Este pequeno vasilhame anteriormente utilizado para sorver café, a droga mais legal a seguir ao amor e ao sentimento de superioridade moral, (righteousness, em inglês, que difere da rectidão pois em ambiente novo mundista assume contexto de mistura de adequação metafísica intemporal e participação numa ideia de sucesso material e social temporal) fita-me por detrás das suas cores.
Mas não são as cores que me solicitam o pesar, antes as palavras inscritas a branco, que transcrevo:
‘The rhythm of time’.
Varias coisas me inebriam porventura por efeitos da cafeína e da privação do sono. Porque é que estando eu em Lisboa, em Portugal, para onde quer que olhe só vejo frases em inglês? Que deus anglo-saxónico poderoso é este que força milhares de jovens e menos jovens, particulares e empresas a utilizar expressões e palavras alheias em detrimento das que existem na sua própria língua? Que Hidra é esta que petrifica as sílabas da língua de Camões e deixa Shakespeare sair triunfante ainda que travestido pela boca dos falantes?
Não é nenhuma divindade setentrional em operação mas tão somente a deusa do provincianismo ancião dos eternos portuguesinhos. Ora conforme as modas do continente, se assiste a um ritmo de tempo mais longo, que testemunha as preferências pelas influências linguísticas francesas, alemãs ou castelhanas, bem mais próximas. A língua portuguesa passa a ser prostituída não quando assume por imitação creativa palavras de que carece, mas quando tendo palavras para a realidade a denotar, elas são preteridas por outras menos belas, mais técnicas, que dão uma aura de sofisticação ao orador que palavras na língua mãe apenas vulgarizariam. O portuguesinho é um imenso provinciano, especialmente se mora nas cidades.
Sushi lounge, snack bar, blazer, jogging, e milhares de outras expressões que encontram equivalente prévio na nossa língua, ouvem-se pelas cidades, e testemunham as duas vertentes do provincianismo lusitano.
Uma revela que o português não gosta da sua língua, nem do que é.
A outra revela que este afã mimético visa não simplificar contextos técnicos, mas tão somente aferir sofisticação e ‘glamour’ aos emissores.
O mal dos nossos pecados vem de não gostarmos de nós, de termos até vergonha daquilo que somos caso algum dia queiramos enfrentar a árdua tarefa de querer descobrir, de queremos ser algo de diferente, algo cosmopolita, queremos ser como os outros, aqueles que parecem ser melhor e mais modernos que nós. 10 milhões de portugueses com um complexo de inferioridade, que se manifesta em ouvir música estrangeira que esteja na moda ou que ninguém no torrão pátrio conheça, em adaptar estruturas e organogramas de acordo com as soluções encontradas lá fora, sobrevalorizando tudo o que é estrangeiro só porque não é português.
O mal dos nossos pecados vem de querermos parecer mais aos outros para quem representamos a nossa peça de teatro, a esses outros a quem mostramos que temos um carro topo de gama, um telemóvel topo de gama, que temos uma casa exclusiva, que as nossas ceroulas vêm de Itália e foram feitas por um alfaiate que é misto artista/artesão.
A pompa das nossas representações criou uma cultura da aparência, da estratificação, da distância entre as pessoas e da desconfiança. Criou as sementes da nossa bovinidade geral, pois só no olhar submisso dos outros encontramos a prova de que a nossa vida é bem sucedida.
Falhamos rotundamente como nação, e porque falhamos como nação, somos indivíduos falhados, sem raízes, sem referências, esquizofrénicos sem identidade, pior, albergamos no covil da nossa consciência a crença surda e interior da nossa falta de valor, que se observa paradoxalmente em jornais e revistas que todos os dias mostram casos de ‘portugueses de sucesso’ lá fora, um gestor de multinacional, outra investigadora premiada, e por aí fora.
Como se fosse inspirador para alguém, saber que um português é capaz de ser em sucedido na área que quiser, como se fosse motivo de assombro, como se fosse algo de diferente em relação aos outros. Estes jornalistas tanto quanto os analfabetos que acham anacrónico o fado só porque não se parece com o hip hop 50 Cents, ou os analfabetos que gostam de fado só porque é chique gostar de fado, fazem parte da mesma tribo de provincianos, que urra o carácter vincado dos holandeses que andam com as tradicionais socas de madeira, mas que são incapazes de lhes repetir o gesto quando se lhes oferece um barrete de campino ou umas saias da Nazaré.
Não é uma chávena de café que me diz isto.
Mas é um acervo de cultura popular que revela por portas e travessas essa arqueologia do provincianismo, que aparece por exemplo num filme em que é estrela Joaquim de Almeida, em 1994, e que se chama ‘Uma vida normal’. Nele podemos ver um estereotipo do conservador do século XXI, ou seja, daquele tipo de pessoa que se afeiçoou tanto a este compromisso ontológico, a este modo de viver e de pensar que hoje treme de medo ou desdém só por alguém bradar ‘mudança’. Um copywriter quarentão afoga-se em tabaco e malte, mimetizando os bons filmes gringos com humphrey bogarts atormentados, cinícos e descuidados. O sexo é tratado com a relatividade de quem anda numa vida farta, sem carga dramática, tanto quanto é semelhante a leve trabalho que se entrega ao chefe no último dia do prazo estabelecido. Que dizer desta ode à vida moderna e ao fel existencial que o actor tenta transmitir à personagem, em claro contraponto ao que a realidade nua e crua oferece, pois aos dramas burgueses de uma família de classe média, se compararmos uma realidade limite, de guerra, fome ou até mesmo pobreza, os achaques no celulóide pouco mais são que um exercício de arte.
Esta e outras formas de arte/propaganda criaram a ideia do que seria a modernização de Portugal, um país igual aos outros, e porque somos iguais somos igualmente dignos e estamos igualmente correctos.
A civilização urbana que cresceu nas sombras de 1986, é aquela que não quer perder a vida fácil travestida de dramática tal e qual como uma empregada de escritório acha que tem o pior emprego do mundo e trabalha mais que metade da população mundial ao mesmo tempo.
A cultura fútil que criámos para colocar no lugar da pele andrajosa que quisemos tanto largar em 1986, é a responsável pelos nossos medos, é a responsável pela nossa situação actual de nada produzirmos além de serviços e serviços de bandeja na mão como é o turismo.
Nas redes sociais abundam as citações a estrangeiros, por mais obscuros que sejam, e ninguém lê António Sérgio, ou cita Natália Correia. Poucos além de quem faz vida profissional disso, se dedicam a sorver e a compreender a cultura portuguesa, acossada em alguns cantos desprezada em tantos átrios.
O português não sabe o que é e não gosta do que acha que é.
O português acha que tudo o que vem de fora é melhor, ou que somos capazes de fazer igual aos outros, o que por si, por se achar que é digno de admiração, comprova que temos complexos de inferioridade em relação ao que somos.
O emigrante passa a maior parte do tempo a amar e a falar mal da sua pátria, e quando cá vem no Verão passa o tempo a falar de como é bom na França, de quão curiosas são as idiossincracias do país de acolhimento, mas sem tolerância alguma para com as do seu país, ( a maior parte do tempo com soberba e arrogância) pois não sabe ser senão um português provinciano.
Outros mistificam e mitificam a cultura portuguesa dando-lhes referentes exagerados só porque justamente querem realçar a nossa cultura, mencionam o papel cosmopolita do português no mundo como se fosse um cidadão iluminado e percursor de uma ordem mundial tolerante, quando o que está na base da diáspora oitocentista portuguesa é a miséria e a cupidez.
É este misto de expressões que caracteriza o provinciano, se por um lado odeia a cidade porque a teme e a sente superior a si, por outro almeja ser reconhecido como urbano, não ser mais desconsiderado em relação à sua condição original. Toma o brilho pelo ouro, e manifesta-se como emancipado mostrando aos outros que é comos os demais, através de trejeitos e de chapinhar no lago ao invés de lhe bordejar o fundo.
O português é assim por todo o lado reconhecido como o perfeito ovino, como aquele que fala inglês mais perfeito que os que falam em Albion, aquele que faz a massa mais francesa dos croissants, ou a melhor pasta de Itália. O esforço em mostrar-se digno perpassa cada compatriota, não para se superar a si mesmo, mas porque no fundo nascemos, crescemos e morremos a acreditar que somos uns coitados, os outros são melhores que nós.
No fundo permanecemos no mesmo eterno coma narcótico que se desenrola pelo tempo como um ritmo ditirâmbico, hipnotizados com a infelicidade de sermos nós.