério da
Educação, cada gestor de topo queria deixar a sua marca e reformulava como lhe
apetecia, e o que era verdade num dia era mentira no outro. Na salinha
refeitório tínhamos água engarrafada e microondas para aquecer os tupperwares,
com arroz de frango ou massa com atum, ou o omnipresente arroz de tomate com
carapau frito.
No Natal havia uma festa da empresa onde os chefes
confraternizavam de igual para igual com os outros, que porreirice a deles, mas
geralmente só quem acreditava naquela merda é que
ia.
A maior parte estava ali para desenrascar alguma faceta da sua
vida e depois partia para algo melhor. A facilidade de emprego fazia-me despedir
e procurar outra coisa só encontrando aquilo de que eu havia fugido em primeiro
lugar. Mas adorei os tempos de escola, miúdas, cinema, livros e tudo isso. Dei
por mim a trabalhar para um banco a vender cartões de crédito, onde a solenidade
pelo serviço era acompanhada por um dinamismo de manga
arregaçada.
Era giro porque era obrigado a usar gravata. Quem me deu formação
foi uma loura bombástica que vestia sempre de branco e tinha uns mamilos
extrovertidos e grandes como botões de antigo amplificador hifi a válvulas.
Ensinou-me a mim e a a um companheiro de formação, que não acreditava na
fidelidade, e que não era fiel ao namorado, numa tentativa clara de angariar
séquito entre nós.
Em todos os centros de atendimento em que passei, havia a
promessa difusa de que se nos esforçássemos podíamos passar para funções
melhores, podíamos até vir a fazer parte do
clã.
Sempre tive pudor sobre essa determinação. Eu estudava o que
gostava e queria fazer o que gostava. Outros colegas meus tinham estudado para
ter o canudo, para no futuro poderem mostrar que tinham completado uma formação
e que a culpa seria do mercado por não os absorver. O curso era uma espécie de
cicatriz de guerra que revelava a dignidade e a reverência devida ao
combatente.
Ao menos tinham tentado e poderem lamentar-se da injustiça do
mundo era quase tão bom como ter ‘arranjado’ trabalho na sua área de
formação.
Enviava imensas propostas para a casa dos clientes mas eles não
compravam o cartão, apreciavam a minha simpatia mas não queriam aquilo, e uma
chamada de alguém que se queixou da dificuldade de gerir o ordenado e do peso
que seria o cartão, fez-me decidir a não colocar lá os pés nem a impingir aquilo
ao meu próximo.
Utilizei a animosidade entre mim e a coordenadora para formular
um desentendimento que servisse para justificar para mim e para outros o sair de
mais um emprego. Curioso como mesmo saindo de uma merda que sinto que me oprime,
não consigo deixar de me sentir
deprimido durante uns tempos.
Voguei umas temporadas sem trabalhar, ocasionalmente fazia uma
temporada num centro de apoio, mas gradualmente fui queimando o meu nome nas
empresas de trabalho temporário e um dos meus últimos foi num projecto pioneiro
que nunca saiu da fase de projecto, naquele que seria o primeiro operador de
telecomunicações a facultar videochamadas, e para o qual acorri, pensando que o
pioneirismo seria sinónimo de tratamento mais ético e responsável para com a
mão de obra barata. Nessa altura os TFT’s eram novidade e caros para caraças, e
cada computador tinha dois. Verifiquei assim que pude o material no computador
e verifiquei que tinha do mais barato por dentro. A coisa havia sido de facto
baseada na imagem e não me refiro á videochamada.
Os coordenadores eram seleccionados de forma que ainda hoje é
ignota, e por causa do pioenirismo do projecto, da sua fase inicial, sabiam
tanto ou menos que os operadores a quem davam formação. A sua maior mestria era
mesmo assente nos dotes teatrais com que assumiam a sua posição de capatazes,
por vezes com episódios deliciosos, como o Conguito a saltar ao lado de um
colega nosso a quem o computador prendou com a protecção de ecrã, e o Congas a
saltar e a gritar ‘Desliga isso, lá em baixo estão a disparar os alarmes!’ o
que revelou para nós duas coisas, que havia monitorização dos computadores, e
que o Congas não sabia o que era o fenómeno da protecção de
ecrã.
O Conguito era assim chamado por causa das horas que passava no
solário para ter um aspecto bem sucedido e saudável mesmo no Inverno. Tinha um
Golf preto com estofos de pele creme, e usava brilhantina no cabelo preto,
especialista em manter uma imagem que o colocasse em igualdade de dignidade da
namorada que o escolhera pelos mesmos motivos. Era também conhecido por ‘cu de
pato’ por causa da geometria arrojada dos seus glúteos, sob as calças caqui e
sapatos de vela que envergava invariavelmente a combinar com as suas camisas de
marca.
Havia também o Miguel, o gay de serviço que por causa de um
problema de pele, cheirava mal, e quando instado a tratar do assunto, por um
supervisor com o mesmo problema, foi fazer queixa da empresa por discriminação
homofóbica. Levava livros gigantescos e anotados de programação web, para
passar a imagem de tech sapiente, mas a sua inoportuna farsa deitava-lhe os
esforços por terra, pois ninguém lhe ligava nenhuma. A última vez que soube
dele era candidato do PSD, responsável e tão preocupado com o próximo, como
sempre,( ou seja nada) a uma
qualquer junta de freguesia dos subúrbios
lisboetas.
O centro de apoio estava pejado de personagens e a nexistência de
trabalho e a camaradagem desenvolvida fez-nos todos ficar lá até ao fim do
projecto. Lembro-me das matronas que tinham uma capacidade de projectar uma aura
de eficiência que era hipnótica, particularmente se contássemos os passos dados,
geralmente o dobro dos necessários para percorrer determinada distância. Uma
delas, psicóloga de formação, era uma águia na leitura dos jogos de poder e das
relações, e de a quem devia sorrir, encontrei-a mais tarde numa formação para um
emprego de treta, numa fase menos boa que tive, e era ela a formadora
comportamental, numa matéria que é sempre a mesma e que eu já cuspo pelas
orelhas. Notei que algo havia mudado, pois cumprimentei-a com dois beijos e um
abraço mesmo em cima da mão que me estendeu, ao que no decurso da formação
liguei o pc para ver o que se passava, foi admoestado, e durante a pausa para
café escapuli-me para não mais voltar.
Outro o Ruben, tentou uns anos mais tarde meter-me num esquema
Ponzie, a teresa julgo que prosseguiu no teatro, o Filó na televisão e outros
tantos que se dispersaram.
Farto da merda dos call centers dediquei-me a outro emprego de
entrada fácil, a vigilância privada. Duas semanas de formação numa empresa cujo
símbolo difere das demais, e sou colocado num cliente a fazer os turnos da
noite, de onde saio meio embriagado de sono preparando-me para dormir quando os
outros vão trabalhar. A empresa cliente recebia dinheiro do Estado para fazer
coisas ecológicas que eram averbadas e destruídas de seguida
para serem reutilizadas de novo para receber mais subsídios.
Muitas vezes saia directo para as aulas às 8 da manhã, e o professor não
queria dar matéria enquanto não aparecessem os meus colegas que não gostavam de
se levantar tão cedo, e passava o tempo a falar sobre o então primeiro ministro
que havia feito a sua licenciatura nos conturbados meandros de quando se
saneavam professores em períodos
revolucionários.
Acabou este emprego por ter consequências desastrosas a nível
académico e não consegui ter aproveitamento e perdi o
ano.
Saí dessa empresa e passei o restante ano dedicando-me só à
escola mas eis que surge a necessidade de pagar o passe social e outras coisas
para poder estudar e vejo-me de novo numa empresa de vigilância, desta feita
com nome de herbívoro. Dois dias de formação e sou colocado em Monsanto ao fim
de semana 14 horas de pé, orientando trânsito e perdendo mais tempo que o
normal para chegar por transportes públicos ao local, facto comunicado à chefia
e pela chefia ignorado, pois o compadrio fazia com que certos privilegiados
ficavam nos postos mais perto de Alcântara, e eu perdia 1 hora a pé e 2
esperando na paragem por ser colocado no cu de Judas do
Parque.
Ao contestar o facto, sou desconsiderado pelo superior, ao que
lhe indico que deve fazer o próximo serviço, pois eu não o farei. Entrego a
farda, e desejo boa sorte.
Por intermédio de amigo vou trabalhar para um part time em
empresa que me paga muito bem por 4 horas, e faço lá um ano inteiro, ia
inclusivé assinar contrato mais sério, quando num dia não contacto um cliente
que ostensivamente me falta ao respeito e por azar de lhe retorquir, fez queixa
à chefia de topo da empresa, que conhecia bem, e que lhe permitia entrar no
incumprimento que me levou ao contacto, e desta forma fui
despedido.
Sou contratado para um emprego que me havia sido vendido como
trabalhando com computadores, e no primeiro dia descarrego um camião de vidro,
com uma lágrima no olho por pensar nas horas que havia passado
a ler e a absorver alta cultura para um dia
ensinar.
O empresário que me contratou não sabia fazer crescer a empresa e
por isso alugou parte do espaço o que permitiu continuar a ser o senhor
patrão.
Pagava balúrdios por reparações informáticas insignificantes, mas
era picuinhas em tudo o resto. Fui-me mantendo porque até nem se ganhava mal,
até ao dia em que decidiu embrirrar com o desgraçado do meu companheiro de
turno, acossado por todos os outros colegas, só por ser alguém de calma índole,
e que não respondia a provocações.
Ao tratar mal o outro, lembrei-lhe calmamente que podia chamar a atenção
para o trabalho mas não rebaixar e insultar as pessoas a nível ordinário, ao que
ele se riu e praguejou, ora então o patrão não podia falar como quisesse com o
empregado na sua fábrica, e a coisa escalou a partir dali, acabando com ele a
insultar as minhas costas no momento em que lhas presenteei para me ir embora. A
intenção dele era levar o outro a despedir-se mas eu antecipei-me até porque já
estava farto do emprego onde por forretice, a máquina principal estava mal
construída e quase todas as semanas parava obrigando a que os empregados
desempenhassem funções perigosas e se desunhassem para a colocar de novo a
trabalhar. Eu havia-lo feito duas vezes quando era melhor deixá-la parada. Se o
patrão não queria saber não era eu que me ia ralar, e os meus colegas, que se
continuassem a divertir a conspirar uns contra os
outros.
Voltei lá uma semana depois com umas cervejas para me despedir e
deixei abraços a toda a gente.
Voltei a um call center, voltei a sair, entrei para um emprego
onde iam aproveitar as minhas competências informáticas, e a melhor forma que
encontraram para isso foi numa garagem fechado a confirmar e anotar números de
série de terminais portáteis de
pagamento.
Saído de lá voltei a trabalhar num call center desta feita para
outra empresa de comunicações que já me havia despedido, e que me fez abrir
recibos verdes. Trabalhei lá um mês, a rotina e a pressão não me davam
capacidade criadora, pelo contrário.
Decido tirar outro curso, nem sei bem para quê, e volto para a
vigilância de onde ainda não saí porque só a faço ao fim de
semana.