«Assim, a sede de compaixão é uma sede de auto-satisfação, e, na verdade, à custa do próximo(...)»
Nietzsche, Humano, demasiado humano, 50
Coisa curiosa, a fé.
a)
O cristianismo para o povo passa bem por ser um confortável e aconchegado dispensar de mediação do pensamento. Normal pois os seculares servos e agricultores de subsistência não bebiam metafísica, os clérigos tinham de falar de modo a que percebessem.
Mas não só.
A genialidade da propaganda católica, especialmente na Contra-Reforma, reside no doseamento psicológico entre o maravilhoso e o abstracto (de preferência pomposo), abstracto esse construído através de séculos de operários retóricos da patrologia, muitos com dimensão intemporal, como Aquino ou Agostinho.
Séculos a compôr a cartilha que facilitava a vida ao padre que tinha de lidar com as questões naif no seu rebanho.
Havia que provocar o escândalo da razão, mas não a polémica, essa reservada às universidades e à pompa do cerimonial académico.
As inquietações do crente deviam orbitar em torno da mitologia debitada pelo senhor padre, e não andar por aí perdido, por terras de inquietação mental profunda atrás do significado da sua humanidade.
Esse povo, que de geração em geração acredita nas histórias do Livro, tanto quanto acredita na sua mais que suficiente capacidade de entendimento do mundo e dos homens através da palavra revelada. O divino atrás do símbolo dando largas à imaginação refreada dá todo o enquadramento necessário para entender e justificar quer a vida diária quer os segredos mais profundos do Cosmos, desde que, se acredite. Quanto maior a fé, mais confortável o mundo.
b)
Felizmente alguns decidem fazer ciência indo além das instituições, e no fim do trajecto emerge o estado laico europeu, no qual as extremidades da cruz se equilibram designando a César o que é de César, delimitando áreas de competência nas quais o padre não fala de Física nem o físico fala de Deus.
E quando opostos, podem ignorar-se em paz.
A morte de deus sobrevive mesmo ao niilismo, e parece perder-se pelos tempos a hierarquia litúrgica da ecclesia, mas são ainda necessárias algumas historietas para encantar os crentes, histórias renovadas, mais cientifizadas, com mais glamour.
O agricultor medieval sobrevive como arquétipo, hoje na figura do indigente burguês dos serviços, e com ele, a certeza inabalável na sua capacidade de entendimento e controlo dos assuntos, do dia a dia e das verdades científicas mais profundas do Cosmos.
Se antes era porque o senhor padre dizia, agora são os estudos científicos de uma qualquer obscura capela universitária que o confirmam, ou no pior dos casos, algum telejornal.
Basta a ambição para atingir o sucesso, não no reino de deus por vir, mas no império do aqui e do agora, no tempo em que a vida corre, onde o paraíso está prometido sem o preço a pagar à morte.
c)
Dizia-se ao agricultor medieval para crer e submeter, ao camponês hodierno diz-se para se submeter crendo. Qualquer revolta não passa de ilusão, entalada entre a compra de um produto e o choro defronte um qualquer surdo e mudo muro de lamentações.
A revolta de nada serve, dizem-lhe.
Só vais perder tempo e este tempo da tua vida é demasiado precioso para que o percas com revoltas, entrega-te à luta e ao fazeres o melhor dele.
Não queiras mudar o mundo, saca o máximo gozo dele, se o mudares, tanto melhor.
O esforço político da nossa era resume-se a assumir que não conseguimos mudar o mundo, apenas a nós. Mas que a mudança de nós próprios é já uma mudança do mundo, e só assim, ao bochecho, mudamos alguma coisa.
Bochecho a bochecho é o método de engolir o mar, isto é de mudar a democracia de massas.
Quanto mais a sua existência (e a do próximo) se transforma numa vida de merda, mais o crente se esforça para confirmar as colunas do seu edifício teológico.
A vida é demasiado curta. É mais fácil aumentar a graduação das lentes que tirar as palas dos olhos.
A religião cristã deu assim lugar a uma outra, híbrida, a religião do optimismo.
A cruz é a mesma, ou quase, apenas se alteraram as pontas, agora equidistantes do centro.
A única hierarquia é entre os que se safaram e os que não se safam e continuam a lamechar. Quem não se queixa é porque continua a tentar, e nesta religião, todos conseguem, basta despender o esforço necessário.
d)
Ou vai ou racha, o único argumento é o da força.
Esta postura colhe seguidores, em homens e mulheres fortes que se sentem os vencedores da selva de betão, vencedores da competição, do cão come cão, isolados no seu condomínio teleológico, em que o cão comido é aquele que não morde ou não sabe morder.
Inebriados com a ideia de que são senhores do seu destino só porque arrancam do sistema o seu sustento, vivem o seu tempo, apreciam a sua vida, nem que seja à força. Tão entretidos com o seu lufa lufa deixam fugir a ideia de que são escravos no mundo, cães desdentados incapacitados de morder de volta ao grande cão que os come a eles.
Tem de ser assim, sob pena de desesperarem. De perder a esperança.
A cruz é só já o sinal positivo de um abnegado optimismo cujo peso arrastado pela via sacra aumenta se não mergulharmos de cabeça na cantiga ideológica para esquecer o carreiro, e o peso.
A cruz é o sinal positivo e matemático, sem carga, sem gerar oposição, a nova religião do sucesso, se e somente se, a entrega for total.
Esta religião dispensa edifícios grandiosos para culto público, que não uma expressão vistosa e ostensiva de uma ideia de sucesso, e de uma congruência a toda a prova, sob a forma de uma convicção interior, mesmo que fingida.
As suas celebrações colectivas são polidas competições na demonstração da fé individual analogamente à fé nas velhas igrejas definida pelo valor monetário das esmolas.
e)
A programação neuro linguística (NLP), surge como tecnologia.
A ciência do auto aperfeiçoamento, e do sucesso.
Teve como mãe a psicologia de vendas, e como pais, um rol de abastardamentos científicos, da psicologia, à linguística, passando pela retórica e arte dramática.
Emancipa-se a partir da eclosão da crença na existência de um método para o sucesso, baseado numa análise matematizante e pseudo-lógica do comportamento de indivíduos que correspondem ao modelo de sucesso a imitar, e torna-se sucesso precisamente por causa da existência de tanta vida miserável que aspira a sair do seu desespero.
A psicologia motivacional não é bem sucedida porque tem muitos seguidores, é bem sucedida pelo contrário, porque existe muita gente desesperada que não consegue extirpar a miséria da sua vida. E vê na convincente estratégia de marketing, uma saída para os seus problemas.
Claro que fica bem dizer que se motiva e ajuda os outros, mas tendo em conta que poucos o fazem sem ser por prestígio ou dinheiro, somos levados a pensar que bem sucedidos são aqueles que conseguem ganhar a vida através de um trabalho limpo (apenas na forma, não no conteúdo), e sem muito esforço associado que não o de ter lábia e espinha maleável, além de uma infinda capacidade de auto manipulação.
Combate-se a depressão com Prozac e mantras.
Cá em Portugal tivemos casos mediáticos, como os exilados da Psicologia, um tal de Miguel Gonçalves, ou um Gustavo que foi motivar outros num programa televisivo alusivo à construção civil.
Combate-se a tristeza com mais afinco que se combate a corrupção, e até nas escolas já se alertam as crianças acerca dos perigos da tristeza, apesar do falecido Nobel Saramago ter dito que as crianças devem crescer à sombra.
Não por amor às crianças. Mas por um jogo cínico e infantil por parte dos próprios adultos.
Não é a criança, indivíduo, que interessa. É a categoria de 'criança', um oceano de significados do sensus comunis que é de bom tom partilhar e perpetuar. Serve de contraponto, pela sua inocência e ingenuidade, aos adultos que aparecem, nos filmes e outra propaganda, como pérfidos, e já iniciados na Queda, justificando o sacrifício que fazem, não só por causa (justificadamente) da criança indivíduo, mas também porque devem assumir que pecaram entretanto e já crianças não são, portanto merecem os castigos que a vida lhes deposita na pele. Perde assim também, o adulto, os dentes políticos, sob uma imbecilização humilhante, onde se nega a individualidade a criança e a crescido.
A criança é o atalho mais rápido à carteira. É um valor supra individual capaz de apelar a um sentimento sem reserva.
f)
Um pouco por todo o lado se penduram espanta espíritos metálicos e ruidosos, para afastar as más energias, e tudo que metafisicamente não é ainda explicado pela Física moderna. Não significa que a alegria seja pobre de espírito, ou que os alegres são tolinhos fúteis. Isso está reservado não para os alegres mas para os que negam a tristeza. Para aqueles que se manipulam a si mesmos sob as desculpas de que querendo ser felizes adoptam um padrão de comportamento de ludibriar os outros para proveito próprio, ou seja, a malta da indústria da auto-ajuda, e do marketing.
A vida parece algo que tem de ser mascarado a todo o custo através de umas lentes ingénuas.
No processo abdicamos de parte da nossa humanidade e da nossa espontaneidade, cedemos, desistimos, egoístas, de acumular raiva e vontade revolucionária de mudar o mundo, assumimos uma incapacidade que desculpa o não querermos fazer nada. Outros, mais fatais, não têm escolha senão fugir a serem consumidos por desejos de transformação social em terra de imbecis que sendo maioria sujeitam os outros à sua imbecilidade.
Os profissionais desta indústria da motivação, reduzem o outro a potencial cliente da sua pílula dourada, afogando a má consciência com desculpas de que no fundo apenas espalham uma metodologia de felicidade, e que os proventos financeiros apenas compensam a dedicação ao espalhar da boa nova.
Queres ter uma vida como eu?
Liberta de trabalho e constrangimentos financeiros?
Compra o que tenho para venda.
Infelizmente nem sempre são assim tão honestos.
A venda geralmente não se apresenta como tal, nem o produto vale pela sua qualidade se não implicar o resultado certo através da adesão incondicional do comprador. Como qualquer placebo.
Escolher ver apenas o lado bom da vida, é uma negação consciente da verdade tomada no significado clássico como construção de uma narrativa coincidente o mais possível com os dados apreendidos pelos sentidos, e com narrativas sobre narrativas, num esforço de dar sentido.
Aqui, o sentido é dado à partida, é aquele que me fará mais feliz, de modo a depois só ter de o confirmar através dos factos.
Este positivismo de consumo não quer observar o mundo. Quer uma narrativa atalhada da realidade.
Rejeita liminarmente a empatia, em detrimento de uma simpatia incondicional chave na mão.
g)
Os novos padres levam ao exagero a linguagem kantiana, no processo de se tornarem legisladores e súbditos de si mesmos.
Também não positivam o mal.
Colocam fotos nas redes sociais, engomam camisas e calças com rigor de missionário, espalham para informação geral as suas presenças nas praias ou em destinos turísticos sempre com sorrisos frondosos e enigmáticos, partilham com toda a gente as fotos das comidas e bebidas que atestam a sua capacidade de saber viver, os seus sucessos nocturnos, sempre de copo na mão em poses sofisticadas, os prazeres do BTT, surf, ou de qualquer actividade que esteja na moda e represente dinamismo, toda a vida reificada, transformada em produto para atestar a eficácia do sermão a quilo.
O maravilhoso da religião saiu da sacristia, e deslocou-se para a horta, cada um gaba e publicita o seu canteiro aos demais, com citações motivacionais cuja base é o mais serôdio carpe diem em prol da vida e da luta. Acredita o crente que é uma boa luta, digna, e que essa luta mostra a força do seu espírito.
A nova religião celebra em transe e de mãos dadas, em longas filas de indivíduos murmurando as afirmações positivas repetidas até se tornarem verdade, auto lavagens cerebrais, numa escolha óbvia de como se quer encarar a realidade.
h)
Nada pode dificultar este esforço.
Nada pode semear dúvida.
Uma consciência crítica é um incómodo.
Pessoas esquivam-se de pessoas, de todos os que não comunguem na mesma confissão.
Ah, ele não pensa como eu, é pessimista, negativista, troll, quezilento, quero-me rodear de gente positiva.
Os tristes e os deprimidos, e muitas vezes os lúcidos, estariam condenados a morrer na solidão por vontade deste clero.
O pessimismo é uma peste que só através de uma abnegação na pobreza de espírito, se pode extirpar.
A vida interior não traz senão inquietação e sofrimento, há pois que travesti-la de forma a reflectir nuvens cor de rosa e algodão pompom.
O sucesso na vida depende da alegria, e a alegria depende do sucesso material, cada camponês se transforma no cardeal do segredo do seu sucesso, contra os apóstatas que conspiram contra si pelo negativo, pelo lado escuro da força.
Cada camponês supera desta forma a natureza, extirpando de si, aparentemente, os sentimentos de ódio, inveja, revolta, indignação, ou aspiração espiritual.
A miséria de cada um é sinal de fraqueza, e cada qual mascara a sua para não dar ao outro o biscoito do juízo fácil da pena fingida.
O discurso vitimizado só colhe quando dá ao orador a compreensão branqueadora por parte do ouvinte, não quando lhe pressente a humanidade.
i)
Portugal, país clássico do choraquelogobebes, tem apóstolos do risenãonãomamas.
Começaram em workshops, tedtalks e em átrios de hotel.
Com o sonho de vender um produto que os dispense do trabalho duro, sujo ou repetitivo.
Uns derivando da Psicologia desempregável, outros da praia e conchinhas no céu, como o Gustavo.
Umas frases sonantes, uns conceitos aparentemente complexos e acima de tudo uma linguagem corporal a condizer e congruência implacável, convencem os tolinhos que se deixam apanhar, com uma pinta de brilhantismo.
Com a lógica de café empresarial tuga, a legião de fanáticos tem-se multiplicado.
Um imenso exército partilha agora o seu método ou a sua visão com outros de molde a todos podermos ter sucesso, e assim mudarmos o mundo com bolas de perlimpimpim.
É mágico. Muita bonito.
A religião é o ópio do povo, e acorremos aos anfiteatros ressacando pela próxima dose de motivação que nos volte a dar esperança. Pelo menos até a realidade a contrariar ou o seu efeito desaparecer como o rasto de navio em radar.
j)
Com a nossa autoestima tão em baixo, obtemos ajuda dos telejornais, ou outro lixo televisivo, bombardeados com campanhas de solidariedade, exemplos de portugueses bem sucedidos lá fora, com imagens de crianças repetidas até à exaustão, de forma a evocar rapidamente o sentimento, e na ressaca do mesmo o conforto de sentirmos as emoções correctas.
Parece (mas não é) que vivemos num mundo de merda, e que a própria comunicação social oscila entre a denúncia pornográfica e a palestra motivacional.
Português de sucesso?
Qual o critério de 'sucesso'?
É algum motivo de espanto haver portugueses em elevado nível de 'conseguimento'?
Precisamos mesmo destes exemplos para acreditar que somos 'bons'?
Parolice adorável.
Como num jantar de maratonistas um se levantasse e andasse para mostrar aos outros que sabe caminhar.
A dose de autocomprazimento por sentir o que é expectável, inunda os jornais de gastronomia e doenças raras, com campanhas de solidariedade, casos de vidas difíceis, não por real interesse mas para que nos cafés à hora de almoço se possa ter pena em massa, e obter o tal autocomprazimento por sermos tão bonzinhos.
O alvo da ajuda, não é senão o meio para o nosso fim, a dose de superioridade moral, pagando a má fé com umas caridadezinhas em forma de esmolas, que são as provas concretas do esforço para mostrar aos amigos.
E assim confirmar o nosso mundo de pompom, idealizado nas fantasias motivacionais.
As esmolas são as provas concretas do esforço dos indivíduos no tango da má fé dançando sós no baile apinhado.
Tal como a criança, o carente não vale por si, é só mais um objecto de consumo.
A cruz perdeu o sagrado e ganhou o mundano.
Da coisa de deus passou o crente a ser a coisa sua, encantado por uma suposta liberdade decorrente por ter deixado de ser gente e ter continuado a ser coisa.
Nietzsche, Humano, demasiado humano, 50
Coisa curiosa, a fé.
a)
O cristianismo para o povo passa bem por ser um confortável e aconchegado dispensar de mediação do pensamento. Normal pois os seculares servos e agricultores de subsistência não bebiam metafísica, os clérigos tinham de falar de modo a que percebessem.
Mas não só.
A genialidade da propaganda católica, especialmente na Contra-Reforma, reside no doseamento psicológico entre o maravilhoso e o abstracto (de preferência pomposo), abstracto esse construído através de séculos de operários retóricos da patrologia, muitos com dimensão intemporal, como Aquino ou Agostinho.
Séculos a compôr a cartilha que facilitava a vida ao padre que tinha de lidar com as questões naif no seu rebanho.
Havia que provocar o escândalo da razão, mas não a polémica, essa reservada às universidades e à pompa do cerimonial académico.
As inquietações do crente deviam orbitar em torno da mitologia debitada pelo senhor padre, e não andar por aí perdido, por terras de inquietação mental profunda atrás do significado da sua humanidade.
Esse povo, que de geração em geração acredita nas histórias do Livro, tanto quanto acredita na sua mais que suficiente capacidade de entendimento do mundo e dos homens através da palavra revelada. O divino atrás do símbolo dando largas à imaginação refreada dá todo o enquadramento necessário para entender e justificar quer a vida diária quer os segredos mais profundos do Cosmos, desde que, se acredite. Quanto maior a fé, mais confortável o mundo.
b)
Felizmente alguns decidem fazer ciência indo além das instituições, e no fim do trajecto emerge o estado laico europeu, no qual as extremidades da cruz se equilibram designando a César o que é de César, delimitando áreas de competência nas quais o padre não fala de Física nem o físico fala de Deus.
E quando opostos, podem ignorar-se em paz.
A morte de deus sobrevive mesmo ao niilismo, e parece perder-se pelos tempos a hierarquia litúrgica da ecclesia, mas são ainda necessárias algumas historietas para encantar os crentes, histórias renovadas, mais cientifizadas, com mais glamour.
O agricultor medieval sobrevive como arquétipo, hoje na figura do indigente burguês dos serviços, e com ele, a certeza inabalável na sua capacidade de entendimento e controlo dos assuntos, do dia a dia e das verdades científicas mais profundas do Cosmos.
Se antes era porque o senhor padre dizia, agora são os estudos científicos de uma qualquer obscura capela universitária que o confirmam, ou no pior dos casos, algum telejornal.
Basta a ambição para atingir o sucesso, não no reino de deus por vir, mas no império do aqui e do agora, no tempo em que a vida corre, onde o paraíso está prometido sem o preço a pagar à morte.
c)
Dizia-se ao agricultor medieval para crer e submeter, ao camponês hodierno diz-se para se submeter crendo. Qualquer revolta não passa de ilusão, entalada entre a compra de um produto e o choro defronte um qualquer surdo e mudo muro de lamentações.
A revolta de nada serve, dizem-lhe.
Só vais perder tempo e este tempo da tua vida é demasiado precioso para que o percas com revoltas, entrega-te à luta e ao fazeres o melhor dele.
Não queiras mudar o mundo, saca o máximo gozo dele, se o mudares, tanto melhor.
O esforço político da nossa era resume-se a assumir que não conseguimos mudar o mundo, apenas a nós. Mas que a mudança de nós próprios é já uma mudança do mundo, e só assim, ao bochecho, mudamos alguma coisa.
Bochecho a bochecho é o método de engolir o mar, isto é de mudar a democracia de massas.
Quanto mais a sua existência (e a do próximo) se transforma numa vida de merda, mais o crente se esforça para confirmar as colunas do seu edifício teológico.
A vida é demasiado curta. É mais fácil aumentar a graduação das lentes que tirar as palas dos olhos.
A religião cristã deu assim lugar a uma outra, híbrida, a religião do optimismo.
A cruz é a mesma, ou quase, apenas se alteraram as pontas, agora equidistantes do centro.
A única hierarquia é entre os que se safaram e os que não se safam e continuam a lamechar. Quem não se queixa é porque continua a tentar, e nesta religião, todos conseguem, basta despender o esforço necessário.
d)
Ou vai ou racha, o único argumento é o da força.
Esta postura colhe seguidores, em homens e mulheres fortes que se sentem os vencedores da selva de betão, vencedores da competição, do cão come cão, isolados no seu condomínio teleológico, em que o cão comido é aquele que não morde ou não sabe morder.
Inebriados com a ideia de que são senhores do seu destino só porque arrancam do sistema o seu sustento, vivem o seu tempo, apreciam a sua vida, nem que seja à força. Tão entretidos com o seu lufa lufa deixam fugir a ideia de que são escravos no mundo, cães desdentados incapacitados de morder de volta ao grande cão que os come a eles.
Tem de ser assim, sob pena de desesperarem. De perder a esperança.
A cruz é só já o sinal positivo de um abnegado optimismo cujo peso arrastado pela via sacra aumenta se não mergulharmos de cabeça na cantiga ideológica para esquecer o carreiro, e o peso.
A cruz é o sinal positivo e matemático, sem carga, sem gerar oposição, a nova religião do sucesso, se e somente se, a entrega for total.
Esta religião dispensa edifícios grandiosos para culto público, que não uma expressão vistosa e ostensiva de uma ideia de sucesso, e de uma congruência a toda a prova, sob a forma de uma convicção interior, mesmo que fingida.
As suas celebrações colectivas são polidas competições na demonstração da fé individual analogamente à fé nas velhas igrejas definida pelo valor monetário das esmolas.
e)
A programação neuro linguística (NLP), surge como tecnologia.
A ciência do auto aperfeiçoamento, e do sucesso.
Teve como mãe a psicologia de vendas, e como pais, um rol de abastardamentos científicos, da psicologia, à linguística, passando pela retórica e arte dramática.
Emancipa-se a partir da eclosão da crença na existência de um método para o sucesso, baseado numa análise matematizante e pseudo-lógica do comportamento de indivíduos que correspondem ao modelo de sucesso a imitar, e torna-se sucesso precisamente por causa da existência de tanta vida miserável que aspira a sair do seu desespero.
A psicologia motivacional não é bem sucedida porque tem muitos seguidores, é bem sucedida pelo contrário, porque existe muita gente desesperada que não consegue extirpar a miséria da sua vida. E vê na convincente estratégia de marketing, uma saída para os seus problemas.
Claro que fica bem dizer que se motiva e ajuda os outros, mas tendo em conta que poucos o fazem sem ser por prestígio ou dinheiro, somos levados a pensar que bem sucedidos são aqueles que conseguem ganhar a vida através de um trabalho limpo (apenas na forma, não no conteúdo), e sem muito esforço associado que não o de ter lábia e espinha maleável, além de uma infinda capacidade de auto manipulação.
Combate-se a depressão com Prozac e mantras.
Cá em Portugal tivemos casos mediáticos, como os exilados da Psicologia, um tal de Miguel Gonçalves, ou um Gustavo que foi motivar outros num programa televisivo alusivo à construção civil.
Combate-se a tristeza com mais afinco que se combate a corrupção, e até nas escolas já se alertam as crianças acerca dos perigos da tristeza, apesar do falecido Nobel Saramago ter dito que as crianças devem crescer à sombra.
Não por amor às crianças. Mas por um jogo cínico e infantil por parte dos próprios adultos.
Não é a criança, indivíduo, que interessa. É a categoria de 'criança', um oceano de significados do sensus comunis que é de bom tom partilhar e perpetuar. Serve de contraponto, pela sua inocência e ingenuidade, aos adultos que aparecem, nos filmes e outra propaganda, como pérfidos, e já iniciados na Queda, justificando o sacrifício que fazem, não só por causa (justificadamente) da criança indivíduo, mas também porque devem assumir que pecaram entretanto e já crianças não são, portanto merecem os castigos que a vida lhes deposita na pele. Perde assim também, o adulto, os dentes políticos, sob uma imbecilização humilhante, onde se nega a individualidade a criança e a crescido.
A criança é o atalho mais rápido à carteira. É um valor supra individual capaz de apelar a um sentimento sem reserva.
f)
Um pouco por todo o lado se penduram espanta espíritos metálicos e ruidosos, para afastar as más energias, e tudo que metafisicamente não é ainda explicado pela Física moderna. Não significa que a alegria seja pobre de espírito, ou que os alegres são tolinhos fúteis. Isso está reservado não para os alegres mas para os que negam a tristeza. Para aqueles que se manipulam a si mesmos sob as desculpas de que querendo ser felizes adoptam um padrão de comportamento de ludibriar os outros para proveito próprio, ou seja, a malta da indústria da auto-ajuda, e do marketing.
A vida parece algo que tem de ser mascarado a todo o custo através de umas lentes ingénuas.
No processo abdicamos de parte da nossa humanidade e da nossa espontaneidade, cedemos, desistimos, egoístas, de acumular raiva e vontade revolucionária de mudar o mundo, assumimos uma incapacidade que desculpa o não querermos fazer nada. Outros, mais fatais, não têm escolha senão fugir a serem consumidos por desejos de transformação social em terra de imbecis que sendo maioria sujeitam os outros à sua imbecilidade.
Os profissionais desta indústria da motivação, reduzem o outro a potencial cliente da sua pílula dourada, afogando a má consciência com desculpas de que no fundo apenas espalham uma metodologia de felicidade, e que os proventos financeiros apenas compensam a dedicação ao espalhar da boa nova.
Queres ter uma vida como eu?
Liberta de trabalho e constrangimentos financeiros?
Compra o que tenho para venda.
Infelizmente nem sempre são assim tão honestos.
A venda geralmente não se apresenta como tal, nem o produto vale pela sua qualidade se não implicar o resultado certo através da adesão incondicional do comprador. Como qualquer placebo.
Escolher ver apenas o lado bom da vida, é uma negação consciente da verdade tomada no significado clássico como construção de uma narrativa coincidente o mais possível com os dados apreendidos pelos sentidos, e com narrativas sobre narrativas, num esforço de dar sentido.
Aqui, o sentido é dado à partida, é aquele que me fará mais feliz, de modo a depois só ter de o confirmar através dos factos.
Este positivismo de consumo não quer observar o mundo. Quer uma narrativa atalhada da realidade.
Rejeita liminarmente a empatia, em detrimento de uma simpatia incondicional chave na mão.
g)
Os novos padres levam ao exagero a linguagem kantiana, no processo de se tornarem legisladores e súbditos de si mesmos.
Também não positivam o mal.
Colocam fotos nas redes sociais, engomam camisas e calças com rigor de missionário, espalham para informação geral as suas presenças nas praias ou em destinos turísticos sempre com sorrisos frondosos e enigmáticos, partilham com toda a gente as fotos das comidas e bebidas que atestam a sua capacidade de saber viver, os seus sucessos nocturnos, sempre de copo na mão em poses sofisticadas, os prazeres do BTT, surf, ou de qualquer actividade que esteja na moda e represente dinamismo, toda a vida reificada, transformada em produto para atestar a eficácia do sermão a quilo.
O maravilhoso da religião saiu da sacristia, e deslocou-se para a horta, cada um gaba e publicita o seu canteiro aos demais, com citações motivacionais cuja base é o mais serôdio carpe diem em prol da vida e da luta. Acredita o crente que é uma boa luta, digna, e que essa luta mostra a força do seu espírito.
A nova religião celebra em transe e de mãos dadas, em longas filas de indivíduos murmurando as afirmações positivas repetidas até se tornarem verdade, auto lavagens cerebrais, numa escolha óbvia de como se quer encarar a realidade.
h)
Nada pode dificultar este esforço.
Nada pode semear dúvida.
Uma consciência crítica é um incómodo.
Pessoas esquivam-se de pessoas, de todos os que não comunguem na mesma confissão.
Ah, ele não pensa como eu, é pessimista, negativista, troll, quezilento, quero-me rodear de gente positiva.
Os tristes e os deprimidos, e muitas vezes os lúcidos, estariam condenados a morrer na solidão por vontade deste clero.
O pessimismo é uma peste que só através de uma abnegação na pobreza de espírito, se pode extirpar.
A vida interior não traz senão inquietação e sofrimento, há pois que travesti-la de forma a reflectir nuvens cor de rosa e algodão pompom.
O sucesso na vida depende da alegria, e a alegria depende do sucesso material, cada camponês se transforma no cardeal do segredo do seu sucesso, contra os apóstatas que conspiram contra si pelo negativo, pelo lado escuro da força.
Cada camponês supera desta forma a natureza, extirpando de si, aparentemente, os sentimentos de ódio, inveja, revolta, indignação, ou aspiração espiritual.
A miséria de cada um é sinal de fraqueza, e cada qual mascara a sua para não dar ao outro o biscoito do juízo fácil da pena fingida.
O discurso vitimizado só colhe quando dá ao orador a compreensão branqueadora por parte do ouvinte, não quando lhe pressente a humanidade.
i)
Portugal, país clássico do choraquelogobebes, tem apóstolos do risenãonãomamas.
Começaram em workshops, tedtalks e em átrios de hotel.
Com o sonho de vender um produto que os dispense do trabalho duro, sujo ou repetitivo.
Uns derivando da Psicologia desempregável, outros da praia e conchinhas no céu, como o Gustavo.
Umas frases sonantes, uns conceitos aparentemente complexos e acima de tudo uma linguagem corporal a condizer e congruência implacável, convencem os tolinhos que se deixam apanhar, com uma pinta de brilhantismo.
Com a lógica de café empresarial tuga, a legião de fanáticos tem-se multiplicado.
Um imenso exército partilha agora o seu método ou a sua visão com outros de molde a todos podermos ter sucesso, e assim mudarmos o mundo com bolas de perlimpimpim.
É mágico. Muita bonito.
A religião é o ópio do povo, e acorremos aos anfiteatros ressacando pela próxima dose de motivação que nos volte a dar esperança. Pelo menos até a realidade a contrariar ou o seu efeito desaparecer como o rasto de navio em radar.
j)
Com a nossa autoestima tão em baixo, obtemos ajuda dos telejornais, ou outro lixo televisivo, bombardeados com campanhas de solidariedade, exemplos de portugueses bem sucedidos lá fora, com imagens de crianças repetidas até à exaustão, de forma a evocar rapidamente o sentimento, e na ressaca do mesmo o conforto de sentirmos as emoções correctas.
Parece (mas não é) que vivemos num mundo de merda, e que a própria comunicação social oscila entre a denúncia pornográfica e a palestra motivacional.
Português de sucesso?
Qual o critério de 'sucesso'?
É algum motivo de espanto haver portugueses em elevado nível de 'conseguimento'?
Precisamos mesmo destes exemplos para acreditar que somos 'bons'?
Parolice adorável.
Como num jantar de maratonistas um se levantasse e andasse para mostrar aos outros que sabe caminhar.
A dose de autocomprazimento por sentir o que é expectável, inunda os jornais de gastronomia e doenças raras, com campanhas de solidariedade, casos de vidas difíceis, não por real interesse mas para que nos cafés à hora de almoço se possa ter pena em massa, e obter o tal autocomprazimento por sermos tão bonzinhos.
O alvo da ajuda, não é senão o meio para o nosso fim, a dose de superioridade moral, pagando a má fé com umas caridadezinhas em forma de esmolas, que são as provas concretas do esforço para mostrar aos amigos.
E assim confirmar o nosso mundo de pompom, idealizado nas fantasias motivacionais.
As esmolas são as provas concretas do esforço dos indivíduos no tango da má fé dançando sós no baile apinhado.
Tal como a criança, o carente não vale por si, é só mais um objecto de consumo.
A cruz perdeu o sagrado e ganhou o mundano.
Da coisa de deus passou o crente a ser a coisa sua, encantado por uma suposta liberdade decorrente por ter deixado de ser gente e ter continuado a ser coisa.