O mais interessante, e trágico, de constatar nas várias experiências com o homem e a mulher comuns, que a sociedade burguesa dos convívios, com caracóis e cervejada ou nas reuniões sociais em que os pater familiae trocam experiências de sucesso, é a forma como interiorizam e assumem como normal os usos e efeitos da propaganda.
O maior truque do diabo não foi convencer toda a gente que não existe. Foi meter toda a gente a convencer toda a gente de que ele não existe.
O homem e mulher vulgar, isto é, a mole de indivíduos com que trocamos a experiência de viver, geralmente defendem a pés juntos que as artes da propaganda não surtem grandes efeitos nas suas mentes emancipadas, e pior, que é normal as empresas recorrerem às indústrias do convencimento para aumentarem as vendas. Que é assim que o nosso sistema funciona, que nada há além dele, que se assim não fosse a roda de engrenagem parava e voltaríamos ao Paleolítico.
É curioso que esta gente espalha anúncios pelas redes sociais exortando a um novo mundo, que divide o lixo por contentores coloridos separados por essências materiais, e muda de plasma televisivo de dois em dois anos, não querendo saber se os velhos e obsoletos utensílios vão parar a países de 3º mundo, deixando lá os plásticos e aproveitando os materiais nobres que voltam a alimentar a indústria primeiro mundista.
É compreensível, pois esta gente, durante algum tempo e embora muitos não se apercebam, ficou com a boa mão de cartas, no jogo da bisca da vida.
Lavar o automóvel como ritual rotineiro, não se compadece com pensar que dois terços do planeta não têm acesso à água potável.
Os protestantes misturaram o conceito de culpa com o de trabalho para a redenção e temos o neoliberalismo a anunciar aos 4 ventos, de que a miséria de uns é sua própria culpa, quem é pobre ou subdesenvolvido, é-o por sua culpa. Se queremos sair da miséria material e espiritual, devemos trabalhar mais. Nada de novo debaixo do Sol, a não ser ser este o paradigma geral, em boa parte para comprar a má-fé a troco do conforto a prazo que vamos tendo.
Não levantar ondas, cooperar, resignar com o mundo tal e qual como parece ser, mais do que necessidade, passou a profissão de fé. Fora deste nosso conforto, o que existe senão o caos?
Coincidência formidável, o nosso conforto coincidir com a última esperança para a Humanidade e civilidade.
Enunciar portanto a filha de putice do vale tudo da propaganda 'comercial' é um atestado de imbecilidade, nas jantaradas da gente adulta e responsável.
O emissor em regra arrisca-se a ser considerado uma raridade, uma ave-do-paraíso, ou relegado para a função de mija-na-parada, a leste do que é a interpretação geral do mundo, dessa gente responsável.
E aqui que ninguém nos ouve, quem pode provar os mecanismos em jogo, as intenções em acção, os conteúdos das cadeiras dos cursos de marketing aplicados à letra, senão aqueles pagos para os colocar em execução?
E no entanto, espalha-se a ideia de que o consumidor médio é emancipado ou adulto o suficiente para deslindar e cogitar sobre estes conteúdos, criados e estudados por especialistas para produzirem determinados efeitos.
Esta festa no lombo, que consiste em dizer que cada consumidor tem a capacidade crítica necessária para não se deixar influenciar pelo marketing, é um ponto-chave em relação ao qual esse consumidor espalhará com soberba, a sua capacidade por via das suas palavras e acções, a todos aqueles que achem a coisa um bocado estranha e inaceitável. Ninguém coloca limites, e a boçalidade espalha-se como um vírus.
Tudo vale, vale tudo.
Veja-se as crianças, as criancinhas.
A criação do estereótipo da criança como algo de indiscutível, para lá de qualquer debate, é ponto assente. A criança é a última almofada emocional mais importante que o âmago do indivíduo, seja ele pai ou mãe. Dá a ideia de que o indivíduo a partir de certa idade deixa de ser especial e fundamental. Muitas vezes só se entende sacrificando-se pela criança, numa rebeldia sempre adiada que culmina com a resignação na idade adulta. Pelo meio, ao jovem cabe consumir roupas de marca, viajar de mochila nas costas e frequentar os festivais de Verão.
A criança sem defesas é mais cidadão que um adulto?
Pode-se perguntar isto?
Para muito quem faz este tipo de perguntas só pode ser contra as crianças. O fundamentalismo é tal que chegámos a esse ponto.
A criança tornou-se objecto fétiche, tal como há uns anos atrás eram os modelos femininos, também eles crianças na maior parte.
O adulto está encaixotado entre a criança fétiche e o idoso repetido em poses que suscitam ternura rápida. A adesão a estes valores fundamentais e fundamentalistas é tal, que passa qualquer filtro racional, afinal é de emoção que aqui se fala.
Parece que vai ser lei proibir o abandono de idosos, como se os mesmos se parecessem com animais de estimação. Pouco convém ralar com as notícias vindas a lume recentemente em que Portugal é vendido como destino turístico de longa duração para idosos de outros países europeus. Um qualquer alguém do governo sugeriu despudoradamente que era uma indústria em que havia dinheiro a ganhar e empregos a criar. Fantástico, impedir por lei o abandono dos idosos indigentes deste Portugal, e aliciar com panos quentes os idosos remediados de outros países.
O abuso da publicidade despudorada que utiliza crianças, afinal setas às fraquezas das massas, na ânsia de vender afina pela criação de peças de nonsense que fazem bypass a qualquer mediação crítica.
A Associação Portuguesa de Direito de Consumo fez notar a sua existência num fleumático bocejar traduzido num comunicado segundo o qual parece que o código de publicidade pareceria letra morta.
Parece, afinal, que existem normas específicas para a utilização de crianças em anúncios, não sendo essa utilização permitida em peças sobre produtos que não lhes digam directamente respeito.
'Dá lucro às empresas explorar as crianças ou explorar os adultos através das crianças' queixa-se a APDC.
Pois. Quem diria.
Após anos desta prática corrente parece que misturar uma cabra e uma criança muito expressiva a chorar, no anúncio da Vodafone, foi a gota de água.
Perdemos a conta aos anúncios que ao longo dos anos e de forma completamente despudorada passaram pelas defesas dos consumidores como faca quente por manteiga, através do apelo ao paternalismo/maternalismo usando as crianças como isco para a coisa.
Agora, uma criança a chorar e uma cabra, alto e pára o baile.
Isto é uma palhaçada.
Pior, é uma palhaçada do politicamente correcto.
A APDC usa para mostrar que existe, a mesmíssima propaganda de mau gosto usando as crianças como desculpa para a preocupação.
Se fosse um tipo maduro ou uma dondoca trintona no anúncio a chorar ao ver a cabra, já não haveria problema?
Deixaria de haver apelo ao sentimento, à projecção do imaginário do espectador em relação aos comportamentos na vida real em relação ao anúncio?
Deixaria o mesmo de ser propaganda normalizadora?
Ah, mas os adultos têm defesas.
A chamada de atenção da APDC para a sua existência, visa passar a ideia de que se pode confiar maniqueisticamente na existência e operação das 'instituições' existentes.
Que tudo está regulado, ordenado e escrutinado, embora por vezes a máquina oleada precise de ajustes.
Há quantos anos se usa tudo o que são medos, complexos, lugares comuns, humor corriqueiro, comédia de situação, fraqueza humana, mediocridade, da vivência humana para vender aquele creme, aquele carro ou aquela margarina?
A preocupação da APDC e de outras semelhantes, parece ser com as crianças, que não podem participar em anúncios sobre produtos que não lhes dizem respeito, fazendo vista grossa à publicidade restante, como se só as mensagens subliminares fossem perigosas.
A infantilização dos adultos, incapazes de deslindar um texto complexo em português, não parece preocupar esta instituição, pela certeza das capacidades críticas de uma população esclarecida.
Quanto mais as crianças aparecem na propaganda dos adultos, mais os adultos se tornam crianças em relação à propaganda.