Ninguém o previra. Finalmente nos milhares de aldeias em Choraquelogobebes’, alguém havia apagado a luz.
Quando soou o meu rádio às sete da matina, como sempre, não escutei a música de elevar o mood rotineira que a rádio generalista que ouço, passa.
Em vez disso, pareceu-me ouvir um comunicado sério, pelo tom da voz e intercalados de silêncio dos amigos amigáveis, locutores e outros modelos de voz que também são humoristas.
Mais uma história de corrupção, pensei eu, agora quase todos os dias havia uma nova, quanto mais ingovernável se tornava o país. Várias vezes pensei que a coisa era tão bem feita que os jornalistas nunca descobriam em tempo útil as maroscas, por mais amplitude que tivessem, e por algum acaso do destino, os escândalos coincidiam sempre numa espécie de transe de ping pong, ora agora se descobre uma do partido A, ora se descobre uma do partido A alínea.
Essas histórias exaltam-me, embora eu já devesse estar preparado para elas. Levanto-me a contragosto chocando com o armário, solto um palavrão. Aproveitei a erecção que sempre me saúda de manhã e masturbo-me no chuveiro ao som de água quente, redobrando a concentração pois o termoacumulador só me permite um banho de 6 minutos de água quente.
Comi o meu pacote de bolachas espanholas transgénicas espanholas baratas que vêm sempre todas partidas dentro do pacote, bebi o meu leite de soja transgénica biológica produzida numa fábrica qualquer alemã, e fui trabalhar.
Os supermercados abrem cedo e eu tenho de começar às nove da manhã a satisfazer clientes que gostam de fazer as compras cedo.
Assim que meti a chave no meu corsa de 89 a gasóleo e ferrugem, percebi que algo não estava bem. As ruas estavam desertas e àquela hora não era normal. A urbanização onde arrendei um T0 fica perto de uma das entradas de um dos muitos IC’s onde milhares de pessoas perdem todos os dias horas de vida.
Como metástases de alcatrão, as turbinas dos subúrbios comprimem em feixes de vermelho stop e branco médio os sonolentos proletários para dentro fora e em redor da metrópole.
Hoje não.
Onde se tinham metido todos? Seria feriado? Seria fim-de-semana? Trabalhar por turnos por vezes desorienta-me. Seria dia de jogo de derby ou selecção? Tolice, não há jogos de bola a esta hora.
Comecei a tentar lembrar-me do comunicado da rádio a que não tinha prestado atenção, talvez tivesse algo a ver com isso. Os amigos amigáveis da rádio que conseguem ficar horas a falar de assuntos assexuados e imbecilizantes, nunca ficam sérios a não ser quando morre alguma pessoa importante, diferente das outras, do mundo da música, ou do cinema. Parei numa bomba de gasolina, também ela vazia, para meter gasóleo e perceber o que se estava a passar. Fiquei à entrada com o motor no ralentim, olhando tudo vazio, sem os habituais clientes em fila indiana como aquelas que antes da queda do Muro víamos para o pão.
Fiquei mais calmo quando observei aqui e além a passagem de um camião ou carrinha comercial tresmalhada, mas assustadoramente longe da quantidade habitual, ia chegar cedo demais ao trabalho.
Um pudor de passar por parvo me impediu de sair do carro e ir ao guichet perguntar o que se passava. Lembrei-me como quem se lembra de tocar na cabeça procurando os óculos que lá estão, que tinha rádio no carro. Saquei-lhe o rosto de dentro do porta-luvas e copulei-o ligando-o de imediato.
Azar o meu eram oito e meia e não dariam notícias a esta hora a não ser que fosse mesmo muito grave. Todas as rádios transmitiam o mesmo. Repetições de um comunicado numa voz que reconheci ser a voz do ‘nosso primeiro’ ou a de vários ruminadores criativos, que são aquelas personagens que na rádio, TV ou jornais comentam tudo, ruminam os assuntos apresentam fábulas elaboradas a partir dos assuntos ensinando-nos a nós ouvintes, leitores e espectadores o que devemos ver, ler e pensar.
Portugal saíra da União Europeia e de uma assentada mudara de moeda, de novo para o escudo. Não podia crer. Aquilo que eu tanto desejara e discutira defendendo em cafés e redes sociais, havia acontecido.
II
Foda-se.
Não conseguia deixar de ficar apreensivo.
Instalou-se uma angústia na garganta, não conseguia engolir ou respirar como deve de ser. Pensei nas minhas certezas anteriores e na minha angústia presente, afinal parece que as minhas certezas eram de ressaca, ou então agora começava a temer pelo futuro fora do quente das asas da mãe galinha Europa.
Foda-se e agora? Que se vai passar agora?
Aquele cabrão fez o que havia dito, e isso é algo que não é costume vermos num político.
O ‘nosso primeiro’ havia saído de um dos pardieiros da capital, havia começado com um blogue que se tornou referência nas críticas ao rotativismo indecente da nossa partidocracia que continua a tradição de ambas as faces da opressão secular neste jardim à beira-mar plantado, a nobreza e clero, e a burguesia, que sempre conduzem a sua valsa conjunta ao som de palmas dos pobres diabos que lhes dão invejosamente lugar de destaque. Este gajo conseguira conjugar a esquerda nacional, apenas enfrentando as naturais resistências a Norte do Mondego, mas depois dos motins de Matosinhos, bastou falar em fim de fome e tropa na rua e começou a ser visto com outros olhos.
As memórias setentrionais tradicionalistas foram trucidadas pelos 300 000 mortos daquilo que ficou conhecido como os ‘Motins de Matosinhos’. Isto abriu finalmente os minifundiários a um discurso revolucionário até porque a terra já não valia nada debaixo do peso dos eucaliptos secos. Agora podiam dar-se ao luxo de ser revolucionários, e não houve família a quem não morresse alguém nesse pesadelo.
A fuga repentina do interior para a área metropolitana a Norte do Porto, de milhares de pessoas que fugiam à fome de duas semanas de supermercados vazios, por causa da falta de dinheiro para pagar a fornecedores, conjugada com uma greve franco espanhola de camionistas, e de estivadores, fez com que o caos surgisse. Saque em supermercados, conflitos generalizados, a situação tornou-se insustentável, mas foi só com as rapinas destruidoras das grandes superfícies do capital que o governo decidiu agir colocando a tropa na rua, defendendo a propriedade de uns contra a fome e raiva de outros. O mexilhão é sempre a parte da corda que parte e esta trágica odisseia só termina com milhares mortos nos confrontos com as forças de segurança, e no fatídico mês de Maio, as vagas migratórias de esfomeados param junto ao mar afamado da costa entre Viana e Porto, conhecida pelo peixe que já havia sido todo eliminado pelo arrasto, mas os pobres moribundos ainda tinham a esperança de não deixar os filhos morrer à fome com o recurso natural que pensavam ainda existir.
O mar sem peixe, a terra sem combustível e sem hortofrutícolas, atapetaram-se as estradas com esquálidos cadáveres, e as casas com barricadas e tábuas nas portas e janelas e os proprietários com caçadeiras na mão defendendo a sua propriedade dos desesperados deambulantes. Mobilizaram-se algumas tendas de campanha, a que chamaram hospitais, a ONU lançou alguns aviões para distribuir comida fora do prazo de qualidade, mas era tarde demais. A própria Europa estava a fervilhar com a aliança franco espanhola contra os ‘teutões’ e a Inglaterra avaliando a aliança que teria de fazer para menorizar o poder dos dois blocos que se estavam a formar. A Comissão Europeia limitou-se a manifestar um voto de pesar e a sugerir que era o resultado de demasiada intervenção do Estado, que se fosse o mercado a regular a 110 por cento a economia, não teriam morrido 300.000 pessoas.
A resposta titubeante do governo em exercício, culpou-o com imagens de fundo de corpos em decomposição e gaivotas sobre eles, velhos, crianças e mulheres.
Assim que ouvi o agora ‘nosso primeiro’ detestei-o por causa do discurso demagogo. Eu que sempre havia votado numa esquerda responsável, odiava-lo mais que á direita.
Pareceu-me dizer o que queríamos ouvir. Que o povo estava primeiro, que o governo tinha de ser patriótico, que assumir responsabilidades era mais que pagar contas e que cada um era responsável pela situação a que se chegou. Os proprietários e os conservadores ridicularizaram-no e as estações televisivas apresentavam sondagens em que ele nem aparecia. Ele lá ganhou, talvez ninguém achasse que o voto-castigo o elegesse mas pelos vistos muita gente pensou o mesmo.
Nem os discursos do pós-operatório das direitas e esquerdas ‘responsáveis e serenas’ com fatos sedosos e alianças bem visíveis nas mãos sobre os braços um no outro apoiados em poses de empresário, ameaçando com futuros sombrios, cenários de apocalipse, mas tudo isso foi ofuscado pela súbita e enérgica intervenção da União Europeia, que enviou não só fundos para financiar a campanha conservadora, como recados e ameaças de ‘repercussões’ a qualquer ameaça à desintegração do monstro em que se tornou. O ‘nosso primeiro’ na altura respondeu que ‘Se a União Europeia não conseguia ajudar a salvar 300.000 esfomeados não se devia preocupar com um mercado de 500 milhões.’ Houve um comissário qualquer que sugeriu a possibilidade de uma intervenção militar, mas depois mudou à voz do seu dono que não o povo, e começou-se a falar de decisões serenas e responsáveis, de maturidade democrática que é outro nome para a mesmíssima coisa de sempre, e outras expressões de veludo que percorriam os media como canto de sereia para uma classe média de sofá.
O azar é que já não havia classe média. A classe média restante era apenas constituída por meia dúzia de lambe cus que sustentava e zelava pelo status quo dos mais ricos senhores dos aparelhos. Os pater família despromovidos a terem de chorar todas as noites em surdina por não saberem como alimentar os filhos no dia seguinte, subitamente tornaram-se revolucionários. O burguês só se mexe quando a mosca chateia, e assim tivemos pela primeira vez um radical de esquerda no governo, e com maioria no parlamento.
Lembrei-me do que ele prometia e achei-o maluco. Achei na altura que teríamos a reedição sinistra de um novo Estado Novo, e que Portugal nunca sairia da cepa torta.
O cabrão fez o que prometeu e não estamos habituados a isso. Porra.
III
O que se vai passar agora?
Sair da União Europeia não é solução para nada, se deixarmos os mesmos filhos da puta à solta.
Sorri. A História confortou-me na sua previsibilidade e repetição com um confortável abraço, bastava olhar para trás e perceber que sempre que se dá um passo decidido em frente neste país, lenta, inexoravelmente, metodicamente, os dedinhos empurram a planta do pé para o local de partida, com uma resistência apenas formal do inane calcanhar.
Esperteza saloia, pensei eu, esta do ‘nosso primeiro’. Um bluff aos teutões.
Fui trabalhar, pois é essa a minha função como português, a única função do português na vida.
A minha participação democrática é uma combinação de voto sazonal e período de ‘justus esperniandis’ enquanto acato consecutivamente o que a maioria, outros, decidiu por mim.
Parado no estacionamento do meu local de trabalho a que então cheguei, penso nessa maioria.
É essa maioria mais esclarecida, formada, ponderada, que eu? Modéstia à parte, não.
Passam-me pela mão suas escolhas, pelos olhos e ouvidos, suas caras reacções e conversas, e decididamente, não.
Penso na democracia definindo-se como o acto de esmagamento daqueles que se interessam por uma maioria de acéfalos. Dois mil e tal anos depois de Péricles, e eis como temos a nossa democracia, os cegos conduzindo os zarolhos.
Pelo que tenho visto, a maioria, os eleitores, são crianças que se apresentam ao toque do recreio junto das urnas de mãos dadas como numa excursão à Capela dos Ossos, uma missa domingueira em que se desfilam os melhores fatos republicanos, e onde se vota por tradição ou convicção clubística.
Para o caralho que os foda.
São a raiz do mal desta merda toda. Era isso que dizia o nosso novo Estaline, que a culpa, esse sentimento tão católico, não se limita ao pagamento da indulgência do crédito excessivo.
Há que fazer a contrição interior que é a única ferramenta de mudar as mentalidades presentes.
Em frente ao meu cacifo olho para o mini espelho tenho a barba com um dia a mais e o rosto com anos a mais em contractos de mês a mês. Espero que não me tirem da caixa e espetem no armazém. Relembro as curvas do rabo da Manuela da limpeza que passou agora à minha frente, que é um rabo que me ajuda no chuveiro, nada especial, apenas o glorifico aqui porque aqui nada há de especial e sem um pouco de auto-emoção o meu dia seria uma merda pior que aquela que já é.
O rabo da Nela, tem a forma de uma taça Dragendorff, rabo bojudo e maciço ligeiramente achatado nas extremidades.
O suor disfarçado de água-de-colónia da minha camisa relembra-me que estou pronto para atender o público, inspiro profundamente, ato o último atacador, e vou para a caixa.
Nem me havia lembrado perdido nas minhas cogitações que a moeda mudara.
Foi toda a gente apanhada de surpresa. O Banco de Portugal há dois meses que andava a imprimir moeda noite e dia, e hoje foi o dia. Duvido apanhar alguma nova nota de escudos, ou moedas, mas quem sabe, eu não percebo nada disto. Antes e num genial alcance de visão, os conservadores tentaram vender todo o ouro que o Salazar amealhara, incluindo o dos judeus incinerados. A intenção era impossibilitar uma futura escolha pela moeda própria, e esteve quase o ouro para ser vendido, mas uma decisão do Tribunal Constitucional protelou o processo tempo suficiente para ficar sem efeito, e deixar irritados os compradores.
Ambas as moedas vão coexistir durante dois anos, e são proibidos pagamentos e levantamentos de euros ou coisa que valha, não ouvi bem na rádio.
Os valores dos depósitos (para os poucos que ainda têm conta no banco) sofrem já a conversão, e prevejo desde já que isto vai dar raia.
Da grossa. As pessoas nem sabem fazer contas aos trocos numa caixa de supermercado quanto mais calcular a taxa de conversão. Pela primeira vez, dou comigo a pensar que o ‘nosso primeiro’ é um gajo com tomates, tolo, mas com tomates, por se meter numa argolada destas.
Dou comigo a constatar que estou com pensamentos de 'serenidade democrática'...eu que nunca fui de classe 'média'.
Coço o antebraço quando me lembro dos exemplos arquétipos da esquerda, sempre convencidos da sua superioridade moral perante os outros, que por acharem que ao defender o 'pobrezinho' são moralmente de estirpe melhorada. Fui sempre mais pobre que todos os que conheci, e sempre me afastei de quem falava em sacrifícios sem nunca os ter conhecido.
Finalmente a esquerda, a esquerda, vai ter o poder. Vão poder, vão poder.
Não posso deixar de dizer que simpatizo com eles, não por superficial adesão ideológica apenas, mas tmbém por os ver constantemente vilipendiados, ostracizados, acossados.
Pela comunicação social, pelos transeuntes de café, ridicularizando os exemplos do passado, as experiências falhadas, uma suposta natureza humana e verdades feitas da economia.
A esquerda revolucionária como as migalhas de um pão repartido em dois e levado à boca quase até à náusea, apresentada raramente e como descargo de consciência para classificar os programas de 'abrangentes' mais que para levar a sério a mensagem difundida.
Os dirigentes diga-se de passagem, como quixotes de circunstância, tentavam remar contra a maré, debalde, a propaganda estava tão mergulhada no subconsciente social como raízes de eucalipto cancerígeno.
A comunicação social portuguesa sempre serviu os interesses dos seus promotores, sempre apresentou a realidade mais promovida por um discurso oficial, sempre apresentou um arco governativo dual como uma esfera de política responsável, com o trabalho dos pivôs a incidir na futebolística obstrução de argumentos, interrupções extemporâneas, foras de jogo ou substituições arbitrárias. Sempre tive pena dessa minoria política, que sustenta e quer mudar o mundo nem que seja à força de ideias montadas em cavalos de papel, e não apenas morar nele comendo as lentilhas que te levam á boca.
Apesar das várias traições e dos fanatismos. Partido é partido e partido é cancro. Já havia perdido a esperança. Não a ganhei, mas agora estou curioso.
A primeira cliente do dia leva duas latas de atum e um pacote de massa. Foda-se, quinhentos euros, salário mínimo nacional.
Foda-se.
Ainda me lembro do café a quarenta escudos. Com o Euro, que Guterres, sempre ele, Portugal iria permanecer no grupo dos países com peso decisor do eurogrupo. Com o euro o café a cerveja os bolos e outras coisas menos visíveis passaram para o dobro, não por uma pérfida reacção de valorização monetária mas porque provincianamente, os vendedores descobriram que quarenta escudos soam a quarenta cêntimos e vai de obter lucro fácil através do aumento para o dobro. Facilitava as contas a quem não estava habituado a conversões.
Será que alguma vez nos vamos perdoar?
Fomos gananciosos e filhos da puta uns para os outros, nesta grande família que é este pequeno país.
Sempre passaram o português e a sua cultura como o andrajo da Europa, especialmente a partir de 1986, e pensei que fosse vergonha dos trajes e indigência do orgulhosamente sós. Hoje vejo que mais não foi que parte de uma campanha inteligente de vender a Europa como remédio único, a par do 'Festival Eurovisão da Canção' e dos 'Jogos sem Fronteiras'. E Europa como ideia tão boa sempre teve de ser vendida, e legitimada sem sufrágio, como reles dogma que se evidencia por si sem necessidade de discutir alternativas. O que se passou na Irlanda foi vergonhoso caralho. Os burocratas de Bruxelas a patrocinar directamente pelos seus cabrais ruas cobertas de propaganda pró fascista europeia.
Cá no burgo? Foi toda a gente a meter ao bolso, ah ouro da Germânia que sabes melhor que o da Mina.
Ah Camenbert que sabes melhor que pimenta, ah coffe mugs de New York que sois mais cosmopolitas e prestigiados que as cerâmicas chinesas importadas.
Ainda há quem diga que a estória não se repete.
Que estavam à espera?
Em qualquer civilização na História, quem tenha olhinhos para ver, lê que a seguir ao período de maior esplendor económico, vem o declínio, como a seguir a cada orgasmo se segue um torpor narcoléptico...a sociedade corrompe-se na metade final da sua expansão. Mijem dinheiro para dentro de qualquer país e é uma questão de tempo pouco, para que se desintegre. Isto é tão falado na alta cultura da Europa que até enjoa de tão óbvio.
O velho projecto hegemónico cheira o rabo a Carlos Magno, uma europa de quinhentos milhões de consumidores para ombrear com o resto do mundo que adoptou e melhorou o velho modelo industrial europeu com nuances de maior sacrifício não remunerado.
Os liberais tecnocratas defendem a privatização de tudo e o esforço abstracto aos assalariados como resposta à recessão, mas nenhum emigra para a China para viver de acordo com a sua lógica do mais forte. Com as condições laborais chinesas tornar-se-iam revolucionários. Filhos da puta.
Lembro-me do Guterres, e das crianças que morreram afogadas nas valas negligentes dos imigrantes que construíam a Ponte Vasco da Gama. Lembro-me das parábolas do bom aluno e do petróleo verde do Cavaco e cavaquistas, e olho para esta mulher que hoje como outras noutros dias que se seguem, vai comer com o marido e a filha, massa esparguete com atum.
Lembro-me do Marcelo Rebelo de Sousa dizer que tínhamos de 'acarinhar' os imigrantes pois iriam ser eles a pagar as nossas reformas e contas...Ouvi Guterres a dizer que imigração torna a nossa economia competitiva, viu-se, os patos bravos da construção civil arrasaram com milhares de famílias para pagarem tuta-e-meia a imigrantes que alojavam em contentores e pré fabricados longe dos olhares das inspecções de trabalho, tudo em nome de um lucro travestido de competitividade. Receber os imigrantes em Portugal sim, mas não para serem burros de carga para empresários cuja única profissão conhecida é de serem empresários e gerir nos espaços da lei com a chico espertisse rotineira o abre e fecha de empresas que ciclicamente se deslocalizam e espetam com desempregados na rua.
Será que algum dia vamos perdoar uns aos outros?
Esta cliente que acaba de sair com a massa e o atum debaixo dos braços, porque o meu patrão desejou aumentar os lucros e taxou os sacos de plástico, defendendo que era por motivos ecológicos, esta cliente era psicóloga num departamento qualquer de recursos humanos de uma qualquer empresa de serviços. Ajustava o pessoal e imprimia os powerpointes com desenhos e frases sonantes de motivação para cada colaborador dar o melhor de si e seduzir o sujeito para um amor de performance. Fazia-se tratar por doutora embora sendo apenas licenciada.
Era daquelas que defendia o patrão de forma intransigente mesmo quando ele mudava de carro de luxo de 6 em 6 meses e mantinha salários em atraso, ou sempre que ele se pavoneava com olhar ameaçador grave e sério pelas secções da 'empresa' à procura de um bode expiatório para despedir pela sua inépcia de gestão, ou quando em briefings insultava impunemente as pessoas só porque achava que não davam o máximo seguindo o seu próprio exemplo de que dava tudo pela empresa especialmente quando estava em casa da amante.
Ela era paga para pôr-se no lugar do patrão e como estulto capataz, florear o chicote do despedimento e manter um pesado e sério ambiente de trabalho pois os preguiçosos trabalhadores rendem mais estando com medo que felizes com o que fazem.
Ela não era uma qualquer, tinha feito um mba e trabalhado em empresas de renome, e conseguia passar duas horas a falar português com uma plateia só utilizando inglês pseudo-técnico.
Dava aulas de coaching por fora e tinha um site sobre sucesso pessoal e sobre o seu método infalível para o obter.
Nas conversas de esplanada estival com antigos colegas de secundário, desprezava tudo o que não estivesse relacionado com a 'sua' área e amava ouvir imbecis como ela trauteando o evangelho empresarial da gestão e da fiscalidade em assuntos que outrora faziam a mais morta árvore morrer de tédio mas que hoje parecem os mais solenes assuntos pintados com tons de ciência de ofiúcos lípidos. Os outros que não participavam na sua psicose eram apenas considerados de lunáticos tolinhos e foi assim que casou com o mais boçal financeiro que o ISEG já formou, um gajo que terminava cada sessão da bolsa de valores com um 'ámen'.
Habituados a reduzir o mundo à sua fracção de realidade tiveram amor à primeira vista, ela embevecida pelo bem que ele lhe ficava na ponta do braço, e ele pelas curvas generosas e pela relativa ausência de antecedentes copulatórios dela, que faziam dela a noiva ideal para mostrar a pais e amigos.
Ela apaixonada pela sua ideia de sucesso e progressão na vida, ele pela sua ascensão e por ter sido certo dia chamado a comentar as previsões económicas para o trimestre numa tv privada, pareciam um casal perfeito fadado a servir de exemplo a tantos outros.
O casamento como o relógio vistoso e a aliança larga trazia uma seriedade e honorabilidade que lhes dava sentido à vida por detrás dos fatos austeros e sorrisos enigmáticos omnipresentes.
Todos os outros, o mexilhão, era vítima da sua inabilidade ou até inferioridade genética em tomar o que de melhor a vida dava, e que se assim o vivia era porque queria.
Eu sei disto porque moramos na mesma rua.
Vi-a sair muita vez no seu Audi comprado a 84 prestações, e o seu marido, quando vinham da República Dominicana todos os Verões com um bronze medonho e fotos para colocar no linkedin e facebook, ao lado das fotos de praias distantes e da lua de mel em Nova Iorque depois de terem saído da Universidade. Falei com ela várias vezes nas reuniões da junta de Freguesia e pouco se aproveitava do que dizia, além de uma cassete engolida e papagueada em gritinhos estridentes visíveis para os seus correligionários que com ela estavam na base do seu partido do arco governativo. A sua melhor qualidade era uma ambição a toda a prova movida como qualquer ambição, para completar uma fantasia construída em torno do seu ego, afinal única bússola que indicia o valor da sua existência. Traçar objectivos e atingi-los, e era esta ambição unifocal que a fazia progredir mesmo sendo uma completa ignorante em tudo aquilo que saía fora da sua área profissional.
Para ela, a profissão, o marido, ser presidente de junta, ser alguém no aparelho, eram etapas de uma ascese existencial, de uma progressão fantasiosa que se escolheu como vida e via, e que à mesma serve para dar um sentido de evolução e significado.
Confesso que cheguei a pensar que este tipo de mulheres era o ideal na cama pois a sua ânsia de eficácia as faria dar o melhor mas quero lá eu uma neurótica do sucesso a usar-me como degrau para o seu ego. Seria esta a raça de Ubermensh do futuro?
Ria-se com um canto da boca de esgar escarninho quando eu lhe falava de ideologias e aspirações humanas, e assim com tudo que não implicasse betão asfalto e consumo, como se eu fosse filho de um deus menor.
Ganhou um mandato, e depois outro, no segundo renegou demagogicamente benefícios relativos à sua classe e por se ter incompatibilizado com um superior partidário, ficou de fora das listas no mandato seguinte, pelo que terminou a carreira política. Tentou piscar o olho ao partido da oposição, mas nem ela era incontornável em termos de ambição pois os 'outros' tinham gente igualmente ambiciosa, e havia criado rudemente muitos anticorpos com o aparelho inverso.
Não parecia a mesma dos cartazes retocados a photoshop e com fatos espartanos e braços cruzados sobre os seios demonstrando uma posição de guarda expectante pronta para a acção, para arregaçar as mangas e meter a sua energia ao serviço do eleitor espectador.
Oito anos em que a população escolheu os tipos serenos, maduros e responsáveis, democraticamente. Oito anos em que ponderadas e profundas deliberações os populares escolheram os seus representantes, e eu, como minoria tenho de acatar a vontade da tal maioria mais esclarecida que eu. Oh mel amargo da democracia, a quanto obrigas. Se fosse revolucionária, a democracia seria proibida.
O urbanismo do nosso concelho tira-nos anos de vida. O presidente de câmara tornou a coisa pública numa reunião familiar nas altas cúpulas camarárias, enriqueceu à custa do loteamento, reformou-se e é um dos que agora se dedica ao futebol e ao conservadorismo para manter o que tem. Aos filhos basta não ser completos imbecis para terem sempre condições de manter a sua propriedade herdada e logo transferirem de geração em geração vantagens que os meus descendentes (se alguma vez existirem) nunca conhecerão, porque os seus antepassados serão narrados no futuro, como moiros de trabalho que com esforço amealharam tanta riqueza, um modelo para os servos do futuro sem dúvida.
Ela, a psicóloga do atum, ganhava na junta três vezes mais que no seu emprego, e estaria reformada neste momento se não tivesse esperado o ovo na cloaca da galinha. O nosso primeiro também cortou esses privilégios pela raiz, e houve até um autarca (que ficou conhecido por dar presuntos aos eleitores para votarem nele) que partiu ambas as pernas ao mandar-se de uma ponte como forma de protesto, não contou com a areia que lá não estava por ter sido retirada ilegalmente por areeiros na noite anterior.
O nosso primeiro cancelou todas as reformas e subsídios a funcionários políticos do poder local, bem como subvenções a partidos e convocou referendo para ilegalizar a existência de partidos políticos.
Mandou formar também uma comissão de inquérito com advogados acabados de sair com as melhores notas das faculdades de direito, economia, história e que juntamente com uma renovada Polícia Judiciária, analisaram milhares de casos de enriquecimento desde 1974. Dizem os demógrafos, que nesse ano Portugal bateu todos os números dos registos históricos no que concerne à emigração, facto que o nosso primeiro esperava pois qualquer caso analisado implicava imediatamente congelamento dos bens bancários, sob sigilo absoluto o que evitou que fugissem capitais do reino.
O meu próprio patrão cujo império ajudou a empurrar para fora do negócio milhares de pequenos supermercados locais foi um dos fugitivos, mas esse pouco perdeu porque já só pagava impostos no estrangeiro...mas até nisso o novo primeiro-ministro foi cáustico pois indo contra legislação europeia taxou duplamente as empresas com sede fiscal fora do espaço nacional, com especial incidência nas originárias de Portugal ou sede domiciliária no país. As que não pagavam viam ser nacionalizados os centros comerciais e plataformas logísticas que formaram cooperativas de consumos que a início não funcionaram bem. O meu patrão promove os produtos nacionais vendendo-os abaixo do preço de custo e pagava o ordenado mínimo a jovens formados para trabalharem como repositores e caixas nos hipermercados... e pagava porque o Estado obrigava. Isto enquanto dava entrevistas-sermões na televisão com ar austero e sério, sempre mostrando a larga aliança e o relógio conservador sob vestes espartanas vestidas para o efeito, e assim servindo de placebo de herói para muita gente que o aclamava como o 'Messias' enquanto domiciliava lucros em terra de infiéis e conduzia à miséria milhares de produtores enquanto cuspia para o ecrã exortações a valorizar o regresso à terra e à produção nacional.
Meu messias seria se me pagasse um pouco melhor, mas não me posso queixar que tenho emprego, aliás nem nada faço com medo de o perder e à vida de merda que tenho e não sei que tenho.
Já estive na gerência mas foi por pouco tempo. Redução de pessoal e voltei para as caixas. Como se quisesses subir umas escadas para tomar Baçaim e te puxassem para baixo por uma perna...
Pior está o marido dela...a que comprou esparguete e atum...desempregado, tinha uma série de stands que faliram e uma imobiliária também, onde vendia a outros o superinflacionado objecto 'casa' que subsume o pagamento da vida que supostamente é uma dádiva.
Chegou a aventurar-se na construção, no tempo dos negócios gordos, mas o azar com um cheque que bateu na trave a noventa dias arredou-o do negócio que na altura era melhor que ouro de tesouro.
Carros falência casa falência e apenas patois pois que não sabe fazer mais nada a não ser ter a mania que não perdeu, nem quando me veio mendigar um litro de leite a semana passada.
Apenas sabia fazer circular dinheiro e frequentar a 24 de Julho para o cimbalino nocturno, expondo a mulher e expondo-se às mulheres dos outros. Agora passa os dias no café onde falo muitas vezes com ele, e a sua cara esquálida continua a vomitar chavões neo liberais e acéfalos mas desta vez já não com tanta certeza nos olhos mas uma certa mágoa no olhar.
Vejo agora que o 'nosso problema' não era com a Europa mas connosco. Temos sido tão cabrões uns para os outros, temos tratado tão mal o nosso país...através de políticos que tomam a política partidária nacional como o trampolim para carreiras europeístas cagando nos seus livres eleitores que desconhecem por completo a civilidade e sofisticação de uma Europa a Norte do Sena.
Trampolim para a nave dos loucos que é o parlamento europeu e que as gerações vindouras discorrerão em rios de tinta como se demorou tanto tempo a perceber o carácter fascista de uma união europeia que nada tem de união. Só nós temos a culpa.
Será que alguma vez nos vamos perdoar?
Temos comido merda e não fazemos parar a refeição, antes pedimos mais pimenta e um copo de água.
O relógio bateu nas 12. Nunca tive um dia com apenas um cliente a passar pela caixa. O gerente veio ter comigo e disse-me para ir para casa. Não me dá o dia mas que o tempo vai para o banco de horas. Não me interessa, chego a casa cansado de nada ter feito, deito-me a pensar e adormeço. Acordo com um telefonema do meu pai, com a lenga lenga do costume, que quer um neto e que tenho de assentar. Não vale a pena explicar-lhe que não ganho o suficiente e que não posso ter um filho, e não, não é para manter um estilo de vida. Enquanto imagino distopicamente como será um mundo em que a maior parte não pode ter filhos, e o que valerá a vida individual perante isso, oiço o meu pai chorar-se por ser tratado no lar como uma criança com muletas. Ele e a minha mãe diversas vezes me limparam o cu sob as fraldas e me ampararam em pesadelos nocturnos e febres estivais de encontro ao posto de saúde, ao que parece a vida hodierna não me permite retribuir a cortesia e assim se canaliza a pensão que o velho tem para os bolsos dos empresários geriátricos que despacham expediente numa moradia salobra em bairro de génese ilegal. Como milhares de outros velhos, descartados nas gavetas esquecidas esperando que a morte no seu rosto pouse o beijo de atenção que os do seu próprio sangue lhes sonegam. O trabalho ao que parece tornou-se mais frenético e mais importante que os ancestrais laços entre as gerações. Foda-se que ter um velho em casa entre a playstation e a bimby não é cool. Nem o cônjuge verá com bons olhos e pode mesmo comprometer o casamento de fachada que se celebrou em bodas mecanizadas pelas moradias engalanadas por bairros de génese ilegal e manchas de pinheiros e eucaliptos onde fica bem tirar umas fotos para mais tarde recordar.
Queixa-se que a sopa sabe a merda, arrepende-se, pede-me desculpa pelos lamentos, e termina soluçando que se pode morrer de tristeza.
Ligo a TV após desligar o telemóvel, e como milhões de outros portugueses contribuo para o meu esclarecimento político através de comentários de comentadores.
Parece que houve desenvolvimentos. A EU ameaçou com uma intervenção armada, mas a saída repentina da Itália e da Espanha foi proposta à Comissão Europeia, pelos ministros dos Negócios Estrangeiros de ambos os países, o que relativizou como é costume a importância de Portugal. Nem quando tentamos falar grosso a voz parece sair no tom certo. Talvez seja a nossa sina sortuda.
O limes entre católicos e protestantes entre bárbaros e civilizados sempre variou no lado da fronteira mas a mesma sempre se manteve em colunas de eterno. De entre as várias reacções negativas, um pouco por todo o mundo, Portugal recebeu elogios de algumas áreas políticas dentro da própria ‘União’, curiosamente da Escandinávia, de onde chegam ecos de apreço pela atitude corajosa de um pequeno país querer sair da ‘União’ para a qual entrou sem sufrágio e da qual sai sem enquadramento, pois nunca se quis colocar a hipótese de algum país a bater com a porta, tal não foi a arrogância intencional destes democratas. Estes filhos da puta forçaram com pão-de-ló de amizade e solidariedade, uma ‘união’ dos povos da Europa, que lenta, gradualmente e calculadamente tornaram um Estado fascista encapotado, onde 70% das leis dos países são imposições de milhares de funcionários anónimos não eleitos democraticamente. Os palhaços, nós, enquanto houve dinheiro para bigs brothers, mundiais de futebol, lcds, copos de plástico para os cafés e outras tantas merdas de consumo e despesismo ambiental, até ajudámos à festa, e nem nos ralámos quando com festas pelo lombo nos alaram a canga. Agora estrebuchamos e esperneamos, mas só existe um sentido de marcha ao apelo do chicote.
Será que algum dia nos vamos perdoar?
Todos os dias saem escândalos de corrupção, hoje descobriu-se a negociação secreta entre o Estado português sobre os seus direitos petrolíferos na zona contígua da orla costeira, para as reservas de petróleo offshore que foram descobertas, e para as quais o erário público sonegará dez cêntimos por barril, ficando o remanescente com a multinacional, promotora do evento. A referida empresa acaba de contratar o nosso ex primeiro-ministro para seu chairman ibérico, sem dúvida em recompensa pela sua competência.
Caralho. Já só meto os cornos debaixo dos lençóis e espero o temporal passar.
Descobrir petróleo era o pior que podia acontecer em Portugal para Portugal.
Corrompidos e corruptos desde a fundação, desde a medula, vamos mantendo as mesmas classes, que se autoperpetuam, verdadeiro caso de estudo de como gerações desenvolvem a capacidade de manter um sistema de desigualdade social e manter-se ao rumo do mesmo, em choraquelogobebes. Nunca fui comunista mas que hoje me parece que eles sempre tiveram razão, nunca me pareceu tão claro.
Eu já só espero que me chamem a votar, novamente nos dois partidos do arco governativo.
Quedo-me com sono e lamento o pesadelo que teima não terminar, eu só queria voltar à vida que tinha, telemóveis que avariam pouco tempo depois do fim da garantia, comida modificada geneticamente para aumentar lucros e sem valor nutritivo, televisão imbecilizante, um mundo de cabrões e cabras mútuas.
Fecho lentamente os olhos e pergunto-me se algum dia nos vamos perdoar uns aos outros.