Parece que a espécie de Presidente da República que Portugal tem, em 2013, como representante máximo da nação, chefe das forças armadas, garante dos bons funcionamentos institucionais, senhor Aníbal Cavaco Silva, presidente de 30% dos portugueses, tem uma longa lista de afirmações sobre a diáspora portuguesa, das quais salientamos:
2006:
-«Quero dirigir uma mensagem particular aos portugueses que vivem e trabalham no estrangeiro (…)um aumento da competitividade da economia, num combate contra as desigualdades e promoção da qualidade de vida e inclusão social»
2011:
-"São frequentes as queixas dos nossos compatriotas, motivados para investirem em Portugal, de que os seus esforços esbarram com regras incompreensíveis, tempos de espera inaceitáveis, e tratamentos inadequados para quem pretende apostar em criar emprego e prosperidade no seu país (…) a sociedade portuguesa como um todo que terá de interiorizar a oportunidade decorrente do potencial empreendedor e de criação de riqueza da diáspora lusitana".
-"Todos não seremos demais para mobilizar esse enorme capital social que a diáspora portuguesa representa. Como já afirmei antes, mobilizar os seus recursos terá, inevitavelmente, de se tornar uma prioridade nacional"
-"Portugal precisa de trabalho, trabalho, muito trabalho".
2013
- «Portugal tem de ser capaz de aproveitar, de tirar partido, das potencialidades desta nova diáspora, como fazem outros países. Estudámos outros casos, como a Irlanda. Este Conselho (da Diáspora Portuguesa) surgiu como resposta a um repto que lancei, no sentido de mais vozes portugueses se juntarem às vozes de políticos e diplomatas para projetar Portugal no estrangeiro pela positiva e contribuir para corrigir alguma desinformação que existe sobre o nosso país e assim ajudar a melhorar credibilidade do país e difundir as suas potencialidades»
Manifesta o desejo de que os portugueses «além da ligação afetiva, tenham agora uma ligação mais empenhada em casos mais concretos para ajudar ao desenvolvimento do país».
- «Temos aqui um grupo de excelência de portugueses que exercem a sua atividade no estrangeiro, em diversas áreas, na economia, nas empresas, na cultura, na arte na cidadania, que ganharam uma projeção através do seu mérito, da sua experiência, e são altamente considerados. Demonstra bem a evolução que teve a nossa diáspora nas últimas décadas, no reforço da qualificação»
- «Espero que não estranhem que no atual contexto do nosso país eu apele a todos que contribuam para o desígnio maior de Portugal neste momento que é o relançamento da economia e o combate ao desemprego, ao mesmo tempo que tentamos tão rapidamente quanto possível reduzir os desequilíbrios das nossas contas públicas» além de acumularem a função de serem "embaixadores do Portugal real" que a malvada imprensa estrangeira representa o país de forma maledicente, afinal cabe ao escorraçado repor a justa imagem, ou nas palavras do presidente -"Corrijam, ponham os pontos nos ‘ís'"
Podíamos continuar com inúmeras outras ocasiões em que o nosso funcionário máximo, se referiu à ‘diáspora’.
Fiquemos por estas. Nelas podemos observar muitos ensinamentos.
Antes de mais, a nível linguístico. A manipulação da linguagem, ou melhor, como se diz hoje em dia, a optimização da comunicação e da imagem, transformou um verdadeiro êxodo, do torrão pátrio, da miséria, da pobreza, da desconsideração, que mereceria a qualquer político titular de responsabilidade na tutela, nos últimos 40 anos, a isolar-se num mosteiro e a não mostrar mais o seu rosto aos compatriotas, pois se um pedreiro falha a função quando o muro cai, se um engenheiro traça mal o traçado do IP5 e deve ser despedido, se um padeiro faz mau pão, se um qualquer profissional faz mal a sua profissão e não percebe ou não quer perceber tal, que se pode dizer de uma classe política que faz um tão bom trabalho que força à saída de centenas de milhar de cidadãos para o exterior?
Qual é o limite para o reconhecimento da incompetência, e da necessidade de um saneamento doloroso do regime republicano?
Não merece neste caso mais respeito, e não florear a realidade como sugere Cavaco Silva, e ao invés de chamar o perfume aventureiro de ‘diáspora’ chamar o êxodo em massa da mais formada geração portuguesa da História, de ‘Fuga’, ‘abandono’, via de desespero e abandono de navio que naufraga?
Este subterfúgio das palavras doces para enganar que ainda se fia em palavras, acolha a quem aprouver. Eu lamento, e sinto-me tão miserável, exasperado como os meus compatriotas que são forçados a sair para sobreviver e respirar, eu que não votei em nenhum partido dos que se podem considerar responsáveis, e que me encontro neste momento também a ponderar ter uma vida e filhos, sem ver que isso seja possível em Portugal.
Enquanto uns se banqueteiam e distribuem sermões por recepções e embaixadas, eu como sardinhas em lata, numa espiral de empobrecimento e miséria que eventualmente me levará a sair do meu país, que me custeou a formação, mas que mercê do seu apego à estrutura social senhorial, está a aniquilar o mais antigo país europeu.
Nas palavras do nosso presidente, uma ideia de fundo é patente. Dinheirinho. Já desde antes da crise imobiliária (2008), que Aníbal exorta às remessas de divisa dos expatriados. Liquidez, liquidez, dinheirinho nos bancos, para colocar a economia a bombar, mas parece que estes neo-escorraçados não caem na esparrela, vão e nada mandam, já não é o tuga que trabalha com a colher de pedreiro e a talocha para mandar patacos para a terrinha. Lamento apenas uma única coisa, o desalento que leva grande parte a amaldiçoar o país, o país não tem culpa nenhuma. Pessoalmente penso que como nação nos deslumbrámos com o ouro de Bruxelas e o eterno provincianismo, que culminou na manutenção e ascensão de novos actores nas mesmas estruturas de posse da propriedade e do sistema republicano. Para mim, o cancro é incurável, sem levar à morte do paciente, isto é da República Portuguesa nos moldes actuais.
Além do dinheirinho, Cavaco teme a imagem que Portugal tem lá fora, e não precisa de um pingo de vergonha para pedir aos escorraçados, para passarem custe o que custar, uma ideia de que temos feito grandes esforços, e que estamos a lutar, com talochas e colheres de pedreiro na mão, para inverter aquilo que planeámos a partir de 1986. A exortação parece-me tão ridícula como alguém num palco em teatro cheio, virado para os actores pedindo para fazerem pouco barulho para não acordar o público, que em sessão esgotada ainda decide se o presidente de costas voltadas desempenha um papel cómico ou trágico.
Muitos comentadores recebem e destilam propaganda, 24 horas por dia para justificar a esfíngica verborreia de alguém de quem sempre se vendeu a imagem de seriedade e sabedoria económica, afinal o Cavaquistão de fundos comunitários foi uma grande experiência de governação.
Pergunto-me se alguém algum dia comporá uma ópera ou um filme sobre esta absurda realidade.
Resta-me pegar no apelo de Aníbal Cavaco Silva, o segundo político com responsabilidades há mais tempo no poder, que os resultados do seu trabalho, trabalho, trabalho, estão aí.
II
Estive algum tempo para conseguir ver o afamado filme ‘ A Gaiola Dourada’ de Ruben Alves, filho de emigrantes portugueses.
O filme, agora que esmoreceu a atenção mediática, não foi uma surpresa, mas foi muito agradável. O Ruben conseguiu coloca-lo em levitação entre a comédia spaguetti, e o fado ladainho do esforçado emigrante que apenas serviria para a menor aceitação do filme.
Ficou-se por uma comédia de costumes que não chega a ser uma crítica de costumes, que só está acessível a uma obra de arte.
Digo isto sem negação do talento do realizador, mas baseado na minha convicção de que este é um assunto demasiado sério, o filme é um ultraje. Na minha opinião.
No filme os portugueses ‘principais’ são apresentados porteiros e mestres-de-obras, governantas e taxistas, muito trabalhadeiros e humildes. O contexto de fundo é a azáfama da vida burguesa, tolita como só pode ser a representação urbana da vida, pincelada com cores de plena integração do emigrante.
Os protagonistas, são serviçais, abnegados, e submissos em terra alheia, embora cordatos e respeitadores.
A aspiração à ascensão social revela-se no projecto de Lurdes, e dos dois bacalhaus, e no momento chave do filme, a revelação, na qual o casal se apercebe que todos conspiram para que fiquem porque precisam deles, numa rede de conveniências pessoais. Nesse momento Maria confessa o desgosto que tem com a sua instrumentalização, e com a indiferença dos indivíduos à sua entidade desde que ela continue a providenciar os apreciados serviços como sempre o fez. O português a queixar-se de ser usado.
O grito de Ipiranga luso não é um desejo de liberdade, mas o desabafo de um ressentimento longamente carregado, ilustrado pelo desejo de Maria em ir dizer à senhora Reichert todas as verdades que não disse ao longo dos anos, em que se esforçou por ser boa, enquadrada, útil, num jogo saloio de bola baixa para ter o meu ao fim do mês, e nem um obrigado me dão por isso.
Que português aparece retratado?
O português do país pobre, que vai ao hotel de luxo e leva a marmita de casa e a mini porque não aprecia a alta cozinha francesa, infeliz com o luxo e o requinte, mais em casa na humildade e comedimento. O português inseguro e bajulador, que se por um lado se apraz com o nascimento do neto em solo pátrio, por outro não se inibe de imitar a cozinha francesa para os convidados franceses Caillaux, com quem convive há 32 anos, para gáudio de uma filha complexada com a nacionalidade que partilha, e o filho com vergonha da profissão dos pais.
É o português que confunde Picasso com Peugeot, que diz ao filho para deixar os estudos e viver da bola. É o português que no trabalho censura e olha de soslaio José, se este se dá melhor com o patrão, ou seja é um português castrador e invejoso, especialmente se José veste ‘fato à patrão’, zombador da integração do compatriota, como se a mesma correspondesse à rejeição da origem comum.
É um tuga preocupado com o que dizem dele, com a imagem alheia, que só pensa no trabalho e que nem para si são bons, e até José quando o filho lhe diz que não quer fazer a mesma profissão que o pai, lhe responde que ainda bem, apesar de quer José quer Maria se sentirem com remorsos de maus serviços propositadamente prestados por vingança, não particularmente por brio, mas por não querer desiludir, isto é dar cabo da imagem, os outros, os ‘patrões’.
A pitada mais genial culmina com o Porsche Cayenne com atrelado atrás, por uma estrada rumo a Portugal, viatura que custa cerca de metade do que rende anualmente a herança de José, numa clara alusão à capacidade de gestão portuguesa. Porsche que será lavado na bica da propriedade vinícola dos donos, a quem a riqueza sobe à cabeça para comprar um carro de rico mas não para mandar os outros lavar o carro, agora que podem pagar.
Ruben retrata o portuguesinho, e não o português, pois não o conhece. E portanto considero o seu filme, como a maior prova daquilo que pretende expor ou denunciar, o complexo. Este filme é redutor e complexado, pejado de estereótipos, como o pastel de bacalhau, o fado para turistas, o tremoço engolido com casca, e a emotividade gestual que talvez encontre eco em Itália ou em alguma aldeia portuguesa apenas habitada por surdos-mudos.
Os franceses não são melhor representados, o patrão é um porreiraço que chantageia José com o despedimento dos outros portugueses, no intuito de ganhar uma obra, os franceses neste filme parecem uns atadinhos, incapazes de clarividência, desenrasco ou de resolverem os seus problemas, adoram vinho do Porto e meter os compatriotas no seu lugar.
O filme foi um sucesso. Projectou a imagem dos portugueses como Cavaco a pretende. Como Salazar a pretendia também, trabalhadeiros, honrados, humildes.
Nada se fala das agruras, da expulsão, dos sacrifícios, das noites de choro, dos regressos estivais revanchistas com altas viaturas e vivendas construídas com telha preta, nem da persistência do francês em terras nacionais e da língua de Camões em terras de Flaubert, apenas para diferenciar o falante.
É um bom filme. É um filme complexado, bom para nos deixar satisfeitos com nós próprios.
Os portuguesinhos burguesinhos podem continuar a achar bonacheirona esta diáspora, e a ignorar os 5 milhões de portugueses forçados a abandonar a sua terra. Os franceses podem continuar a alimentar os seus preconceitos, num ambiente parolo ditado pelas leis da economia e da má escolha política.
A intenção do filme é homenagear os portugueses. A de Cavaco será de resolver a coisa pelo melhor. Com tanta intenção boa, somos mesmo uns azarados.
2006:
-«Quero dirigir uma mensagem particular aos portugueses que vivem e trabalham no estrangeiro (…)um aumento da competitividade da economia, num combate contra as desigualdades e promoção da qualidade de vida e inclusão social»
2011:
-"São frequentes as queixas dos nossos compatriotas, motivados para investirem em Portugal, de que os seus esforços esbarram com regras incompreensíveis, tempos de espera inaceitáveis, e tratamentos inadequados para quem pretende apostar em criar emprego e prosperidade no seu país (…) a sociedade portuguesa como um todo que terá de interiorizar a oportunidade decorrente do potencial empreendedor e de criação de riqueza da diáspora lusitana".
-"Todos não seremos demais para mobilizar esse enorme capital social que a diáspora portuguesa representa. Como já afirmei antes, mobilizar os seus recursos terá, inevitavelmente, de se tornar uma prioridade nacional"
-"Portugal precisa de trabalho, trabalho, muito trabalho".
2013
- «Portugal tem de ser capaz de aproveitar, de tirar partido, das potencialidades desta nova diáspora, como fazem outros países. Estudámos outros casos, como a Irlanda. Este Conselho (da Diáspora Portuguesa) surgiu como resposta a um repto que lancei, no sentido de mais vozes portugueses se juntarem às vozes de políticos e diplomatas para projetar Portugal no estrangeiro pela positiva e contribuir para corrigir alguma desinformação que existe sobre o nosso país e assim ajudar a melhorar credibilidade do país e difundir as suas potencialidades»
Manifesta o desejo de que os portugueses «além da ligação afetiva, tenham agora uma ligação mais empenhada em casos mais concretos para ajudar ao desenvolvimento do país».
- «Temos aqui um grupo de excelência de portugueses que exercem a sua atividade no estrangeiro, em diversas áreas, na economia, nas empresas, na cultura, na arte na cidadania, que ganharam uma projeção através do seu mérito, da sua experiência, e são altamente considerados. Demonstra bem a evolução que teve a nossa diáspora nas últimas décadas, no reforço da qualificação»
- «Espero que não estranhem que no atual contexto do nosso país eu apele a todos que contribuam para o desígnio maior de Portugal neste momento que é o relançamento da economia e o combate ao desemprego, ao mesmo tempo que tentamos tão rapidamente quanto possível reduzir os desequilíbrios das nossas contas públicas» além de acumularem a função de serem "embaixadores do Portugal real" que a malvada imprensa estrangeira representa o país de forma maledicente, afinal cabe ao escorraçado repor a justa imagem, ou nas palavras do presidente -"Corrijam, ponham os pontos nos ‘ís'"
Podíamos continuar com inúmeras outras ocasiões em que o nosso funcionário máximo, se referiu à ‘diáspora’.
Fiquemos por estas. Nelas podemos observar muitos ensinamentos.
Antes de mais, a nível linguístico. A manipulação da linguagem, ou melhor, como se diz hoje em dia, a optimização da comunicação e da imagem, transformou um verdadeiro êxodo, do torrão pátrio, da miséria, da pobreza, da desconsideração, que mereceria a qualquer político titular de responsabilidade na tutela, nos últimos 40 anos, a isolar-se num mosteiro e a não mostrar mais o seu rosto aos compatriotas, pois se um pedreiro falha a função quando o muro cai, se um engenheiro traça mal o traçado do IP5 e deve ser despedido, se um padeiro faz mau pão, se um qualquer profissional faz mal a sua profissão e não percebe ou não quer perceber tal, que se pode dizer de uma classe política que faz um tão bom trabalho que força à saída de centenas de milhar de cidadãos para o exterior?
Qual é o limite para o reconhecimento da incompetência, e da necessidade de um saneamento doloroso do regime republicano?
Não merece neste caso mais respeito, e não florear a realidade como sugere Cavaco Silva, e ao invés de chamar o perfume aventureiro de ‘diáspora’ chamar o êxodo em massa da mais formada geração portuguesa da História, de ‘Fuga’, ‘abandono’, via de desespero e abandono de navio que naufraga?
Este subterfúgio das palavras doces para enganar que ainda se fia em palavras, acolha a quem aprouver. Eu lamento, e sinto-me tão miserável, exasperado como os meus compatriotas que são forçados a sair para sobreviver e respirar, eu que não votei em nenhum partido dos que se podem considerar responsáveis, e que me encontro neste momento também a ponderar ter uma vida e filhos, sem ver que isso seja possível em Portugal.
Enquanto uns se banqueteiam e distribuem sermões por recepções e embaixadas, eu como sardinhas em lata, numa espiral de empobrecimento e miséria que eventualmente me levará a sair do meu país, que me custeou a formação, mas que mercê do seu apego à estrutura social senhorial, está a aniquilar o mais antigo país europeu.
Nas palavras do nosso presidente, uma ideia de fundo é patente. Dinheirinho. Já desde antes da crise imobiliária (2008), que Aníbal exorta às remessas de divisa dos expatriados. Liquidez, liquidez, dinheirinho nos bancos, para colocar a economia a bombar, mas parece que estes neo-escorraçados não caem na esparrela, vão e nada mandam, já não é o tuga que trabalha com a colher de pedreiro e a talocha para mandar patacos para a terrinha. Lamento apenas uma única coisa, o desalento que leva grande parte a amaldiçoar o país, o país não tem culpa nenhuma. Pessoalmente penso que como nação nos deslumbrámos com o ouro de Bruxelas e o eterno provincianismo, que culminou na manutenção e ascensão de novos actores nas mesmas estruturas de posse da propriedade e do sistema republicano. Para mim, o cancro é incurável, sem levar à morte do paciente, isto é da República Portuguesa nos moldes actuais.
Além do dinheirinho, Cavaco teme a imagem que Portugal tem lá fora, e não precisa de um pingo de vergonha para pedir aos escorraçados, para passarem custe o que custar, uma ideia de que temos feito grandes esforços, e que estamos a lutar, com talochas e colheres de pedreiro na mão, para inverter aquilo que planeámos a partir de 1986. A exortação parece-me tão ridícula como alguém num palco em teatro cheio, virado para os actores pedindo para fazerem pouco barulho para não acordar o público, que em sessão esgotada ainda decide se o presidente de costas voltadas desempenha um papel cómico ou trágico.
Muitos comentadores recebem e destilam propaganda, 24 horas por dia para justificar a esfíngica verborreia de alguém de quem sempre se vendeu a imagem de seriedade e sabedoria económica, afinal o Cavaquistão de fundos comunitários foi uma grande experiência de governação.
Pergunto-me se alguém algum dia comporá uma ópera ou um filme sobre esta absurda realidade.
Resta-me pegar no apelo de Aníbal Cavaco Silva, o segundo político com responsabilidades há mais tempo no poder, que os resultados do seu trabalho, trabalho, trabalho, estão aí.
II
Estive algum tempo para conseguir ver o afamado filme ‘ A Gaiola Dourada’ de Ruben Alves, filho de emigrantes portugueses.
O filme, agora que esmoreceu a atenção mediática, não foi uma surpresa, mas foi muito agradável. O Ruben conseguiu coloca-lo em levitação entre a comédia spaguetti, e o fado ladainho do esforçado emigrante que apenas serviria para a menor aceitação do filme.
Ficou-se por uma comédia de costumes que não chega a ser uma crítica de costumes, que só está acessível a uma obra de arte.
Digo isto sem negação do talento do realizador, mas baseado na minha convicção de que este é um assunto demasiado sério, o filme é um ultraje. Na minha opinião.
No filme os portugueses ‘principais’ são apresentados porteiros e mestres-de-obras, governantas e taxistas, muito trabalhadeiros e humildes. O contexto de fundo é a azáfama da vida burguesa, tolita como só pode ser a representação urbana da vida, pincelada com cores de plena integração do emigrante.
Os protagonistas, são serviçais, abnegados, e submissos em terra alheia, embora cordatos e respeitadores.
A aspiração à ascensão social revela-se no projecto de Lurdes, e dos dois bacalhaus, e no momento chave do filme, a revelação, na qual o casal se apercebe que todos conspiram para que fiquem porque precisam deles, numa rede de conveniências pessoais. Nesse momento Maria confessa o desgosto que tem com a sua instrumentalização, e com a indiferença dos indivíduos à sua entidade desde que ela continue a providenciar os apreciados serviços como sempre o fez. O português a queixar-se de ser usado.
O grito de Ipiranga luso não é um desejo de liberdade, mas o desabafo de um ressentimento longamente carregado, ilustrado pelo desejo de Maria em ir dizer à senhora Reichert todas as verdades que não disse ao longo dos anos, em que se esforçou por ser boa, enquadrada, útil, num jogo saloio de bola baixa para ter o meu ao fim do mês, e nem um obrigado me dão por isso.
Que português aparece retratado?
O português do país pobre, que vai ao hotel de luxo e leva a marmita de casa e a mini porque não aprecia a alta cozinha francesa, infeliz com o luxo e o requinte, mais em casa na humildade e comedimento. O português inseguro e bajulador, que se por um lado se apraz com o nascimento do neto em solo pátrio, por outro não se inibe de imitar a cozinha francesa para os convidados franceses Caillaux, com quem convive há 32 anos, para gáudio de uma filha complexada com a nacionalidade que partilha, e o filho com vergonha da profissão dos pais.
É o português que confunde Picasso com Peugeot, que diz ao filho para deixar os estudos e viver da bola. É o português que no trabalho censura e olha de soslaio José, se este se dá melhor com o patrão, ou seja é um português castrador e invejoso, especialmente se José veste ‘fato à patrão’, zombador da integração do compatriota, como se a mesma correspondesse à rejeição da origem comum.
É um tuga preocupado com o que dizem dele, com a imagem alheia, que só pensa no trabalho e que nem para si são bons, e até José quando o filho lhe diz que não quer fazer a mesma profissão que o pai, lhe responde que ainda bem, apesar de quer José quer Maria se sentirem com remorsos de maus serviços propositadamente prestados por vingança, não particularmente por brio, mas por não querer desiludir, isto é dar cabo da imagem, os outros, os ‘patrões’.
A pitada mais genial culmina com o Porsche Cayenne com atrelado atrás, por uma estrada rumo a Portugal, viatura que custa cerca de metade do que rende anualmente a herança de José, numa clara alusão à capacidade de gestão portuguesa. Porsche que será lavado na bica da propriedade vinícola dos donos, a quem a riqueza sobe à cabeça para comprar um carro de rico mas não para mandar os outros lavar o carro, agora que podem pagar.
Ruben retrata o portuguesinho, e não o português, pois não o conhece. E portanto considero o seu filme, como a maior prova daquilo que pretende expor ou denunciar, o complexo. Este filme é redutor e complexado, pejado de estereótipos, como o pastel de bacalhau, o fado para turistas, o tremoço engolido com casca, e a emotividade gestual que talvez encontre eco em Itália ou em alguma aldeia portuguesa apenas habitada por surdos-mudos.
Os franceses não são melhor representados, o patrão é um porreiraço que chantageia José com o despedimento dos outros portugueses, no intuito de ganhar uma obra, os franceses neste filme parecem uns atadinhos, incapazes de clarividência, desenrasco ou de resolverem os seus problemas, adoram vinho do Porto e meter os compatriotas no seu lugar.
O filme foi um sucesso. Projectou a imagem dos portugueses como Cavaco a pretende. Como Salazar a pretendia também, trabalhadeiros, honrados, humildes.
Nada se fala das agruras, da expulsão, dos sacrifícios, das noites de choro, dos regressos estivais revanchistas com altas viaturas e vivendas construídas com telha preta, nem da persistência do francês em terras nacionais e da língua de Camões em terras de Flaubert, apenas para diferenciar o falante.
É um bom filme. É um filme complexado, bom para nos deixar satisfeitos com nós próprios.
Os portuguesinhos burguesinhos podem continuar a achar bonacheirona esta diáspora, e a ignorar os 5 milhões de portugueses forçados a abandonar a sua terra. Os franceses podem continuar a alimentar os seus preconceitos, num ambiente parolo ditado pelas leis da economia e da má escolha política.
A intenção do filme é homenagear os portugueses. A de Cavaco será de resolver a coisa pelo melhor. Com tanta intenção boa, somos mesmo uns azarados.