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cogitationes

Para que serve isto?

Daqueles que não contam

3/29/2024

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A 10 de Março último, os portugueses foram de novo legitimar o velho sistema que fará 50 anos a 25 de Abril.
No futuro alargado se fará a história do que começou por ser uma boa ideia, que acabou por ser dobrada como um oito, até a um ponto próximo do de partida.
 
Aquilo que os comunas costumam de denotar como ‘as conquistas de Abril’.
Todos muito espantados porque não perceberam que as conquistas de Abril morreram no dia da aprovação da proibição do corte de estradas, ou da necessidade de informar ou pedir autorização para manifestações.
 
Creio, se não estou em erro, que no tempo do senhor António Guterres.
Senhor com uma longa lista de façanhas.
Nos debates que precederam a ida ovina aos sarcófagos da nossa formação política, mais do que a indigência cultural dos candidatos, o que saltou à vista foi ninguém falar no elefante na sala, ou o rinoceronte no quarto, ou o hipopótamo na cozinha. A política portuguesa está reduzida a uma espécie de discussão entre cônjuges que ou termina na esquadra com agressões, ou na cama com amor apaixonado à mistura.
 
Ninguém falou do colapso demográfico português e das razões do mesmo. Do envelhecimento do 4º ou 5º país mais envelhecido do mundo. Ninguém falou da necessidade de reformar a União Europeia, que está muito longe do que foi preconizado por Delors, e outros. Ninguém falou do êxodo, esse flagelo que não conseguimos estancar, de gente formada e não formada, que se vê substituída por imigração de outros pontos do planeta, tudo porque alguns governantes, onde se inclui Marcelo, os acolhem apenas para manter a Segurança Social à tona. O que é um insulto quer para os imigrantes que querem vir para o nosso país, quer para com os naturais que se esvaem em lágrimas quando têm de sair.
 
Em suma, os debates focaram-se em torno da classe média e reformados, se entendermos classe média, todos os que não podem fugir aos descontos, como professores, médicos, polícias, militares. Em certa perspectiva, os reféns da III ª República.
 
Mas adiante, que a malta para castigar a esquerda e os escândalos sucessivos de António Costa, optou pelos únicos que conseguiram soprar a melodia de Hamelin, no eleitorado.
 
Mas há mais despojados de quem o país não quer saber.
Há um abjecto etarismo, ou discriminação abjecta baseada na idade, que é transversal e injusta para com diferentes gerações de portugueses.
O caso das propinas por exemplo.
Parece que agora, quem ficar cá a trabalhar, pode pedir as propinas devolvidas, uma forma de o ‘governo’ incentivar a que não saiam ‘cérebros’ lá para fora, onde lhes pagam mais, afinal são os mercados.
Quando entrei na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, no ano da Graça do Senhor de 1995, a propina actual, meramente para pagar burocracias, era de 1200 escudos. 6 euros ou 6 marcos alemães, na moeda actual.
É com o governo do senhor António Guterres, que as propinas são introduzidas de forma gradual. Para calar os que lá andavam, e não fazer muito impacto nos novos candidatos que já iam preparados para a ideia.
O argumento usado por Guterres e entourage, é de que a malta formava-se e os filhos formados, depois teriam vantagens sobre os filhos dos não formados, porque podiam sair ou ir ganhar mais no mercado de trabalho. Era, portanto, necessário, corresponsabilizar as famílias dos que lá estudavam.
Houve manifs, houve polémica, mas com a serenidade socialista, tudo foi sendo aplacado com escudos de veludo.
Guterres, o tipo que exclamou que a educação era uma paixão. O senhor Amaral também era ferroviário de coração, mas depois foi para presidente da Lusoponte, com quem tinha negociado a primeira PPP do país à beira-mar plantado.
É preciso cuidado com esta malta emotiva.
Em 1995, eu já tinha alguns anos de construção civil, e de facto, ‘acartar baldes de massa’ não era segredo para mim.
À altura, eu pertencia a uma classe proletária, ou melhor, a gente que vive do seu trabalho, sem meios de produção que não a prostituição do seu esforço, e que, ninguém prosseguira estudos acima do antigo 6o ano de escolaridade. Além da vocação que sentia, olhava para a educação, para os meus colegas da altura, como em processo de mobilidade social. Íamos todos ser professores, pois estava a ‘dar’.
Na introdução das propinas, as tevês, privadas e públicas, colaboraram, reportagens diárias sobre o caos no estacionamento na Cidade Universitária, e até malta paga para dizer que os estudantes passavam a vida a beber cerveja e a repetir matrículas.
A máquina estava afinada, e tudo estava bem, porque tudo era preferível, ao Cavaquistão.
Quando dei por mim, não tinha rendimentos para pagar o passe social, nem as propinas, sem que trabalhasse.
Logo por azar, as Letras, fora do Ensino, não eram material de empregabilidade.
Foi o zénite dos call centers.
Eu e milhares de outros, explorados por um modelo de negócio que tapava os buracos da má organização, com a voluntariedade de malta que dependia dos baixos ordenados e precariedade laboral, para ir levando a água do seu moinho, à conclusão do ensino superior.
O passe social eram 60 euros e quando dei por mim, as propinas eram 800 ou mais euros.
Despesas com alimentação e a coisa mandava-se para 100 euros mensais e eu não tinha carro, e por isso as tevês não mo filmaram para propagandear a favor da introdução de propinas.
Apesar de part time, os trabalhos sazonais (porque poucos aguentavam lá muito tempo) nas galés das Telecom, tinham formações em forma de lobotomia, que visava enformar o operador telefónico, numa cultura de empresa e mercado, na minha opinião, e experiência, claramente infantil e acéfala.
Custava-me mais a quarentena de eliminar o impacto dessa experiência, que o próprio trabalho nocturno, onde tinha de lidar com clientes insatisfeitos, chefes incompetentes mas graxistas, em empresas onde o share permitia esta labreguice. Abundaram as empresas de chularia, aka empresas de trabalho temporário, e até, pasme-se, houve um ministro ou secretário de estado para o sector.
Não digo que foi no tempo do senhor António Guterres, porque não quero ser injusto.
Nem toda a gente tem de ser de direita, e muito estimo quem o é. Ergo, nem toda a gente tem de concordar com a visão que nos deram, do mercado de trabalho, e da necessidade de tem força laboral dispensável.
Quando trabalhei na saudosa PT em que o Estado não podia ter uma golden share, e agora será vendida ao desbarato por se ter adaptado à realidade do ‘mercado laboral’ a mesma deslocalizou todo o backoffice para o Indostão, e abriu call centers em Cabo Verde. Diziam na altura que era para fazer evoluir outras geografias planetárias, e longe de nós pensarmos que era para baixar o custo do trabalho.
Mas isto é converseta de comuna. Mas fica a questão, a minha geração lembra-se de ter sido usada, e ter anuído nessa exploração, porque lhes foi dito, que é natural para os que ‘começam’.
 
O meu rendimento escolar ressentiu-se, tal como o de milhares de outros, e sou capaz ainda hoje de usar uma lista telefónica para contactar dezenas de pessoas que abdicaram de tirar um curso superior, por causa dos custos associados.
E não, não estão a receber ordenados milionários por se terem tornado serralheiros ou caldeireiros de elite.
Como pode encarar a minha geração, a anterior e uma ou duas a jusante, o benefício de retorno de propinas e gratuitidade do passe social, às novas gerações?
O caro leitor não me entenda mal, não sou contra as benesses, de todo. Acho até que deviam ser mais e maiores, as benesses.
O que eu sou contra é, porque é que a minha geração e mais uma antes e uma depois, não teve essas mesmas benesses.
Porquê nós?
Ou admitimos que Portugal tem igualdade de tratamento, as diversas gerações que lhe insuflam vida, ou então, Portugal é um mercado a fingir que é país.
E se assim for, serei o primeiro a incentivar a que não se paguem impostos, a que se emigre em massa, para ver se de uma vez por todas, fazemos desaparecer este país quase milenário, onde as gentes tanto se odeiam entre si.
Ah, mas eram tempos duros…Falso. Entre o Cavaquistão e o primeiro governo do senhor Sócrates, foi quando mais fundos europeus, de convergência e afins entraram em Portugal. Agora já vão surgindo uns estudos onde aparece a ideia de que os fundos foram mal aplicados. Recorrente esta descoberta da trampa feita, depois de estar seca.
 
Nos tempos de fundos, foi quando os mercados, determinaram a redução do papel do estado na Educação superior.
Citei o senhor Sócrates, porque quando finalmente terminei o bendito curso, o senho Sócrates decidiu que os estagiários do mestrado pedagógico, não deviam receber pilim. Se calhar até deviam pagar, porque afinal era formação profissional à conta do Estado. Não se ponham finos não.
Ora, várias franjas de gente, percebeu, que o estar a ‘dar’ da profissão docente, estava a secar.
O estágio pago, a mil e tal euros por mês, não iria enriquecer ninguém, mas iria colmatar em parte, os quase 5000 e tal euros dos 4 ou 5 anos anteriores.
Hoje parece que faltam 30 000 docentes.
E ninguém será responsabilizado, a não ser os cidadãos cujas vidas andaram ao sabor desta malta que mais não sabe que fazer figuraças nas juventudes partidárias. E eu sei quem são, porque muitos deles estão hoje em São Bento, e foram colegas de Faculdade.
Que mal fiz, eu, a malta da minha geração, para esta diferença de tratamento?
Ah, mas tu és um situacionista e falas mal agora depois de veres os resultados.
Falso. Falei na altura, numa tradição que existia, que eram as Reuniões Gerais de Alunos. Na altura alertava para a iniquidade das medidas do senhor Guterres. Mas curiosamente, os líderes das listas e dos outros alunos, era malta ligada aos partidos. Os partidos têm e tinham gente, em todos os campos de expressão social, e isso explica em parte, a postura dócil e ovina, com que todo o processo decorreu.
Não me posso queixar. Ou posso? Devo?
As gerações antes da minha, entopem os hospitais para morrer aos magotes, por falta de hospitais de rectaguarda. Descartados e descartadas como trampa seca que já não contribui para o mercado.
Muitos sem casa própria, que é outra benesse que parece que agora dão á malta nova. Para ajudar a iniciar vida.
Todos aqueles com corda de forca em forma de empréstimo imobiliário, porque não vai a lado nenhum, também gostariam de ter obtido essa ajudinha, essa consideração, essa migalhita.
Eu por mim, daria-me por satisfeito, se alguém me soubesse explicar, porque é que não contamos para nada, e que mal fizemos ao país, para receber estes mimos.
Gostaria também de mandar um abraço ao senhor Guterres, pela vulgarização das PPP’s que tanto fizeram evoluir o nosso país, bem como a adesão tresloucada ao Euro, sob o argumento de que se o fizéssemos iríamos estar no pelotão da frente das decisões tomadas na ‘Europa’.
Creio que nunca estivemos tão á frente, e com tanto peso nas decisões que se tomam em Bruxelas.
 
Nunca votei em nenhum partido do arco governativo, não tenho filiação partidária, e não me fazendo de vítima, que não o sou, gostaria de perguntar aos líderes partidários e restantes concidadãos, que mal fiz eu, e tantos outros eus, para tal diferença de tratamento.

O que para aqui disse, pode ser confirmado no Arquivo da RTP. Mas o acesso ao arquivo público, não é barato. São ditâmes do 'mercado'.
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Carta para outro de mim

3/20/2014

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O poder das palavras só surge por despeito das condições materiais insustentáveis em palheiro ignífugo a todo o hálito.

O poder das palavras só surge pelo completo desrespeito por uma norma e por uma decisão acerca da insustentabilidade desta intermitência.

Não espero portanto mudar o mundo ou criar culto entre corações envernizados, apenas deixar meia dúzia de folhas escritas que atestem que eu fui vivo em determinado tempo e espaço antes que o amarelo do finito desfaça o papel em átomos que voem ao vento.

Que algum dia algum desconhecido leia estas palavras minhas e o placebo traidor da minha vida perdure uns instantes como sombra de nuvem de chuva além da minha morte.

Chamo-me José tenho 37 anos e vivi os últimos onze meses da minha vida na rua de mão dada com a Estação de Santa Apolónia.

O meu plano é terminar esta confissão, embebedar-me uma última vez com vinho tinto barato em embalagem tetra park desbotada e matar-me.

Matar-me não. Pôr fim à vida do meu corpo, que morto já estou eu há dois anos, desde que perdi o emprego, a casa para o banco, a mulher a filha e o meu amor-próprio.

Não decidi ainda se me lanço da ponte, ou nos carris de Belém, onde os comboios circulam mais embalados. É-me indiferente de qualquer das formas, talvez choque meia dúzia de transeuntes, e lhes estrague o dia, mas sei que me ligam mais desfeito em bocados de carne que chorando e vomitando como agora rente ao chão por me sentir um pedaço de merda. Desviam o olhar e fingem não me ver como se eu fosse imperdoável responsável da perdição que se abateu sobre mim. Tratam-me como merda que nem um olhar merece, e sinto-me como merda.

Sou ou fui uma pessoa normal. Quero que penses de mim, que fui uma pessoa normal que se passou. Só as pessoas que se passam é que se matam.

Sempre fui o que se pode chamar de um pobre diabo. Que por mercê da sorte ou inferior condição genética, sou fraco de cabeça ante ti forte leitor com juízo na vida.

Passei-me e deixei de querer viver. Morro anónimo como enteado bastardo que te dá asco só de lembrar.

Cresci na primária a comer sandes de margarina Vaqueiro, pobre mas não tão pobre que não conseguisse disfarçar. É fodido pernoitar ininterruptamente neste limbo em que não se é totalmente pobre de morar em barraca, e não ser rico o suficiente para levar sandes de paio para o recreio. De uns têm os colegas e professores pena, de outros aceitam-nos como mínimo. Aqueles e aquelas como eu são castigados porque apenas parecem desleixados, e o andrajoso que nos cobre parece mesmo ser falta de asseio, cresci com raiva dos olhares que censuram e o meu pai cumpre a promessa de me expulsar de casa quando fui para a tropa, que acabando me lança na rua sem um ofício que não o de limpar as cagadeiras de sargentos e oficiais cuja dignidade de casta se eleva acima do cheiro.

Dou comigo a acartar baldes de massa e a receber os mesmos olhares reprovadores com excepção da que viria a ser minha mulher, pois já eu trazia um ordenado aceitável de servente.

Para aumentarem os lucros os empreiteiros contratam estrangeiros que ganham menos do que eu, e aos quais o Estado faz vista grossa na exploração por interessar à economia.

Boa noite e um queijo, ando dois anos no limbo do fundo de desemprego, e em formações da treta que nada me ensinam senão que há muita gente a ganhar à conta dos fundos da CEE para formação profissional.

O meu ex patrão anda de Mercedes e eu arranjo emprego a cortar erva à beira da estrada, o dinheiro mal dá para pagar a renda e a televisão que é o meu único prazer nesta vida de merda, e fico sem emprego e a minha mulher já andava estranha toda arranjada como nunca se arranjou para mim, e um dia fui bater na janela do carro do outro que tem um restaurante na Baixa e lhe pode dar mais conforto material que eu, andei com a filha ao colo para ela ter juízo e voltar assim, fiquei só, ela com a custódia da filha e eu que nunca soube seduzir uma mulher ou fazer alguma coisa de produtiva tenho os meus amigos aqui a partilhar um pacote tetra pack de tinto, cagando sentenças filosóficas sem consistência pela boca aproveitando o torpor alcoólico para desabafar que se existe um deus sarcástico lá em cima, gostaríamos de saber qual o pecado da nossa essência que nos fez merecer o castigo.

Assim sendo mandar-me-ei ao encontro de dois rodados de camião na 2º circular em hora de ponta de forma a incomodar-te a vida o máximo que me é possível, não porque te invejo mas porque me vês com a mesma solidariedade que esta vida que já nada tem que me cative.


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Boas Festas!

1/2/2014

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A aparente euforia acabou.

A quadra natalícia e os últimos cartuchos do Ano Novo já passaram.

O Natal é cada vez mais uma festa só das crianças, a época onde tudo lhes é comprado e concedido como forma de compensar o mundo de merda em que as colocaram. Os pais querem ser os melhores amigos dos filhos, masturbam-se com a ideia de serem recordados e vistos como pais ‘porreiros’, que é também por estas partes sinónimo de modernos.

Aos adultos compensa também a vida de merda que têm durante um ano inteiro, e chegados a Novembro temos o crescer de um nervoso miudinho e ansioso, tal como o náufrago que vê terra firme por perto, mas demasiado longe para o seu desejo imediato. Sempre foi de perguntar, porque é que nesta ‘democracia’ mundial do trabalho forçado, ainda não se aboliu o pouco produtivo período de Natal. A resposta parece ser simples, serve para manter a roda a girar em torno do seu próprio eixo, as pessoas a comprar o que produzem e para servir como válvula de escape ao mundo que escondem aos filhos.

Basta ir a um centro comercial umas horas antes da ceia de Natal, apenas isso, e ver gente a rodos a comprar tudo o que se possa imaginar, para manter a tradição, que se por um lado é boa porque reúne as pessoas, por outro é uma carga de trabalhos e uma responsabilidade, comprar o bacalhau, comprar a prenda x, para o y, e há até quem cometa loucuras além do orçamento, afinal o Natal é uma vez apenas por ano, e esse sentimento de euforia mediatizado por todos os lados, facilita as loucuras consumistas a muita gente infantilizada. Não que o princípio de celebração da presença dos outros seja censurável, mas a sua celebração e simbolismo apenas através da compra é que torna a coisa sinistra.

Em Dezembro, as crianças esquecem-se dos dias a que se levantam às 7 da manhã para ir para a escola pública porque os pais os depositam ao cuidado de quem não tem a função de os educar, os professores, que são treinados para instruir e não para educar, são mal pagos para ambas as funções, têm de lidar com crianças que estão geralmente habituadas a pais porreiros que lhes compram o afecto com prendas de plástico e permissividade para compensar a ausência constante na sua vida só interrompida por alturas da reforma que se estende cada vez mais.

Habituados a isto, não é um professor com boas intenções que os vai assustar. Espanta-me não haver ainda grupos nas redes sociais de caça ao Professor, penso que para breve deve sair legislação nesse sentido.

As boas festas, aquela que nos passam pelo cachaço, são até preparadas no local de trabalho. Ao lado das folhas impressas a cor laser, de imagens de rãs engolidas enquanto estrangulam a cegonha de fino pescoço, e outras imagens esclarecedoras do frenesim de motivação para o trabalho e para a eficiência, as fotos da festa de empresa, onde toda a gente desempenha o esquizofrénico papel de parecer ter uma vida e uma personalidade autêntica fora do local de trabalho mas ainda assim mantendo as aparências, as fotos do rally paper ou do concurso de competitividade com outras empresas, destinado a fomentar a coesão do grupo e outras merdas da corporate culture, ajudam encolhendo-se dando espaço para colocar imagens natalícias, exortações à paz e ao amor mundial, (pelos pais que acham que amor é comprar playstations aos filhos) à caridade - a grande prostituta hodierna, na qual o cidadão dá moedas em troco de um sentimento de alívio de consciência, com que compra uma ideia de si como executor de um mundo melhor, no qual se preocupa em dar umas moedinhas, que na maioria vão parar ao Estado e ao bolso dos intermediários – numa sinfonia de superficialidade que deleita qualquer antropólogo e sociólogo amador.

Caminhamos pelas ruas desejando boas festas a toda a gente, desviando nossos pés das camas de quem na rua dorme, e chegamos ao trabalho contribuímos com uma moedinha para acabar com a pobreza em Portugal, para todos verem que nos ralamos.

Jantamos na noite de Natal com ar apreensivo enquanto desviamos a atenção entre as intrigas familiares de longa data, e as conversas sob o estado presente, com cuidado para não manchar o pull over angorá que a lareira vitoriana por detrás de nós aquece, carregando o sobrolho enquanto se discute o quão mal estão ‘as coisas’, e alguém até desabafa que os que vivem na rua são culpados do seu desaire, pois (geralmente o emissor da sentença) os outros trabalham estoicamente aguentando estoicamente merdas, e não vão assim viver para a rua.

Alguns concordam dizendo que sim com a cabeça, com cuidado para não se engasgar com o polvo quente que entra pela boca, empanturrada com batata a murro.

Bebem-se um whiskeys de eleição, e na altura de abrirem as prendas, medem-se pelo dinheiro dispendido, as progressões no progresso.

No Ano Novo é altura de celebrar a vida e o novo ano que começa, saudando escatologicamente mais um ano que repete o mesmo do ano passado, tão alienante e estranho, mais um ano de merda interrompido pelas festas que nos afagam o lombo, onde vemos reportagens sobre o Natal em Times Square, um provincianismo com certeza retribuído no outro lado do Atlântico que mostra como o Herman José fala bem inglês no Terreiro do Paço, ao excelente estilo provinciano português.

Jovens e menos jovens são entrevistados exultando os seus cinco minutos de fama, e dando réplica a um impulso nervoso de sorrir e exprimir algo memorável que cria uma tensão estranha à qual nada resta senão dizer ‘Não há palavras!’, haver há o potencial emissor é que nunca se debruçou muito sobre elas.

Desejos de paz e amor universal, e que as pessoas fossem melhores, se tal acontecesse por decreto. Ou se um filho da puta deixasse de o ser só porque um anónimo a tal exortou na TV.

Celebra-se o ano que vem, em desculpa para a borga, que alivia os imberbes do peso de pais ausentes e de futuros sombrios, perpetuando a mesma tradição tão estranha de celebrarmos a merda de mundo que deixámos criar a troco de papas e bolos.

Terminamos sempre a noite, abraçados a nós próprios, eram afinal essas as festas que fazíamos no nosso lombo, uma forma de nos reconfortar de não podermos fazer nada para mudar a merda em que nos afundamos.

Boas festas.

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Hino dos desapossados

10/28/2013

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I

Trabalho. O dia todo. O formigueiro da submissão pica-me até nos poucos minutos em que fujo para fingir que almoço, quando circulo pela via rápida em filas intermináveis que derem a ganhar muito dinheiro a muita gente que não nós, e que se calhar agora passam por mim em carros de grande cilindrada, ar condicionado e Mozart nos rádios de alta fidelidade.

Dizem-me que nada fiz para ter uma vida decente, que uma vida decente é cara e tem de ser paga a sangue, paga com esforço, paga com distância de tudo aquilo que amo nesta vida, dos meus filhos, dos meus pais, dos meus próximos.

A competição e a avareza tomaram conta da forma de relacionamento entre as pessoas, e os colegas de trabalho raramente são amigos, e à impessoalidade chama-se profissionalismo. Sou um dos milhares de anónimos que põe fim à vida sem que os jornais o noticiem. São mais colunáveis outras colunas de fumo para as massas. Ninguém fará as estatísticas daqueles que morrem na sombra do anonimato, por dívidas, por solidão, por exclusão, por inadaptação.

Inadaptação a um mundo de merda é hoje sinónimo de estigma. Os fortes espezinham os fracos, com hinos a Galton, são malucos, são estranhos, têm pancada. Como se fosse são viver uma vida de opressão onde as pequenas fugas são os créditos fáceis cedidos com caras sorridentes e os incumprimentos com desdéns judicativos. Claro foda-se claro, endividas como podes para esquecer o facto que és pobre e levas vida de emigrante no teu próprio país. A infância fez-te promessas que aparecem traídas assim que sais da universidade, e o desafogo material não parece ocorrer nunca. És revolucionário no teu ninho de indigência, mas conservador nos teus fartos jantares com amigos ou nas discos por aí e acolá.

Só és merda, quando a onde te domina, quando te enrola e traz para o fundo sem saberes para onde está o Norte, e aí és o alvo das risotas, das desconsiderações externas e internas pois que pensas mal se achas que a tua própria consciência te vai deixar em paz.

Sofre aí filho da puta que nada mais mereces que aquilo que a vida te dá, se encheste o cu, agora pagas pelo juízo que não tiveste.

Que caralho de sociedade esta onde se dividem as pessoas entre normais e entre anormais, entre ajuizadas e entre tresloucadas. O auto flagelo da correcção, daquela forma de estar na qual o sujeito divide o mundo entre ajuízados e os outros cuja epítome é a mentalidade de polícia, que adopta uma postura de indefectível cumprimento das regras que todos os dias vê transgredidas, adopta com ele a visão assustadoramente exacta de um mundo lógico e ordenado em vias de funcionar bem não fossem os inaptos a moer a engrenagem.

O auto flagelo da correcção que qualquer drogado ou pedinte reconhece no olhar do transeunte que passa e que lhe nega a esmola ou a compreensão. O auto flagelo da correcção que serve para uma população inteira como critério para os seus juízos de valor.

Os silêncios de admiração ante as histórias de sucesso empresarial ou as espertezas cometidas, e eu e todos os outros que suspiramos os últimos golfos de ar, a um momento pensamos que as opiniões são uma epidemia, a certeza plena e inamovível de quem se sente na certeza da sua visão do mundo, é uma força tremenda ainda que amputada de pernas, que torna cada um em zombie ao serviço da sua própria miséria. É a prisão a este mundo, ao imediato, ao afã e à curta vida de formiga que transforma os homens em ratos e as mulheres em figuras ridículas, pena que só a àgua do Tejo, sob o alto desta ponte encarnada só agora mo mostre.

Trabalho o dia todo, e mal consigo dormir. Não me chega o dinheiro que ganho, e até nem fui dos que se endividou mais. Nunca tive uma casa, ou tenho alguma perspectiva de ter filhos.

Ainda pergunto à vida, isto é a mim mesmo, que caralho vim eu fazer à vida senão cumprir as aspirações coevas de meus progenitores. Durante anos não nos ralámos com a direcção do comboio que passava lá ao fundo e que determina a nossa vida. O algodão de um suposto progresso embalava-nos no sono dogmático da conformidade, e a bem da verdade estávamos em assim, em torpor narcoléptico, em calmaria imbecilizante. Acho que sois loucos se não vos perguntais para que caralho serve estarmos vivos.

É a vida uma crónica hedonista que se rememora antes do fim numa velhice enublada?

É a sucessão das fases inertes assim que o tempo passa por elas, das fodas, das jantaradas, dos corpos de mulheres que agarrámos, das bebedeiras que coleccionámos e dos amigos que perdemos? Que caralho dá valor a esta merda? Que fazer com esta merda que me deram, um espírito e um corpo, a meter numa merda de emprego e fazer como todos os outros fazem?

Esta merda aperta e todos estrebucham pela sua fatia. Parece que o socialismo morreu...

II

A acefalia é uma nova forma de regime político. Implica uma ideologia baseada na simplicidade de ideias. A comparação com os processos lógicos da computação não é mera coincidência. O mundo ficou mais ‘tecnológico’ mas a dimensão espiritual do hipotálamo parace ter sido varrida para debaixo de um monte de silíca em processo entrópico.

Os arrogantes de merda de agora, herdeiros genéticos dos arrogantes de merda de então, sim, daqueles que nas primeiras décadas do século acreditavam mais na solução de todas as aflições humanas através da técnica, até que Auschwitz os calou. A técnica ao serviço da morte abriu portas para outras vidas, e pareceu querer camuflar aquele cerebrelo primitivo, e assim mascarou através de código binário a eterna divisão social já conhecida, e da qual os discursos hodiernos à mesa do jantar são devedores.

Começaram por ridicularizar o discurso interminável do espírito, as letras são tretas, e as línguas servem apenas para tradução, a Filosofia para abrir empresas de auto ajuda e aperfeiçoamento humano, a História para legitimar nacionalismos ou ideias políticas, a Geografia para elaborar estudos de impacto ambiental. Despiram-nas de toda a tensão criadora e problemática na mesma acção que tornou as universidades em centros de formação profissional e mercantilizou professores e alunos.

Logo as Humanidades, que eram aquilo que de melhor tínhamos para remoer a merda que nos querem fazer acreditar.

Quando disseram que o contribuinte isto, o contribuinte aquilo, ninguém bufou nem um sorriso de despeito.

Passámos de cidadão a contribuinte, e todas as almas que assim acederam a pensar gostaram da ideia, pois ao ver o que descontavam por mês para um aparelho estatal, gostaram de pensar que iriam ter algum tipo de poder neutro e objectivo naquilo que se faria ao dinheiro.

 O cidadão partira, deixou viúva a sua república e casou com as Finanças. Ao cidadão não se exigia que se preocupasse com a sua comunidade política, coisa chata que delegava em outros a quem pagava para fazer isso. Mediante a visão do mundo teria no cardápio o partido político correspondente, ao qual não faltavam as pitadas de sal virtual em forma de conspirações e teorias cabalísticas geralmente maniqueístas, que prendem o espectador ao viciante espectáculo, ao qual se juntou tardiamente o debitar diário de comentadores políticos, que são pagos para nos dizerem o que não vemos ‘lá’.

O contribuinte começou a tornar-se cada vez mais consciente do dinheiro que largava para o Estado, essa entidade abstracta, só presente nas marchas dos políticos e nas paradas militares. Começou o contribuinte a achar que só tinha palavra a dizer enquanto pagador dessa fanfarra toda, e que se havia gente a viver-lhe nas costas dos descontos, isso seria intolerável. Vai de malhar nos espertos e nos sem nada, enquanto se admirava em silêncio os elegantes alguém que são afamados para a populaça. Ao filho da puta que levanta o subsídio de sobrevivência se lançam vitupérios, mas ao tubarão da falcatrua que se reconhece da tv num qualquer supermercado se devem vénias e nos desfazemos em sorrisos. Afinal que se dizer de um filho da puta que nos desfalcou em milhões, pode ser uma cabala contra ele, que é tão digno por se achar tão senhor de si mesmo. Mesmo que seja culpado esperto é ele que sabe jogar no sistema, não é como o filho da puta que levanta o rendimento social de inserção, que nem para roubar é excelente, só esperto.

A divisão e a preocupação com a divisa, criou uma sociedade cínica, onde se torce o olho a construir um hospital a Norte do Mondego, e se olha com bons olhos mais um casino em Lisboa ou vice versa.

Não temos ninguém que nos salve e poucos escrevem sobre o domínio da linguagem, não só por especialistas, como por assassinos contratados postos a decidir o que é bom para o mercado ou mau, e a submeter a lógicas economicistas, a matéria dos cursos.

Precisaríamos de umas largas centenas de críticos sociais a trabalhar em contínuo para poder dar a imagem a esta sociedade do que ela é e se tornou, mas como não dá dinheiro, o pobre português atávico e emigrante vai continuar a fazer vénia ao senhor que passa e aos navios que passam por ele.

As Letras são tretas.

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Recusar, resistir

9/18/2013

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«Artigo 21.º
Direito de resistência

Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública.



Artigo 22.º
Responsabilidade das entidades públicas


O Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem. »

 

Nós portugueses, que vivemos nesta era em que a areia e a matemática dão forma a um desenvolvimento dos meios de produção e comunicação em amplitude exponencial ao que aconteceu no passado, não podemos continuar a trilhar o mesmo caminho sinuoso e indeciso que temos trilhado nos últimos 800 anos.

E não podemos porque se a leitura dos acontecimentos passados fica muito bem codificada por palavras, é sempre uma traição aos sofrimentos que envolveram todos os processos e factos históricos. É fácil para nós no presente e no conforto de uma cadeira, julgar as grandes batalhas ou revoluções sob o nosso ponto de vista por detrás de uma vidraça vendo a chuva a cair.

É preciso supôr a carga dramática das mortes e sofrimentos alheios, das conquistas e da opressão passada, para não cair na relatividade que o conforto histórico parece sustentar.

Só esta suposição, ainda que fictícia, mas excitadora da sensibilidade e da consciência, permite criar a massa crítica da nossa indignação, e assim traçar no chão o risco que torna claro o limite para a transgressão que não podemos de qualquer maneira tolerar.

I

A história de Portugal pode ser lida não através de uma luta de classes, mas através das estratégias consecutivas que uma sociedade, cultura classista enverga para subjugar ou controlar a grande parte da população. A classe opressora mantém ao longo dos séculos a sua mão sobre o rosto do náufrago que se debate para se manter a flutuar, e não amiúde quando este logra chegar à balsa salvadora, de pronto participa em não deixar mais nenhum entrar para a referida balsa. Um destes exemplos históricos revela-se na forma como a burguesia quinhentista adquire foros de aristocracia como forma de não afectar a sociedade vigente.

O 25 de Abril assiste a uma mesma tentativa de quebra de amarras, mas cedo é corrompido por uma flutuação entre despojados e defensores de uma moderação conservadora, que hoje e por completo retirou todas as conquistas sociais adquiridas então, e que já por si pecaram por falta de conhecimento científico e audácia.

Assistimos vergonhosamente e de cabeça enfiada na areia, com medo e sem bússula, ao roubo descarado do património comum, sob invectivas e manipulações da linguagem, dos factos e dos números, para assim justificar o saque.

Estes actos causam o seu preço, sob o peso dos mortos por mão própria ou de outros, como a fome, a vergonha, o desespero.

A nossa mais preparada geração é forçada a emigrar, enquanto os mesmos que continuam ano após ano a perpetuar um estado de coisas que se mantém em surdina desde a Fundação, permanecem no país, em ritmos conhecidos e repetidos longamente, como é pródiga a história de Portugal em revelar. Olhe-se para este torrão pátrio que tanta gente expulsou para fora e que as gerações escolares aprendem como sinónimo de amor ao mundo e de aventureirismo, quando na realidade a miséria e o sofrimento por detrás do acto da emigração devia ser o risco traçado no chão da nossa indignação, pois que maior definição de falhanço de um país quando força os seus cidadãos a ter de viver noutros lugares?

II

            Temos de resistir. Temos de aproveitar esta geração formada com o dinheiro dos nossos avós e dos nossos pais, temos de nos unir e criar um exército revolucionário que force um novo país sem classes e sem todos aqueles que até agora tiveram responsabilidade no estado de coisas presente. Esses não perderão cidadania senão a possibilidade de voltar a desempenhar algo no Estado português. Os que enriqueceram ilicitamente serão reconduzidos ao que teriam se não se tivessem apropriado de riqueza indevida, e criaremos um governo apartidário, e gerido em torno de recursos e de uma Constituição que não seja para ser interpretada pelas falhas de linguagem do que intende, e onde a conspiração para voltar aos tempos antigos seja punida com a expulsão do país. São esses que têm de ser forçados a sair, não porque pensam de maneira diferente, mas porque defendem os seus interesses particulares em detrimento dos interesses de todos.

A população tem de perceber que um Estado laxista e que deixa a economia entregue a uma suposta mão invisível, é um Estado que se demite da sua função fundamental, o de zelar que todo e qualquer cidadão tem as condições para fazer de si mesmo aquilo que pode e deve fazer.  Para isto acontecer vamos ter de abdicar do grosseiro conforto que nos embotou o pensamento.

O conforto dos efémeros bens de consumo e de prestígio, a sociedade materialista em que o parecer parece mais importante que o ser, em que o lucro e o interesse próprio são apregoados como valores morais. Temos de perceber que o planeta não aguenta este ritmo de exploração e que a União Europeia nada mais é que uma velha boneca vestida com novos trapos e com os interesses hegemónicos de sempre.

A revolução é inevitável e desejável. Pessoas irão morrer, iremos dilacerar o nosso país numa luta fratricida, não porque somos violentos, mas porque fomos durante muitos anos demasiado mansos. A democracia verdadeira exige o sacrifício derradeiro, a mente presente e o esforço nunca regateado, a não sujeição a outros que me representam e em quem delego as minhas responsabilidades. Para podermos ser cidadãos dessa República temos de ter instrução e formação, saber ler e ter os dados para digerir e trabalhar, uma sociedade limpa e impoluta de ideologia que aparece hoje como coisa do passado mas que é uma outra boneca velha com os novos trapos do marketing.

III

Corrupção é o nome do inimigo, e cada defensor um inimigo da causa.

Corrupção implica:

a) o desvio de algo que era intencionalmente intendido no sentido de se retirar com consciência proveito próprio em detrimento da comunidade;

b) a existência de duas esferas de existência na vida social, a do estatal e a do privado,  que são as faces da propriedade e da iniciativa no que concerne à vida económica de determinada entidade geo política.

Isto por sua vez implica que existem duas ideias feitas acerca das dinâmicas sociais, e económicas, a primeira sustenta que os privados, leia-se cidadãos em nome próprio, são mais empreendores e mais capazes em gestão e que o bem estar dos privados corresponde quase sempre ao bem estar da comunidade, pois a riqueza de uns contribuirá para a riqueza de todos.

A corrupção é a reedição da Queda, em que a falha implica o erro de algo que existe ou foi feito para funcionar de determinada maneira. Se temos leis que favorecem a corrupção, são leis perfeitas e eficazes porque tornam possível aquilo que foi intendido ao formulá-las.  Os juristas e os governos elaboram leis que consolidam a divisão do tecido social em detrimento de uma intenção originária e comunitária.

Será mesmo assim? Se o jurista estiver convencido que o mundo funciona de determinada maneira, ao formular uma lei que se adapta a esse mundo ou que o torna cada vez mais possível, não está a ser corrupto. Mas se o jurista é um mercenário da lei, e trabalha nos espaços que lhe permitem elaborar a lei que convém a quem lhe paga, então age com conhecimento de causa, e recai na primeira tendência, ele acredita que está a agir de acordo com aquilo que acha do mundo.

Por isso deve a nova geração escorraçar como vendilhões do templo, todos os juízes, advogados e outros funcionários que ao longo dos anos têm estado sob a influência da sua mundivisão, e tratá-los como doentes a quem não se pode dar um trabalho perigoso sob medo de que ele não seja realizado convenientemente, é preciso tratá-los como inválidos. Que dizer daqueles que trabalharam as leis mas não as fizeram? Trabalhem com as novas leis.

Todos aqueles na administração pública que foram decisores devem conhecer o mesmo fim.

Quem não acredita no Estado, ou o encara como entidade a explorar em benefício próprio, não tem lugar na coisa pública. Os grandes agentes de corrupção, aqueles que mais activamente contribuem para a ruptura de um tecido social são os partidos políticos. Nenhum funcionário público poderá ser militante partidário e participar na política na fase intermediária da revolução que se aproxima.

Nenhum dos novos advogados e magistrados poderá estar ligado a algum partido, que se tornarão obsoletos quando:

1)      Se escrever uma nova constituição que exija do Estado a gestão de todo o conjunto geo estratégico da nação portuguesa, que garanta os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, de forma gratuita e universal, que garanta comida, roupa, habitação e formação, e todas as outras necessidades básicas dos cidadãos, de forma gratuita e universal;

2)      O sistema político impedir uma rotatividade corrupta e vergonhosa, entre tribos partidárias que apenas fingem diferir no aparente quando convergem no essencial, e isto consegue-se com a rotatividade dos indivíduos e a delimitação clara e precisa das funções a desempenhar nessa nova orgânica, o que exige que cada cidadão e cidadã estejam aptos a desenvolver essas missões.

Quando a Justiça, for isenta e despida das reverências das dignidades diferentes, podemos encetar uma auditoria ao passado como forma de limpar o presente e preparar o futuro.

IV

Temos de chamar quem emigrou, temos de utilizar esta geração explorada, formada, acossada e expurgada por vagas de inaptos e anti comunitários traidores, que por inaptidão ou má fé criaram as condições para uma expulsão dos nossos jovens.

Expulsão duplamente dramática pois priva a nação de conhecimento técnico que fará parte das novas estruturas do futuro, e condiciona cada emigrante nos mesmos erros atávicos dos emigrantes passados, o quererem implementar no país aquilo que de melhor viam no estrangeiro, abdicando de uma imaginação criadora e falha de observação, bem como a paternidade de uma espécie de arrogância para com o torrão pátrio, mercê de uma suposta superioridade civilizacional porque estiveram ‘lá fora’.

Se conseguirmos despoluir estas gentes, teremos motivos para sorrir, pois podemos dar uso a gente com valor inigualável, tal como outros com menos ou nenhuma formação. Mas só com o hábil manuseamento de estruturas científicas e produtivas, podemos criar um Estado racional que faculta ao cidadão tudo aquilo que de elementar necessita para sobreviver condignamente e assim pode ele dedicar-se a artes e ofícios que para seu deleite contribuirão exponencialmente para uma sociedade melhor e mais basta.

Isto no privado não acontece ou só acontece de uma forma extremamente indirecta.

Sustentar a existência de entidades que dentro do conjunto social labutam para a sua manutenção mais do que para a sustentação de um bem geral é mais oneroso que ter um Estado que nacionalizou os sectores produtivos essenciais facultando gratuitamente os seus proventos. O bem estar do privado não coincide com o público, e a competição económica só fará com que haja maior necessidade de corromper as leis.

Não é necessário matar os empresários ou empreendedores, basta retirar-lhes o motivo pelo qual se tentam evidenciar, a possibilidade de acumular capital e prestígio social. É assim uma sociedade anti-classista a resposta à corrupção legislativa, pois mesmo que se tema que sem empresas e empreendores ninguém fará fábricas ou trabalhará, e é exactamente essa a ideia. Com uma economia fechada e guiada por recursos, não será necessário trabalhar podendo o tempo ser gasto noutras coisas. Sem ninguém a abrir fábricas que fazem produtos supérfluos, mais tempo se pode passar a melhorar uma ideia ou a inventar algo de novo que melhorará ainda mais a vida em comunidade, desde que o Estado garanta o que espartanamente for tido como essencial para uma vida do cidadão. Com a economia do luxo e do desperdício morta, cada cidadão vaidoso só pode evidenciar-se de acordo com aquilo que a partir de si revela no serviço comunitário, agora que já não usa Mercedes ou detém a vida do próximo nas mãos quando o contrata ou despede. Neste ponto de vista, uma sociedade comunitária é a mais pura forma de méritocracia, e onde o interesse privado coincide com o bem público.

V

Temos de trazer os expulsos, e expulsar os corruptos. Temos de criar um sistema que seja racional, ecológico e gerível. A riqueza sendo nacionalizada, e a lei estabelecendo igualdade legal e de facto para todos, pode fazer o cidadão igual perante a lei.

Impedir a acumulação de riqueza (artificial) e a sua utilização como forma de distinção social, ajudará a amenizar a ânsia em julgar os outros pela aparência e a almejar ter aparência ou posses para garantir semelhante respeito ou deferência aos que hoje designamos como ‘bem sucedidos’.

E acima de tudo, tolerar e sustentar todos os preguiçosos, pois também eles têm direito à vida, tal como nós os não preguiçosos. Com a aceitação da preguiça social ajudaremos a fazer desaparecer a mundividência de carência, onde tudo é escasso e nos força a coagir os outros para que se entreguem ao trabalho. Onde a preguiça for opção, menos optarão por ela, talvez aqueles que sendo expulsos da administração pública, se possam dedicar a desenvolver mais que as aptidões sociais, o que já é suficiente castigo para quem sempre lutou para se diferenciar dos outros.

E acima de tudo, temos de decidir em comunidade, que queremos construir e concluir algo que impeça os ritmos de repetição e corrupção que são responsáveis por tanto sofrimento.

VI

Urge pois unir e criar um programa revolucionário a partir da Legião Expatriada, com organização de um plano político e bélico, pois onde as forças estatais não se responsabilizam pelas suas acções, e onde o sistema implantado ofende e delimita os direitos, liberdades e garantias do cidadão, a única solução é a guerra e a violência.

Primeiro começaremos com a resistência, com a subversão e militância em todos os sectores sociais que possam ajudar a causa. É responsabilidade dos emigrantes auxiliar os que ainda estão em solo pátrio na elaboração de um Estado paralelo ao Estado corrupto legitimado por uma minoria de quatro em quatro anos. Ao criar esta manobra de subversão mostramos à população que a saída para a vergonha actual não é trocar os actores mas demolir o palco, urge encenar uma peça diferente.

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Arquipélago Trabalho

9/3/2013

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 Chamo-me Andrade.


Sou um dos panhonhas da vida. Deves conhecer-me, vês-me na rua.
Sou uma daquelas pessoas que conheces e esqueces imediatamente sob o peso de um
juízo fácil e imediato.


«É um perdedor», um vale nada, um inapto, um triste, um
  desgraçado, um zé ninguém, sentencias em
introspecção.


Penso que tens razão.



Não gosto de trabalhar.
Detesto.


Odeio o mundo do trabalho, pelo menos tal e qual o tenho
  conhecido até agora.


A verdade do trabalho é uma verdade feita e mais santificada que
a necessidade de comer carne todos os
dias.


Não me vejo como particularmente rebelde nem particularmente
  disfuncional. A necessidade que tenho de te dizer isto mostra-nos claramente
  que começar uma cruzada contra o ‘trabalho’ é visto como rebeldia estéril ou
  sinal de cabecinha fraca.


Dizes-me que também tu não gostas nada de trabalhar mas que tem
de ser. Que o mundo é assim e que tens de pagar a tua vida, que faz parte de ser
adulto, que se não trabalhamos nada aparece feito, morreríamos à fome,
  ficaríamos parados a meio do progresso, que toda a gente tem de
trabalhar.


Quando insisto cedes e dizes-me para procurar qualquer coisa que
eu goste de fazer. Eu gosto de conspirar contra o
trabalho.



Dou comigo assustado quando sozinho na minha cabeça e após os
convívios, as gargalhadas, os discursos e as festas de natal, mergulho em
  cogitações nas quais as companhias, os risos, as palavras e os rituais me
  parecem um tal véu de ilusão, relativo mas absoluto, um andar intermédio onde
  todos vivem e no qual escolho retirar-me para viver numa cave auscultando a
  vida perene e falsa do andar de cima.


Assusto-me com a certeza que tenho que os outros é que estão
  enganados. Por isso pago.


Pago com provocações, discussões constantes, desconsiderações, e
sou de certa forma ostracizado, estrangeiro na minha vizinhança, porque pura e
simplesmente não me consigo limitar a fingir que vivo como todos, e forço-me a
engolir a revolta que guardo dentro de
mim.


Em meu redor se encontra tecida uma teia, uma rede de relações
humanas que me tentam puxar para a razão para a normalidade, para a razão, e a
normalidade dá-me vómitos. Estarei tão alienado que consigo reflectir sobre a
minha doença e a normalidade dos
outros?


I


Desde que comecei a trabalhar aos 16 anos, que senti que algo
havia de profundamente errado no trabalho. Eram os braços doridos no Verão
  quando nas férias grandes trabalhava junto com minha mãe numa fábrica. Não
  percebia muito bem como podiam andar com olhar alegre as pessoas que lá
  trabalhavam, quando todos tínhamos durante 8 horas de ficar retidos num
rectangular recinto.


Por detrás da gravidade da função via eu nos operários uma vida
que latejava, verdadeiramente humana, eram as intrigas, as gargalhadas, o choque
de gerações, as dinâmicas entre os sexos, as dinâmicas entre chefes e chefiados,
as novidades dos serviços e as relações com as máquinas, e todo o pano comum era
o de desempenhar um esforço para se poder levar para casa o sustento e sair de
cara lavada à rua perante os olhares judicativos dos outros, aqueles a quem
nunca confessaremos que o trabalho é uma canga com medo que pensem que somos
maluquinhos e nos relativizem. Nada há de pior que ser relativizado, ser
des-considerado no seio dos outros, é como não ter palavra a dizer. O
desconsiderado pode falar mas ninguém o leva a sério. É de certa forma afastado
do núcleo vivo da comunidade reduzido à única e mais abstracta categoria de ser
humano, é uma pessoa, mas sem poder político, sem capacidade de intervenção no
núcleo vivo que são as diversas redes de comunidade e cumplicidade que o
rodeiam. É em parte por isto que tanta gente se preocupa com a postura e as
atitudes em público, sob pena de fomentar confiança a mais ou medo de perder
relevância ou perder o tal poder político. A criança por exemplo era naquele
tempo um des-considerado, pois exprimia-se mas no fundo o que contava era a
sapiência fatal dos adultos que estavam convictos da sua maior experiência e
acerto de pensamento em relação à realidade, bem como o maior peso dos velhos
nessa partilha de uma visão fatal sobre a ‘vida’, sob expressões como
‘antigamente tinha-se de fazer assim ou assado, não é como hoje em
dia…’.


Estruturava-se assim no meio proletário uma das ínfimas gradações
que se podem olhar em mornas noites de Estio. A sabedoria dos velhos podia ser
útil como exemplo ou como base de dados. Hoje num mundo tão aparentemente
evoluído e frenético, os velhos são bens descartáveis. Excepto para a indústria
que os explora como isco.


No Verão seguinte comecei a formação em obras, com a pintura do
interior de uma vivenda entregue a 5 homens de diferentes idades e cuja ligação
suburbana passava por se conhecerem uns aos outros lá no bairro. Fazia tudo o
que me mandavam mas me diziam que me faltava fibra. Ao mais novo eu tentava
seduzir para assuntos mais pueris como observar a parede de outro ângulo ou a
colecção de isqueiros do dono da casa. Mas tal era evitado pelo seu medo de ser
incluído na mesma categoria de mascote que me pertencia, afinal uma não entrega
absoluta à missão significava a desconsideração de um mundo para o qual queria
entrar, o dos adultos.


A missão não me suscitava qualquer interesse, nem as conversas
que eram orientadas para a criação de boa disposição no desenrolar da jorna. Era
eu que ia buscar o tinto com sumol ao frigorífico, era o
aguadeiro.


Lavava os rolos, as trinchas, descarregava os sacos de cimento,
cuja minha inconsciência de adolescente, me fez querer também ser adulto, e nada
melhor que pegar em 50 quilos de Portland e ganhar uma hérnia discal para mais
tarde recordar.


Era insuportável a rotina de nada fazer, e ter de estar condenado
a estar ali, pese embora a solidariedade e bondade dos participantes, para
comigo. Não me seduzia a rotina, e era suportável porque sabia que mais um mês e
voltaria à escola. O trabalho era
sazonal.


Respeitava e admirava os companheiros que levavam a empreitada
adiante, e que se sacrificavam aparentemente sem esforço. Abominava a canga
monótona  que nos conformava a
  convivência.


Amealhados os trocos lá fui comprando a minha televisão e vídeo
vhs para ver filmes alugados nos clubes de vídeo
locais.


No ano a seguir já entrei para a função de acartar baldes de
  massa para fazer a betonilha mas o vigor da idade não fazia sentir o cansaço e
  mantinha-se o ânimo por poder 
conviver com meus  próximos
a execução fraterna de um propósito comum. O melhor do trabalho é mesmo o
convívio humano que através dele se vive. 
Entre os meus camaradas de labuta as primeiras percepções de uma veia
coerciva pois a dignificação do trabalho nas conversas sobre política, nas
avaliações das personalidades de conhecidos comuns onde a disponibilidade para o
trabalho representa um valor moral, e onde o meu estranhamento residia por saber
que abomino a repetição e o trabalho forçado e abstracto, embora parecer ser o
único. Em que ponto é que o sujeito abdica da resistência e da revolta contra
essa imposição e a abraça incondicionalmente? Quando é que cada um cede e
transforma esta realidade coerciva num pilar judicativo da sua visão do
mundo?


Passa-se um ponto de ruptura ou é mais fácil ceder à evidência do
trabalho? No trabalho desde que se o aceite, se o ame, se o defenda, tudo é
fácil. Os encomiastas são considerados e ouvidos, positivamente discriminados,
porque aceitaram a evidência da vida.


Calões e preguiçosos, laboriosos e dinâmicos, senhores e servos,
cantam em uníssono esta melodia elogiosa. Falar contra o trabalho não é insulto,
é tolice.


Nem tão pouco não querer fazer nenhum. Insulto é não respeitar a
ritualidade do trabalho, a solenidade da sua realidade.’Serviço é serviço,
conhaque é conhaque’ e a vida é um enclave entre o mundo do labor e o
  sono.


Empreiteiros passavam por mim e o tratamento não era o de igual
para igual, mas de alguém que se sente sentar em degraus acima, mesmo
  concidadãos de mesma classe social, precisam de vincar a sua antiguidade ou
  monopólio técnico de sapiência das coisas, numa clara estratificação que visa
  estabelecer hierarquias que asseguram os operadores, protegendo contra o caos
  da relatividade da condição humana. Sabendo cada um o seu lugar, nenhum se
  perde, e o mundo aparece estruturado.


O patrão tem sempre razão especialmente quando é
cortejado.


Eram tempos folgados, o admirável mundo novo da riqueza aparente
tornava relativamente aprazível viver num ambiente sem pressão mas a rotina, a
repetição sem sentido de uma missão que não é para cumprir mas para ir
cumprindo, faziam-me ansiar por fazer algo em adulto que não passasse por
  semelhante harmonia.


Foi a explosão da construção civil que arrastou também milhares
de trabalhadores de outros países para o novo el dorado de estuque rachado e
vigamento deficiente. Com eles chegaram os tempos das vacas magras pois a
competição lançou os preços por aí abaixo e foi cada vez mais difícil viver
condignamente.


Certas vezes vinha para casa de transportes e a repulsa pela
  condição de trabalho braçal e sujo era patente nos olhos dos observadores que
  se perdiam brevemente a avaliar o andrajoso jovem 
como mais um condenado à mesma mediocridade especialmente numa altura em
que quem se vergava nos sectores tradicionais era considerado como
anacronismo.


Temia essas ocasiões e cheguei a levar roupa de casa para não
passar por isso. Outros companheiros faziam o mesmo. O olhar judicativo na
  carreira de autocarro, e as poses de superioridade eram tão assertivos que uma
  estátua de pedra se sentiria de manteiga na instalação
dúvida.


Trabalhar nas obras era considerado fracasso nesse distante
  Portugal moderno.  Os clientes que
  contratavam os ‘nossos’ serviços tratavam com proximidade o patrão’ mas com
  soberba os empregados. Acabei o secundário com esperanças de poder escapar a
  esta lógica de hierarquização e desigualdade. Estava farto de escola e decidi
  cumprir o meu serviço militar voluntariando-me. Repetição do mesmo, o melhor é
  a camaradagem, o pior a contínua variação dos modos de tratamento, mesmo dentro
  daqueles que teoricamente estariam em posições equivalentes. Já não passava já
  por uma questão de garantir respeito, mas também de garantir uma visão acerca
  de si e do seu valor, de acordo com a antiguidade ou a experiência. Os que
  supostamente ocupavam as cúpulas do oficialato tratavam os de fundo de tabela
  como epsilons do Huxley, ‘ó Zé nabo calcula-me lá isto’ mostrando por vezes uma
  convicção latente de que a diferenciação em dignidade obedecia a factos
científicos de origem genética. Adorava o que fazia a maior parte das vezes e
não me lembro de negar a nada, insuflado que estava da crença de que servia o
meu país. Mas sentia que queria e tinha capacidade para algo mais exigente. Até
que nem fosse para garantir um pouco da dignidade de tratamento que desde a
adolescência me escapava. Talvez se fosse doutor e pudesse provar que não era
mais um, como me sentia tratado, pudesse finalmente viver em igualdade com os
homens. Estudei e entrei para a Universidade. Durante uns tempos não cabia em
mim de orgulho. Já não me sentia tanto com as diferenças de tratamento porque
agora fazia algo que só alguns faziam, e tinha sido seriado e até nem me tinha
saído nada mal.


O primeiro ano foi nulo, demorei-me a ambientar e acabei por ter
de sair da tropa já numa fase em que me sentia de igual para com os outros que
como eu tinham um curso superior, ou estavam em vias de o
ter.


Custear o meu percurso levou-me a trabalhar em cinemas, a fazer e
servir pipocas em contacto com o público, que quase nunca é simpático e tratam o
funcionário de forma mais displicente que o contratador de serviços. É difícil
levar a sério um trabalho onde a merda calha sempre aos mesmos e onde após
determinada absorção desse mesma matéria fecal, geralmente com exposições
  prolongadas, se evoluiu para um patamar onde o que há a desempenhar não é tão
  mau, e onde geralmente se começa a aprender o ofício de capataz, isto é a
  incentivar coercivamente os outros para o trabalho. Algumas boas almas advogam
  que se começa por baixo para aprender o ofício, mas em geral, evolui-se do
  trabalho sujo para o ‘administrativo’ não parecendo haver relação entre por
  exemplo a técnica de atender telefonemas e a função de gestão de um grupo de
  operadores de atendimento, a não ser que a conversa telefónica transmita noções
  de gestão. Ou seja, fora do discurso oficial o que existe é uma longa cadeia de
  hierarquias que exigem mais obediência e interiorização do sistema vigente, que
  propriamente competência. É esta a minha experiência.



Além de que sempre me interessou o facto de que os piores
  trabalhos são os mais mal pagos. Alguns escudam-se na ideia de que quem estudou
  merece recompensa. Eu e milhares de outros estudámos e não obtivemos nenhuma
  recompensa que não comprar um bilhete de avião para voar daqui para fora.
  Outros escudam-se na ideia de que houve uma aposta em cursos errados e os
  madraços optaram pelos mais fáceis, mas lá fora, para onde se compra o bilhete
  de avião, se pede inclusivamente aquilo que aqui não tem aceitação de
mercado.


Adiante, depois dos cinemas passei para a facilidade de empregos
no sector de recolha de lixo. Vulgarmente conhecido como ‘call centers’ onde
pernoitei 10 anos e com consequências psicológicas até hoje em mim perdurando.
Se me tivesse aguentado hoje poderia ser coordenador ou supervisor e quem sabe
até chefiar um departamento obscuro
qualquer.


Mas não conseguia, esforçava-me, mas o nó no estômago e as
  náuseas colhiam a sua vítima a partir de determinado tempo. Umas vezes porque
  não aguentava, outras porque mudava porque achava que tinha arranjado algo
  melhor. Nunca estive ou queria estar de coração num sítio que não respeitava,
  com a cultura burguesa de camisas engomadas por fora das calças de ganga que
  cobriam sapatinhos de vela e espreitavam as poupas de gel e laca. Desprezava as
  projecções de vida louca pelos bares da moda lisboeta, perpétua continuação da
  aura de popularidade ou sucesso social que havia observado no secundário. Os
«populares» do call center  eram os que conjugavam uma vida social
  preenchida e uma sapiência fatal acerca de tudo o que se passava no serviço.
  Eram os que impunham um respeito e mistificação pela hierarquia, pelos chefes,
  ainda assim de forma mais rebuscada e serôdia que alguns dos professores
  universitários que conheci que se referiam a colegas seus pela total extensão
  dos títulos académicos.


O call center em que
trabalhava, tinha contrato com várias empresas de trabalho temporário, que
  retinham dois terços do valor total pago, por cada operador. A função era
  disponibilizar e disciplinar o recurso humano que serviria para dar a cara
  perante o cliente, umas vezes para questões de funcionamento do serviço, outras
  para mascarar as burradas cometidas em tanta mudança de gestão e chefias, a
  níveis intermédios e superiores da corporação. Se algo funcionava, não era
  garantia que pudesse continuar. Um pouco como as revoluções no Ministério da
  Educação, cada gestor de topo queria deixar a sua marca e reformulava como lhe
  apetecia, e o que era verdade num dia era mentira no outro. Na salinha
  refeitório tínhamos água engarrafada e microondas para aquecer os tupperwares,
  com arroz de frango ou massa com atum, ou o omnipresente arroz de tomate com
  carapau frito.


No Natal havia uma festa da empresa onde os chefes
  confraternizavam de igual para igual com os outros, que porreirice a deles, mas
  geralmente só quem acreditava naquela merda é que
ia.


A maior parte estava ali para desenrascar alguma faceta da sua
vida e depois partia para algo melhor. A facilidade de emprego fazia-me despedir
e procurar outra coisa só encontrando aquilo de que eu havia fugido em primeiro
lugar. Mas adorei os tempos de escola, miúdas, cinema, livros e tudo isso. Dei
por mim a trabalhar para um banco a vender cartões de crédito, onde a solenidade
pelo serviço era acompanhada por um dinamismo de manga
arregaçada.


Era giro porque era obrigado a usar gravata. Quem me deu formação
foi uma loura bombástica que vestia sempre de branco e tinha uns mamilos
extrovertidos e grandes como botões de antigo amplificador hifi a válvulas.
Ensinou-me a mim e a a um companheiro de formação, que não acreditava na
fidelidade, e que não era fiel ao namorado, numa tentativa clara de angariar
  séquito entre nós.


Em todos os centros de atendimento em que passei, havia a
  promessa difusa de que se nos esforçássemos podíamos passar para funções
  melhores, podíamos até vir a fazer parte do
clã.


Sempre tive pudor sobre essa determinação. Eu estudava o que
  gostava e queria fazer o que gostava. Outros colegas meus tinham estudado para
  ter o canudo, para no futuro poderem mostrar que tinham completado uma formação
  e que a culpa seria do mercado por não os absorver. O curso era uma espécie de
  cicatriz de guerra que revelava a dignidade e a reverência devida ao
  combatente.


Ao menos tinham tentado e poderem lamentar-se da injustiça do
mundo era quase tão bom como ter ‘arranjado’ trabalho na sua área de
  formação.


Enviava imensas propostas para a casa dos clientes mas eles não
compravam o cartão, apreciavam a minha simpatia mas não queriam aquilo, e uma
chamada de alguém que se queixou da dificuldade de gerir o ordenado e do peso
que seria o cartão, fez-me decidir a não colocar lá os pés nem a impingir aquilo
ao meu próximo.


Utilizei a animosidade entre mim e a coordenadora para formular
um desentendimento que servisse para justificar para mim e para outros o sair de
mais um emprego. Curioso como mesmo saindo de uma merda que sinto que me oprime,
não consigo deixar de me sentir 
deprimido durante uns tempos.


Voguei umas temporadas sem trabalhar, ocasionalmente fazia uma
temporada num centro de apoio, mas gradualmente fui queimando o meu nome nas
empresas de trabalho temporário e um dos meus últimos foi num projecto pioneiro
que nunca saiu da fase de projecto,  naquele que seria o primeiro operador de
  telecomunicações a facultar videochamadas, e para o qual acorri, pensando que o
  pioneirismo seria sinónimo de tratamento mais ético e responsável para com a
  mão de obra barata. Nessa altura os TFT’s eram novidade e caros para caraças, e
  cada computador tinha dois. Verifiquei assim que pude o material no computador
  e verifiquei que tinha do mais barato por dentro. A coisa havia sido de facto
  baseada na imagem e não me refiro á videochamada.



Os coordenadores eram seleccionados de forma que ainda hoje é
ignota, e por causa do pioenirismo do projecto, da sua fase inicial, sabiam
  tanto ou menos que os operadores a quem davam formação. A sua maior mestria era
  mesmo assente nos dotes teatrais com que assumiam a sua posição de capatazes,
  por vezes com episódios deliciosos, como o Conguito a saltar ao lado de um
  colega nosso a quem o computador prendou com a protecção de ecrã, e o Congas a
  saltar e a gritar ‘Desliga isso, lá em baixo estão a disparar os alarmes!’ o
  que revelou para nós duas coisas, que havia monitorização dos computadores, e
  que o Congas não sabia o que era o fenómeno da protecção de
ecrã.


O Conguito era assim chamado por causa das horas que passava no
solário para ter um aspecto bem sucedido e saudável mesmo no Inverno. Tinha um
Golf preto com estofos de pele creme, e usava brilhantina no cabelo preto,
  especialista em manter uma imagem que o colocasse em igualdade de dignidade da
  namorada que o escolhera pelos mesmos motivos. Era também conhecido por ‘cu de
  pato’ por causa da geometria arrojada dos seus glúteos, sob as calças caqui e
  sapatos de vela que envergava invariavelmente a combinar com as suas camisas de
  marca.


Havia também o Miguel, o gay de serviço que por causa de um
  problema de pele, cheirava mal, e quando instado a tratar do assunto, por um
  supervisor com o mesmo problema, foi fazer queixa da empresa por discriminação
  homofóbica. Levava livros gigantescos e anotados de programação web, para
  passar a imagem de tech sapiente, mas a sua inoportuna farsa deitava-lhe os
  esforços por terra, pois ninguém lhe ligava nenhuma. A última vez que soube
  dele era candidato do PSD, responsável e tão preocupado com o próximo, como
  sempre,( ou seja nada)  a uma
qualquer junta de freguesia dos subúrbios
lisboetas.


O centro de apoio estava pejado de personagens e a nexistência de
trabalho e a camaradagem desenvolvida fez-nos todos ficar lá até ao fim do
projecto. Lembro-me das matronas que tinham uma capacidade de projectar uma aura
de eficiência que era hipnótica, particularmente se contássemos os passos dados,
geralmente o dobro dos necessários para percorrer determinada distância. Uma
delas, psicóloga de formação, era uma águia na leitura dos jogos de poder e das
relações, e de a quem devia sorrir, encontrei-a mais tarde numa formação para um
emprego de treta, numa fase menos boa que tive, e era ela a formadora
comportamental, numa matéria que é sempre a mesma e que eu já cuspo pelas
orelhas. Notei que algo havia mudado, pois cumprimentei-a com dois beijos e um
abraço mesmo em cima da mão que me estendeu, ao que no decurso da formação
  liguei o pc para ver o que se passava, foi admoestado, e durante a pausa para
  café escapuli-me para não mais voltar.


Outro o Ruben, tentou uns anos mais tarde meter-me num esquema
Ponzie, a teresa julgo que prosseguiu no teatro, o Filó na televisão e outros
tantos que se dispersaram.


Farto da merda dos call centers dediquei-me a outro emprego de
entrada fácil, a vigilância privada. Duas semanas de formação numa empresa cujo
  símbolo difere das demais, e sou colocado num cliente a fazer os turnos da
  noite, de onde saio meio embriagado de sono preparando-me para dormir quando os
  outros vão trabalhar. A empresa cliente recebia dinheiro do Estado para fazer
  coisas ecológicas que eram averbadas e destruídas de seguida 
para serem reutilizadas de novo para receber mais subsídios. 
Muitas vezes saia directo para as aulas às 8 da manhã, e o professor não
queria dar matéria enquanto não aparecessem os meus colegas que não gostavam de
se levantar tão cedo, e passava o tempo a falar sobre o então primeiro ministro
que havia feito a sua licenciatura nos conturbados meandros de quando se
saneavam professores em períodos
revolucionários.


Acabou este emprego por ter consequências desastrosas a nível
académico e não consegui ter aproveitamento e perdi o
ano.


Saí dessa empresa e passei o restante ano dedicando-me só à
  escola mas eis que surge a necessidade de pagar o passe social e outras coisas
  para poder estudar e vejo-me de novo numa empresa de vigilância, desta feita
  com nome de herbívoro. Dois dias de formação e sou colocado em Monsanto ao fim
  de semana 14 horas de pé, orientando trânsito e perdendo mais tempo que o
  normal para chegar por transportes públicos ao local, facto comunicado à chefia
  e pela chefia ignorado, pois o compadrio fazia com que certos privilegiados
  ficavam nos postos mais perto de Alcântara, e eu perdia 1 hora a pé e 2
  esperando na paragem por ser colocado no cu de Judas do
Parque.


Ao contestar o facto, sou desconsiderado pelo superior, ao que
lhe indico que deve fazer o próximo serviço, pois eu não o farei. Entrego a
  farda, e desejo boa sorte.


Por intermédio de amigo vou trabalhar para um part time em
  empresa que me paga muito bem por 4 horas, e faço lá um ano inteiro, ia
  inclusivé assinar contrato mais sério, quando num dia não contacto um cliente
  que ostensivamente me falta ao respeito e por azar de lhe retorquir, fez queixa
  à chefia de topo da empresa, que conhecia bem, e que lhe permitia entrar no
  incumprimento que me levou ao contacto, e desta forma fui
despedido.


Sou contratado para um emprego que me havia sido vendido como
trabalhando com computadores, e no primeiro dia descarrego um camião de vidro,
com uma lágrima no olho por pensar nas horas que havia passado 
a ler e a absorver alta cultura para um dia
  ensinar.


O empresário que me contratou não sabia fazer crescer a empresa e
por isso alugou parte do espaço o que permitiu continuar a ser o senhor
patrão.


Pagava balúrdios por reparações informáticas insignificantes, mas
era picuinhas em tudo o resto. Fui-me mantendo porque até nem se ganhava mal,
até ao dia em que decidiu embrirrar com o desgraçado do meu companheiro de
turno, acossado por todos os outros colegas, só por ser alguém de calma índole,
e que não respondia a provocações. 
Ao tratar mal o outro, lembrei-lhe calmamente que podia chamar a atenção
para o trabalho mas não rebaixar e insultar as pessoas a nível ordinário, ao que
ele se riu e praguejou, ora então o patrão não podia falar como quisesse com o
empregado na sua fábrica, e a coisa escalou a partir dali, acabando com ele a
insultar as minhas costas no momento em que lhas presenteei para me ir embora. A
intenção dele era levar o outro a despedir-se mas eu antecipei-me até porque já
estava farto do emprego onde por forretice, a máquina principal estava mal
construída e quase todas as semanas parava obrigando a que os empregados
desempenhassem funções perigosas e se desunhassem para a colocar de novo a
trabalhar. Eu havia-lo feito duas vezes quando era melhor deixá-la parada. Se o
patrão não queria saber não era eu que me ia ralar, e os meus colegas, que se
continuassem a divertir a conspirar uns contra os
outros.


Voltei lá uma semana depois com umas cervejas para me despedir e
deixei abraços a toda a gente.


Voltei a um call center, voltei a sair, entrei para um emprego
onde iam aproveitar as minhas competências informáticas, e a melhor forma que
encontraram para isso foi numa garagem fechado a confirmar e anotar números de
série de terminais portáteis de
pagamento.


Saído de lá voltei a trabalhar num call center desta feita para
outra empresa de comunicações que já me havia despedido, e que me fez abrir
recibos verdes. Trabalhei lá um mês, a rotina e a pressão não me davam
  capacidade criadora, pelo contrário.


Decido tirar outro curso, nem sei bem para quê, e volto para a
vigilância de onde ainda não saí porque só a faço ao fim de
semana.


 
 
 
 
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E depois do adeus - prenda ao 25 de Abril

4/24/2013

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                Ninguém o previra. Finalmente nos milhares de aldeias em Choraquelogobebes’, alguém havia apagado a luz.

Quando soou o meu rádio às sete da matina, como sempre, não escutei a música de elevar o mood rotineira que a rádio generalista que ouço, passa.

Em vez disso, pareceu-me ouvir um comunicado sério, pelo tom da voz e intercalados de silêncio dos amigos amigáveis, locutores e outros modelos de voz que também são humoristas.

Mais uma história de corrupção, pensei eu, agora quase todos os dias havia uma nova, quanto mais ingovernável se tornava o país. Várias vezes pensei que a coisa era tão bem feita que os jornalistas nunca descobriam em tempo útil as maroscas, por mais amplitude que tivessem, e por algum acaso do destino, os escândalos coincidiam sempre numa espécie de transe de ping pong, ora agora se descobre uma do partido A, ora se descobre uma do partido A alínea.

Essas histórias exaltam-me, embora eu já devesse estar preparado para elas. Levanto-me a contragosto chocando com o armário, solto um palavrão. Aproveitei a erecção que sempre me saúda de manhã e masturbo-me no chuveiro ao som de água quente, redobrando a concentração pois o termoacumulador só me permite um banho de 6 minutos de água quente.

Comi o meu pacote de bolachas espanholas transgénicas espanholas baratas que vêm sempre todas partidas dentro do pacote, bebi o meu leite de soja transgénica biológica produzida numa fábrica qualquer alemã, e fui trabalhar.

Os supermercados abrem cedo e eu tenho de começar às nove da manhã a satisfazer clientes que gostam de fazer as compras cedo.

Assim que meti a chave no meu corsa de 89 a gasóleo e ferrugem, percebi que algo não estava bem. As ruas estavam desertas e àquela hora não era normal. A urbanização onde arrendei um T0 fica perto de uma das entradas de um dos muitos IC’s onde milhares de pessoas perdem todos os dias horas de vida.

Como metástases de alcatrão, as turbinas dos subúrbios comprimem em feixes de vermelho stop e branco médio os sonolentos proletários para dentro fora e em redor da metrópole.

Hoje não.

Onde se tinham metido todos? Seria feriado? Seria fim-de-semana? Trabalhar por turnos por vezes desorienta-me. Seria dia de jogo de derby ou selecção? Tolice, não há jogos de bola a esta hora.

 Comecei a tentar lembrar-me do comunicado da rádio a que não tinha prestado atenção, talvez tivesse algo a ver com isso. Os amigos amigáveis da rádio que conseguem ficar horas a falar de assuntos assexuados e imbecilizantes, nunca ficam sérios a não ser quando morre alguma pessoa importante, diferente das outras, do mundo da música, ou do cinema. Parei numa bomba de gasolina, também ela vazia, para meter gasóleo e perceber o que se estava a passar. Fiquei à entrada com o motor no ralentim, olhando tudo vazio, sem os habituais clientes em fila indiana como aquelas que antes da queda do Muro víamos para o pão.

Fiquei mais calmo quando observei aqui e além a passagem de um camião ou carrinha comercial tresmalhada, mas assustadoramente longe da quantidade habitual, ia chegar cedo demais ao trabalho.

Um pudor de passar por parvo me impediu de sair do carro e ir ao guichet perguntar o que se passava. Lembrei-me como quem se lembra de tocar na cabeça procurando os óculos que lá estão, que tinha rádio no carro. Saquei-lhe o rosto de dentro do porta-luvas e copulei-o ligando-o de imediato.

Azar o meu eram oito e meia e não dariam notícias a esta hora a não ser que fosse mesmo muito grave. Todas as rádios transmitiam o mesmo. Repetições de um comunicado numa voz que reconheci ser a voz do ‘nosso primeiro’ ou a de vários ruminadores criativos, que são aquelas personagens que na rádio, TV ou jornais comentam tudo, ruminam os assuntos apresentam fábulas elaboradas a partir dos assuntos ensinando-nos a nós ouvintes, leitores e espectadores o que devemos ver, ler e pensar.

Portugal saíra da União Europeia e de uma assentada mudara de moeda, de novo para o escudo. Não podia crer. Aquilo que eu tanto desejara e discutira defendendo em cafés e redes sociais, havia acontecido.

II

                Foda-se.

Não conseguia deixar de ficar apreensivo.

Instalou-se uma angústia na garganta, não conseguia engolir ou respirar como deve de ser. Pensei nas minhas certezas anteriores e na minha angústia presente, afinal parece que as minhas certezas eram de ressaca, ou então agora começava a temer pelo futuro fora do quente das asas da mãe galinha Europa.

Foda-se e agora? Que se vai passar agora?

Aquele cabrão fez o que havia dito, e isso é algo que não é costume vermos num político.

O ‘nosso primeiro’ havia saído de um dos pardieiros da capital, havia começado com um blogue que se tornou referência nas críticas ao rotativismo indecente da nossa partidocracia que continua a tradição de ambas as faces da opressão secular neste jardim à beira-mar plantado, a nobreza e clero, e a burguesia, que sempre conduzem a sua valsa conjunta ao som de palmas dos pobres diabos que lhes dão invejosamente lugar de destaque. Este gajo conseguira conjugar a esquerda nacional, apenas enfrentando as naturais resistências a Norte do Mondego, mas depois dos motins de Matosinhos, bastou falar em fim de fome e tropa na rua e começou a ser visto com outros olhos.

As memórias setentrionais tradicionalistas foram trucidadas pelos 300 000 mortos daquilo que ficou conhecido como os ‘Motins de Matosinhos’. Isto abriu finalmente os minifundiários a um discurso revolucionário até porque a terra já não valia nada debaixo do peso dos eucaliptos secos. Agora podiam dar-se ao luxo de ser revolucionários, e não houve família a quem não morresse alguém nesse pesadelo.

A fuga repentina do interior para a área metropolitana a Norte do Porto, de milhares de pessoas que fugiam à fome de duas semanas de supermercados vazios, por causa da falta de dinheiro para pagar a fornecedores, conjugada com uma greve franco espanhola de camionistas, e de estivadores, fez com que o caos surgisse. Saque em supermercados, conflitos generalizados, a situação tornou-se insustentável, mas foi só com as rapinas destruidoras das grandes superfícies do capital que o governo decidiu agir colocando a tropa na rua, defendendo a propriedade de uns contra a fome e raiva de outros. O mexilhão é sempre a parte da corda que parte e esta trágica odisseia só termina com milhares mortos nos confrontos com as forças de segurança, e no fatídico mês de Maio, as vagas migratórias de esfomeados param junto ao mar afamado da costa entre Viana e Porto, conhecida pelo peixe que já havia sido todo eliminado pelo arrasto, mas os pobres moribundos ainda tinham a esperança de não deixar os filhos morrer à fome com o recurso natural que pensavam ainda existir.

O mar sem peixe, a terra sem combustível e sem hortofrutícolas, atapetaram-se as estradas com esquálidos cadáveres, e as casas com barricadas e tábuas nas portas e janelas e os proprietários com caçadeiras na mão defendendo a sua propriedade dos desesperados deambulantes. Mobilizaram-se algumas tendas de campanha, a que chamaram hospitais, a ONU lançou alguns aviões para distribuir comida fora do prazo de qualidade, mas era tarde demais. A própria Europa estava a fervilhar com a aliança franco espanhola contra os ‘teutões’ e a Inglaterra avaliando a aliança que teria de fazer para menorizar o poder dos dois blocos que se estavam a formar. A Comissão Europeia limitou-se a manifestar um voto de pesar e a sugerir que era o resultado de demasiada intervenção do Estado, que se fosse o mercado a regular a 110 por cento a economia, não teriam morrido 300.000 pessoas.

A resposta titubeante do governo em exercício, culpou-o com imagens de fundo de corpos em decomposição e gaivotas sobre eles, velhos, crianças e mulheres.

Assim que ouvi o agora ‘nosso primeiro’ detestei-o por causa do discurso demagogo. Eu que sempre havia votado numa esquerda responsável, odiava-lo mais que á direita.

Pareceu-me dizer o que queríamos ouvir. Que o povo estava primeiro, que o governo tinha de ser patriótico, que assumir responsabilidades era mais que pagar contas e que cada um era responsável pela situação a que se chegou. Os proprietários e os conservadores ridicularizaram-no e as estações televisivas apresentavam sondagens em que ele nem aparecia. Ele lá ganhou, talvez ninguém achasse que o voto-castigo o elegesse mas pelos vistos muita gente pensou o mesmo.

Nem os discursos do pós-operatório das direitas e esquerdas ‘responsáveis e serenas’ com fatos sedosos e alianças bem visíveis nas mãos sobre os braços um no outro apoiados em poses de empresário, ameaçando com futuros sombrios, cenários de apocalipse, mas tudo isso foi  ofuscado pela súbita e enérgica intervenção da União Europeia, que enviou não só fundos para financiar a campanha conservadora, como recados e ameaças de ‘repercussões’ a qualquer ameaça à desintegração do monstro em que se tornou. O ‘nosso primeiro’ na altura respondeu que ‘Se a União Europeia não conseguia ajudar a salvar 300.000 esfomeados não se devia preocupar com um mercado de 500 milhões.’ Houve um comissário qualquer que sugeriu a possibilidade de uma intervenção militar, mas depois mudou à voz do seu dono que não o povo, e começou-se a falar de decisões serenas e responsáveis, de maturidade democrática que é outro nome para a mesmíssima coisa de sempre, e outras expressões de veludo que percorriam os media como canto de sereia para uma classe média de sofá.

O azar é que já não havia classe média. A classe média restante era apenas constituída por meia dúzia de lambe cus que sustentava e zelava pelo status quo dos mais ricos senhores dos aparelhos. Os pater família despromovidos a terem de chorar todas as noites em surdina por não saberem como alimentar os filhos no dia seguinte, subitamente tornaram-se revolucionários. O burguês só se mexe quando a mosca chateia, e assim tivemos pela primeira vez um radical de esquerda no governo, e com maioria no parlamento.

Lembrei-me do que ele prometia e achei-o maluco. Achei na altura que teríamos a reedição sinistra de um novo Estado Novo, e que Portugal nunca sairia da cepa torta.

O cabrão fez o que prometeu e não estamos habituados a isso. Porra.

III

                O que se vai passar agora?

Sair da União Europeia não é solução para nada, se deixarmos os mesmos filhos da puta à solta.

Sorri. A História confortou-me na sua previsibilidade e repetição com um confortável abraço, bastava olhar para trás e perceber que sempre que se dá um passo decidido em frente neste país, lenta, inexoravelmente, metodicamente, os dedinhos empurram a planta do pé para o local de partida, com uma resistência apenas formal do inane calcanhar.

Esperteza saloia, pensei eu, esta do ‘nosso primeiro’. Um bluff aos teutões.

Fui trabalhar, pois é essa a minha função como português, a única função do português na vida.

A minha participação democrática é uma combinação de voto sazonal e período de ‘justus esperniandis’ enquanto acato consecutivamente o que a maioria, outros, decidiu por mim.

Parado no estacionamento do meu local de trabalho a que então cheguei, penso nessa maioria.

É essa maioria mais esclarecida, formada, ponderada, que eu? Modéstia à parte, não.

Passam-me pela mão suas escolhas, pelos olhos e ouvidos, suas caras reacções e conversas, e decididamente, não.

Penso na democracia definindo-se como o acto de esmagamento daqueles que se interessam por uma maioria de acéfalos. Dois mil e tal anos depois de Péricles, e eis como temos a nossa democracia, os cegos conduzindo os zarolhos.

Pelo que tenho visto, a maioria, os eleitores, são crianças que se apresentam ao toque do recreio junto das urnas de mãos dadas como numa excursão à Capela dos Ossos, uma missa domingueira em que se desfilam os melhores fatos republicanos, e onde se vota por tradição ou convicção clubística.

Para o caralho que os foda.

São a raiz do mal desta merda toda. Era isso que dizia o nosso novo Estaline, que a culpa, esse sentimento tão católico, não se limita ao pagamento da indulgência do crédito excessivo.

Há que fazer a contrição interior que é a única ferramenta de mudar as mentalidades presentes.

Em frente ao meu cacifo olho para o mini espelho tenho a barba com um dia a mais e o rosto com anos a mais em contractos de mês a mês. Espero que não me tirem da caixa e espetem no armazém. Relembro as curvas do rabo da Manuela  da limpeza que passou agora à minha frente, que é um rabo que me ajuda no chuveiro, nada especial, apenas o glorifico aqui porque aqui nada há de especial e sem um pouco de auto-emoção  o meu dia seria uma merda pior que aquela que já é.

O rabo da Nela, tem a forma de uma taça Dragendorff, rabo bojudo e maciço ligeiramente achatado nas extremidades.

O suor disfarçado de água-de-colónia da minha camisa relembra-me que estou pronto para atender o público, inspiro profundamente, ato o último atacador, e vou para a caixa.

Nem me havia lembrado perdido nas minhas cogitações que a moeda mudara.

Foi toda a gente apanhada de surpresa. O Banco de Portugal há dois meses que andava a imprimir moeda noite e dia, e hoje foi o dia. Duvido apanhar alguma nova nota de escudos, ou moedas, mas quem sabe, eu não percebo nada disto. Antes e num genial alcance de visão, os conservadores tentaram vender todo o ouro que o Salazar amealhara, incluindo o dos judeus incinerados. A intenção era impossibilitar uma futura escolha pela moeda própria, e esteve quase o ouro para ser vendido, mas uma decisão do Tribunal Constitucional protelou o processo tempo suficiente para ficar sem efeito, e deixar irritados os compradores.

Ambas as moedas vão coexistir durante dois anos, e são proibidos pagamentos e levantamentos de euros ou coisa que valha, não ouvi bem na rádio.

Os valores dos depósitos (para os poucos que ainda têm conta no banco) sofrem já a conversão, e prevejo desde já que isto vai dar raia.

Da grossa. As pessoas nem sabem fazer contas aos trocos numa caixa de supermercado quanto mais calcular a taxa de conversão. Pela primeira vez, dou comigo a pensar que o ‘nosso primeiro’ é um gajo com tomates, tolo, mas com tomates, por se meter numa argolada destas.
Dou comigo a constatar que estou com pensamentos de 'serenidade democrática'...eu que nunca fui de classe 'média'.
Coço o antebraço quando me lembro dos exemplos arquétipos da esquerda, sempre convencidos da sua superioridade moral perante os outros, que por acharem que ao defender o 'pobrezinho' são moralmente de estirpe melhorada. Fui sempre mais pobre que todos os que conheci, e sempre me afastei de quem falava em sacrifícios sem nunca os ter conhecido.
Finalmente a esquerda, a esquerda, vai ter o poder. Vão poder, vão poder.
Não posso deixar de dizer que simpatizo com eles, não por superficial adesão ideológica apenas, mas tmbém por os ver constantemente vilipendiados, ostracizados, acossados.
Pela comunicação social, pelos transeuntes de café, ridicularizando os exemplos do passado, as experiências falhadas, uma suposta natureza humana e verdades feitas da economia.
A esquerda revolucionária como as migalhas de um pão repartido em dois e levado à boca quase até à náusea, apresentada raramente e como descargo de consciência para classificar os programas de 'abrangentes' mais que para levar a sério a mensagem difundida.
Os dirigentes diga-se de passagem, como quixotes de circunstância, tentavam remar contra a maré, debalde, a propaganda estava tão mergulhada no subconsciente social como raízes de eucalipto cancerígeno.
A comunicação social portuguesa sempre serviu os interesses dos seus promotores, sempre apresentou a realidade mais promovida por um discurso oficial, sempre apresentou um arco governativo dual como uma esfera de política responsável, com o trabalho dos pivôs a incidir na futebolística obstrução de argumentos, interrupções extemporâneas, foras de jogo ou substituições arbitrárias. Sempre tive pena dessa minoria política, que sustenta e quer mudar o mundo nem que seja à força de ideias montadas em cavalos de papel, e não apenas morar nele comendo as lentilhas que te levam á boca.
Apesar das várias traições e dos fanatismos. Partido é partido e partido é cancro. Já havia perdido a esperança. Não a ganhei, mas agora estou curioso.

A primeira cliente do dia leva duas latas de atum e um pacote de massa. Foda-se, quinhentos euros, salário mínimo nacional.
Foda-se.
Ainda me lembro do café a quarenta escudos. Com o Euro, que Guterres, sempre ele, Portugal iria permanecer no grupo dos países com peso decisor do eurogrupo. Com o euro o café a cerveja os bolos e outras coisas menos visíveis passaram para o dobro, não por uma pérfida reacção de valorização monetária mas porque provincianamente, os vendedores descobriram que quarenta escudos soam a quarenta cêntimos e vai de obter lucro fácil através do aumento para o dobro. Facilitava as contas a quem não estava habituado a conversões.
Será que alguma vez nos vamos perdoar?
Fomos gananciosos e filhos da puta uns para os outros, nesta grande família que é este pequeno país.
Sempre passaram o português e a sua cultura como o andrajo da Europa, especialmente a partir de 1986, e pensei que fosse vergonha dos trajes e indigência do orgulhosamente sós. Hoje vejo que mais não foi que parte de uma campanha inteligente de vender a Europa como remédio único, a par do 'Festival Eurovisão da Canção'  e dos 'Jogos sem Fronteiras'. E Europa como ideia tão boa sempre teve de ser vendida, e legitimada sem sufrágio, como reles dogma que se evidencia por si sem necessidade de discutir alternativas. O que se passou na Irlanda foi vergonhoso caralho. Os burocratas de Bruxelas a patrocinar directamente pelos seus cabrais ruas cobertas de propaganda pró fascista europeia.
Cá no burgo? Foi toda a gente a meter ao bolso, ah ouro da Germânia que sabes melhor que o da Mina.
Ah Camenbert que sabes melhor que pimenta, ah coffe mugs de New York que sois mais cosmopolitas e prestigiados que as cerâmicas chinesas importadas.
Ainda há quem diga que a estória não se repete.
Que estavam à espera?
Em qualquer civilização na História, quem tenha olhinhos para ver, lê que a seguir ao período de maior esplendor económico, vem o declínio, como a seguir a cada orgasmo se segue um torpor narcoléptico...a sociedade corrompe-se na metade final da sua expansão. Mijem dinheiro para dentro de qualquer país e é uma questão de tempo pouco, para que se desintegre. Isto é tão falado na alta cultura da Europa que até enjoa de tão óbvio.
O velho projecto hegemónico cheira o rabo a Carlos Magno, uma europa de quinhentos milhões de consumidores para ombrear com o resto do mundo que adoptou e melhorou o velho modelo industrial europeu com nuances de maior sacrifício não remunerado.
Os liberais tecnocratas defendem a privatização de tudo e o esforço abstracto aos assalariados como resposta à recessão, mas nenhum emigra para a China para viver de acordo com a sua lógica do mais forte. Com as condições laborais chinesas tornar-se-iam revolucionários. Filhos da puta.
Lembro-me do  Guterres, e das crianças que morreram afogadas nas valas negligentes dos imigrantes que construíam a Ponte Vasco da Gama. Lembro-me das parábolas do bom aluno e do petróleo verde do Cavaco e cavaquistas, e olho para esta mulher que hoje como outras noutros dias que se seguem, vai comer com o marido e a filha, massa esparguete com atum.
Lembro-me do Marcelo Rebelo de Sousa dizer que tínhamos de 'acarinhar' os imigrantes pois iriam ser eles a pagar as nossas reformas e contas...Ouvi Guterres a dizer que imigração torna a nossa economia competitiva, viu-se, os patos bravos da construção civil arrasaram com milhares de famílias para pagarem tuta-e-meia a imigrantes que alojavam em contentores e pré fabricados longe dos olhares das inspecções de trabalho, tudo em nome de um lucro travestido de competitividade. Receber os imigrantes em Portugal sim, mas não para serem burros de carga para empresários cuja única profissão conhecida é de serem empresários e gerir nos espaços da lei com a chico espertisse rotineira o abre e fecha de empresas que ciclicamente se deslocalizam e espetam com desempregados na rua.
Será que algum dia vamos perdoar uns aos outros?

Esta cliente que acaba de sair com a massa e o atum debaixo dos braços, porque o meu patrão desejou aumentar os lucros e taxou os sacos de plástico, defendendo que era por motivos ecológicos, esta cliente era psicóloga num departamento qualquer de recursos humanos de uma qualquer empresa de serviços. Ajustava o pessoal e imprimia os powerpointes com desenhos e frases sonantes de motivação para cada colaborador dar o melhor de si e seduzir o sujeito para um amor de performance. Fazia-se tratar por doutora embora sendo apenas licenciada.
Era daquelas que defendia o patrão de forma intransigente mesmo quando ele mudava de carro de luxo de 6 em 6 meses e mantinha salários em atraso, ou sempre que ele se pavoneava com olhar ameaçador grave e sério pelas secções da 'empresa' à procura de um bode expiatório para despedir pela sua inépcia de gestão, ou quando em briefings insultava impunemente as pessoas só porque achava que não davam o máximo seguindo o seu próprio exemplo de que dava tudo pela empresa especialmente quando estava em casa da amante.
Ela era paga para pôr-se no lugar do patrão e como estulto capataz, florear o chicote do despedimento e manter um pesado e sério ambiente de trabalho pois os preguiçosos trabalhadores rendem mais estando com medo que felizes com o que fazem.
Ela não era uma qualquer, tinha feito um mba e trabalhado em empresas de renome, e conseguia passar duas horas a falar português com uma plateia só utilizando inglês pseudo-técnico.
Dava aulas de coaching por fora e tinha um site sobre sucesso pessoal e sobre o seu método infalível para o obter.
Nas conversas de esplanada estival com antigos colegas de secundário, desprezava tudo o que não estivesse relacionado com a 'sua' área e amava ouvir imbecis como ela trauteando o evangelho empresarial da gestão e da fiscalidade em assuntos que outrora faziam a mais morta árvore morrer de tédio mas que hoje parecem os mais solenes assuntos pintados com tons de ciência de ofiúcos lípidos. Os outros que não participavam na sua psicose eram apenas considerados de lunáticos tolinhos e foi assim que casou com o mais boçal financeiro que o ISEG já formou, um gajo que terminava cada sessão da bolsa de valores com um 'ámen'.
Habituados a reduzir o mundo à sua fracção de realidade tiveram amor à primeira vista, ela embevecida pelo bem que ele lhe ficava na ponta do braço, e ele pelas curvas generosas e pela relativa ausência de antecedentes copulatórios dela, que faziam dela a noiva ideal para mostrar a pais e amigos.
Ela apaixonada pela sua ideia de sucesso e progressão na vida, ele pela sua ascensão e por ter sido certo dia chamado a comentar as previsões económicas para o trimestre numa tv privada, pareciam um casal perfeito fadado a servir de exemplo a tantos outros.
O casamento como o relógio vistoso e a aliança larga trazia uma seriedade e honorabilidade que lhes dava sentido à vida por detrás dos fatos austeros e sorrisos enigmáticos omnipresentes.
Todos os outros, o mexilhão, era vítima da sua inabilidade ou até inferioridade genética em tomar o que de melhor a vida dava, e que se assim o vivia era porque queria.

Eu sei disto porque moramos na mesma rua.
Vi-a sair muita vez no seu Audi comprado a 84 prestações, e o seu marido, quando vinham da República Dominicana todos os Verões com um bronze medonho e fotos para colocar no linkedin e facebook, ao lado das fotos de praias distantes e da lua de mel em Nova Iorque depois de terem saído da Universidade. Falei com ela várias vezes nas reuniões da junta de Freguesia e pouco se aproveitava do que dizia, além de uma cassete engolida e papagueada  em gritinhos estridentes visíveis para os seus correligionários que com ela estavam na base do seu partido do arco governativo. A sua melhor qualidade era uma ambição a toda a prova movida como qualquer ambição, para completar uma fantasia construída em torno do seu ego, afinal única bússola que indicia o valor da sua existência. Traçar objectivos e atingi-los, e era esta ambição unifocal que a fazia progredir mesmo sendo uma completa ignorante em tudo aquilo que saía fora da sua área profissional.

Para ela, a profissão, o marido, ser presidente de junta, ser alguém no aparelho, eram etapas de uma ascese existencial, de uma progressão fantasiosa que se escolheu como vida e via, e que à mesma serve para dar um sentido de evolução e significado.
Confesso que cheguei a pensar que este tipo de mulheres era o ideal na cama pois a sua ânsia de eficácia as faria dar o melhor mas quero lá eu uma neurótica do sucesso a usar-me como degrau para o seu ego. Seria esta a raça de Ubermensh do futuro?
Ria-se com um canto da boca de esgar escarninho quando eu lhe falava de ideologias e aspirações humanas, e assim com tudo que não implicasse betão asfalto e consumo, como se eu fosse filho de um deus menor.
Ganhou um mandato, e depois outro, no segundo renegou demagogicamente benefícios relativos à sua classe e por se ter incompatibilizado com um superior partidário, ficou de fora das listas no mandato seguinte, pelo que terminou a carreira política. Tentou piscar o olho ao partido da oposição, mas nem ela era incontornável em termos de ambição pois os 'outros' tinham gente igualmente ambiciosa, e havia criado rudemente muitos anticorpos com o aparelho inverso.
Não parecia a mesma dos cartazes retocados a photoshop e com fatos espartanos e braços cruzados sobre os seios demonstrando uma posição de guarda expectante pronta para a acção, para arregaçar as mangas e meter a sua energia ao serviço do eleitor espectador.
Oito anos em que a população escolheu os tipos serenos, maduros e responsáveis, democraticamente. Oito anos em que ponderadas e profundas deliberações os populares escolheram os seus representantes, e eu, como minoria tenho de acatar a vontade da tal maioria mais esclarecida que eu. Oh mel amargo da democracia, a quanto obrigas. Se fosse revolucionária, a democracia seria proibida.
O urbanismo do nosso concelho  tira-nos anos de vida. O presidente de câmara tornou a coisa pública numa reunião familiar nas altas cúpulas camarárias, enriqueceu à custa do loteamento, reformou-se e é um dos que agora se dedica ao futebol e ao conservadorismo para manter o que tem. Aos filhos basta não ser completos imbecis para terem sempre condições de manter a sua propriedade herdada e logo transferirem de geração em geração vantagens que os meus descendentes (se alguma vez existirem) nunca conhecerão, porque os seus antepassados serão narrados no futuro, como moiros de trabalho que com esforço amealharam tanta riqueza, um modelo para os servos do futuro sem dúvida.
Ela, a psicóloga do atum, ganhava na junta três vezes mais que no seu emprego, e estaria reformada neste momento se não tivesse esperado o ovo na cloaca da galinha. O nosso primeiro também cortou esses privilégios pela raiz, e houve até um autarca (que ficou conhecido por dar presuntos aos eleitores para votarem nele) que partiu ambas as pernas ao mandar-se de uma ponte como forma de protesto, não contou com a areia que lá não estava por ter sido retirada ilegalmente por areeiros na noite anterior.
O nosso primeiro cancelou todas as reformas e subsídios a funcionários políticos do poder local, bem como subvenções a partidos e convocou referendo para ilegalizar a existência de partidos políticos.
Mandou formar também uma comissão de inquérito com advogados acabados de sair com as melhores notas das faculdades de direito, economia, história e que juntamente com uma renovada Polícia Judiciária, analisaram milhares de casos de enriquecimento desde 1974. Dizem os demógrafos, que nesse ano Portugal bateu todos os números dos registos históricos no que concerne à emigração, facto que o nosso primeiro esperava pois qualquer caso analisado implicava imediatamente congelamento dos bens bancários, sob sigilo absoluto o que evitou que fugissem capitais do reino.
O meu próprio patrão cujo império ajudou a empurrar para fora do negócio milhares de pequenos supermercados locais foi um dos fugitivos, mas esse pouco perdeu porque já só pagava impostos no estrangeiro...mas até nisso o novo primeiro-ministro foi cáustico pois indo contra legislação europeia taxou duplamente as empresas com sede fiscal fora do espaço nacional, com especial incidência nas originárias de Portugal ou sede domiciliária no país. As que não pagavam viam ser nacionalizados os centros comerciais e plataformas logísticas que formaram cooperativas de consumos que a início não funcionaram bem. O meu patrão promove os produtos nacionais vendendo-os abaixo do preço de custo e pagava o ordenado mínimo a jovens formados para trabalharem como repositores e caixas nos hipermercados... e pagava porque o Estado obrigava. Isto enquanto dava entrevistas-sermões na televisão com ar austero e sério, sempre mostrando a larga aliança e o relógio conservador sob vestes espartanas vestidas para o efeito, e assim servindo de placebo de herói para muita gente que o aclamava como o 'Messias' enquanto domiciliava lucros em terra de infiéis e conduzia à miséria milhares de produtores enquanto cuspia para o ecrã exortações a valorizar o regresso à terra e à produção nacional.
Meu messias seria se me pagasse um pouco melhor, mas não me posso queixar que tenho emprego, aliás nem nada faço com medo de o perder e à vida de merda que tenho e não sei que tenho.
 Já estive na gerência mas foi por pouco tempo. Redução de pessoal e voltei para as caixas. Como se quisesses subir umas escadas para tomar Baçaim e te puxassem para baixo por uma perna...

Pior está o marido dela...a que comprou esparguete e atum...desempregado, tinha uma série de stands que faliram e uma imobiliária também, onde vendia a outros o superinflacionado objecto 'casa' que subsume o pagamento da vida que supostamente é uma dádiva.
Chegou a aventurar-se na construção, no tempo dos negócios gordos, mas o azar com um cheque que bateu na trave a noventa dias arredou-o do negócio que na altura era melhor que ouro de tesouro.
Carros falência casa falência e apenas patois pois que não sabe fazer mais nada a não ser ter a mania que não perdeu, nem quando me veio mendigar um litro de leite a semana passada.
Apenas sabia fazer circular dinheiro e frequentar a 24 de Julho para o cimbalino nocturno, expondo a mulher e expondo-se às mulheres dos outros. Agora passa os dias no café onde falo muitas vezes com ele, e a sua cara esquálida continua a vomitar chavões neo liberais e acéfalos mas desta vez já não com tanta certeza nos olhos mas uma certa mágoa no olhar.
Vejo agora que o 'nosso problema' não era com a Europa mas connosco. Temos sido tão cabrões uns para os outros, temos tratado tão mal o nosso país...através de políticos que tomam a política partidária nacional como o trampolim para carreiras europeístas cagando nos seus livres eleitores que desconhecem por completo a civilidade e sofisticação de uma Europa a Norte do Sena.
Trampolim para a nave dos loucos que é o parlamento europeu e que as gerações vindouras discorrerão em rios de tinta como se demorou tanto tempo a perceber o carácter fascista de uma união europeia que nada tem de união. Só nós temos a culpa.

Será que alguma vez nos vamos perdoar?

Temos comido merda e não fazemos parar a refeição, antes pedimos mais pimenta e um copo de água.

O relógio bateu nas 12. Nunca tive um dia com apenas um cliente a passar pela caixa. O gerente veio ter comigo e disse-me para ir para casa. Não me dá o dia mas que o tempo vai para o banco de horas. Não me interessa, chego a casa cansado de nada ter feito, deito-me a pensar e adormeço. Acordo com um telefonema do meu pai, com a lenga lenga do costume, que quer um neto e que tenho de assentar. Não vale a pena explicar-lhe que não ganho o suficiente e que não posso ter um filho, e não, não é para manter um estilo de vida. Enquanto imagino distopicamente como será um mundo em que a maior parte não pode ter filhos, e o que valerá a vida individual perante isso, oiço o meu pai chorar-se por ser tratado no lar como uma criança com muletas. Ele e a minha mãe diversas vezes me limparam o cu sob as fraldas e me ampararam em pesadelos nocturnos e febres estivais de encontro ao posto de saúde, ao que parece a vida hodierna não me permite retribuir a cortesia e assim se canaliza a pensão que o velho tem para os bolsos dos empresários geriátricos que despacham expediente numa moradia salobra em bairro de génese ilegal. Como milhares de outros velhos, descartados nas gavetas esquecidas esperando que a morte no seu rosto pouse o beijo de atenção que os do seu próprio sangue lhes sonegam. O trabalho ao que parece tornou-se mais frenético e mais importante que os ancestrais laços entre as gerações. Foda-se que ter um velho em casa entre a playstation e a bimby não é cool. Nem o cônjuge verá com bons olhos e pode mesmo comprometer o casamento de fachada que se celebrou em bodas mecanizadas pelas moradias engalanadas por bairros de génese ilegal e manchas de pinheiros e eucaliptos onde fica bem tirar umas fotos para mais tarde recordar.

Queixa-se que a sopa sabe a merda, arrepende-se, pede-me desculpa pelos lamentos, e termina soluçando que se pode morrer de tristeza.

Ligo a TV após desligar o telemóvel, e como milhões de outros portugueses contribuo para o meu esclarecimento político através de comentários de comentadores.

Parece que houve desenvolvimentos. A EU ameaçou com uma intervenção armada, mas a saída repentina da Itália e da Espanha foi proposta à Comissão Europeia, pelos ministros dos Negócios Estrangeiros de ambos os países, o que relativizou como é costume a importância de Portugal. Nem quando tentamos falar grosso a voz parece sair no tom certo. Talvez seja a nossa sina sortuda.

O limes entre católicos e protestantes entre bárbaros e civilizados sempre variou no lado da fronteira mas a mesma sempre se manteve em colunas de eterno. De entre as várias reacções negativas, um pouco por todo o mundo, Portugal recebeu elogios de algumas áreas políticas dentro da própria ‘União’, curiosamente da Escandinávia, de onde chegam ecos de apreço pela atitude corajosa de um pequeno país querer sair da ‘União’ para a qual entrou sem sufrágio e da qual sai sem enquadramento, pois nunca se quis colocar a hipótese de algum país a bater com a porta, tal não foi a arrogância intencional destes democratas. Estes filhos da puta forçaram com pão-de-ló de amizade e solidariedade, uma ‘união’ dos povos da Europa, que lenta, gradualmente e calculadamente tornaram um Estado fascista encapotado, onde 70% das leis dos países são imposições de milhares de funcionários anónimos não eleitos democraticamente. Os palhaços, nós, enquanto houve dinheiro para bigs brothers, mundiais de futebol, lcds, copos de plástico para os cafés e outras tantas merdas de consumo e despesismo ambiental, até ajudámos à festa, e nem nos ralámos quando com festas pelo lombo nos alaram a canga. Agora estrebuchamos e esperneamos, mas só existe um sentido de marcha ao apelo do chicote.

Será que algum dia nos vamos perdoar?

Todos os dias saem escândalos de corrupção, hoje descobriu-se a negociação secreta entre o Estado português sobre os seus direitos petrolíferos na zona contígua da orla costeira, para as reservas de petróleo offshore que foram descobertas, e para as quais o erário público sonegará dez cêntimos por barril, ficando o remanescente com a multinacional, promotora do evento. A referida empresa acaba de contratar o nosso ex primeiro-ministro para seu chairman ibérico, sem dúvida em recompensa pela sua competência.

Caralho. Já só meto os cornos debaixo dos lençóis e espero o temporal passar.

Descobrir petróleo era o pior que podia acontecer em Portugal para Portugal.

Corrompidos e corruptos desde a fundação, desde a medula, vamos mantendo as mesmas classes, que se autoperpetuam, verdadeiro caso de estudo de como gerações desenvolvem a capacidade de manter um sistema de desigualdade social e manter-se ao rumo do mesmo, em choraquelogobebes. Nunca fui comunista mas que hoje me parece que eles sempre tiveram razão, nunca me pareceu tão claro.

Eu já só espero que me chamem a votar, novamente nos dois partidos do arco governativo.

Quedo-me com sono e lamento o pesadelo que teima não terminar, eu só queria voltar à vida que tinha, telemóveis que avariam pouco tempo depois do fim da garantia, comida modificada geneticamente para aumentar lucros e sem valor nutritivo, televisão imbecilizante, um mundo de cabrões e cabras mútuas.

Fecho lentamente os olhos e pergunto-me se algum dia nos vamos perdoar uns aos outros.


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António Sérgio, 'Breve interpretação da História de Portugal', Livraria Sá da Costa

4/23/2013

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Aguarela à chuva

9/16/2012

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Nesta página radiante e plena de energia positiva, bem sei que venho mijar na parada.

Bem sei que vens aqui rever e matar saudades de pessoas, mas acima de tudo de um tempo em que eras mais jovem e o mundo te entrava com mais impacto pelo corpo dentro.

É natural que lembres com nostalgia esse tempo em que tudo parecia tão intenso e onde o teu corpo de jovem homem ou de promissora Afrodite te enchiam o peito de orgulho e confiança ilimitada no futuro.

Bem sei que és feliz agora, e ainda bem, mas também sabemos que não podes deixar de sentir um pouco de desejo de olhar para trás.

Bem sei que amaste aqueles tempos em que o coração batia mais depressa, os professores eram jovens como tu és hoje,. quando víamos todos os dias o grande e excelente ser humano Abel, e tínhamos uma adolescência com alguma inocência como hoje gostas de lembrar.

Bem sei que se calhar as responsabilidades de hoje, um trabalho, te condicionam, e que o espelho já não entoa palavras meigas para teus olhos.

Mas sei também que com toda a certeza, podes não concordar com nada do que vou dizer, e sustentar com razão que nada do que é narrado se passou contigo como experiência.

Que nada disto se passou na escola, que tenhas dado por isso.

Que estou a exagerar, que sou traumatizado, que a ter ocorrido nenhuma relevância tem, ou importância teve, ou ainda que faz parte da vida.

Peço--te portanto que tomes o que se vai seguir, como uma ficção, caberá ao coração de cada um lembrar se existe um lado negro da lua.





Estes pesos na balança, fazem erguer mais alto esse prato sinistro ou inquietante para alguns, e é desse prato que te venho falar hoje.

Quando olhamos para trás, a memória prega-nos partidas, faz por dourar e apagar o que de feio nos possa ter parecido. A memória é como detergente, que reafirma a nódoa na brancura, ou a apaga por completo.

Tendemos assim a esquecer o que de menos bom se passou. Eu não esqueço, nem quero esquecer.

O que se passou é uma porta para me conhecer a mim e aos outros e não a vou fechar, porque quero viver contigo num mundo a sério e não num mundo cor de rosa.

Irónico, dizer-te isto num texto apresentado na página sobre a nossa escola, ainda por cima no Facebook, que tem parte do sucesso que tem, devido ao facto de que começou nos EUA exactamente como forma de ex colegas poderem perceber o que os outros andavam a fazer na vida.

Num misto de curiosidade e saudade genuína, como de comparação e até ressabiamento em relação a pessoas que de certa forma se marcaram uns aos outros.

Mais irónico ainda, quando se lê nesta página que é dedicada aos míticos e aos não míticos, frase animada de boas intenções e desprovida de maldades, por certo mas que não deixa de inquietar numa distinção clara entre 'nós' e 'eles'.

Chama-me o que quiseres, todos os nomes e palavras feias que conheceres, tudo o que de vernacular te lembrares, mas eu vou dar uma versão que podes tomar como ficção, e que se encosta às tuas memórias e é como elas tão verdadeira.

Mesmo que não tenhas sentido ou experienciado o mesmo, deixa nascer em ti a suspeita de que a comichão estava lá.





A vida é uma mão com uma potente bofetada. A bofetada é pior que o murro.

Esmurrada a nossa cara, geralmente apagamos, e acordamos com uma dor de ressaca.

Com a bofetada, é toda a cara que arde, numa dor humilhante e persistente que te arde na carne, com um zumbido no ouvido que também persiste.

Esta é a história desse zumbido. Muitos chamam-lhe 'crescer'.

Eu não.

Se com 'crescer' os degraus que calcorreámos fazem parte de um caminho onde só importa a meta, eu não quero esquecer nada.

E quero que te lembres.

Tu que ainda o ouves sem lhe sentir já o som, podes descobrir o que ele contribuiu para o que és hoje, o que lhe deves.

Quem quer que diga que olhar assim para as coisas é doença, ou até ressabiamento, terá a minha bênção, mas também me revela que não tem capacidade para pensar reflexivamente ou por cenários.

E que reduz a realidade ao mínimo denominador comum que lhe é mais confortável, tanto quanto mais redutor for de forma a que não suscite problemas que lhe abalem a fé.

Então, aqui vamos, e desde já irmão e irmã, obrigado por nos leres.

Paz.







_____





A escola, é o ambiente mais classista, conservador e condicionante que existe.

É também o templo onde aprendemos a ser cidadãos, onde nos instruímos, e tudo isso.

É exactamente com uma moeda ou como a lua, tem dois lados.

Educa-nos, mas também nos deforma, em certo sentido.

Transforma-se cada vez mais no local onde os nossos filhos são depositados para absorverem por oito ou mais horas, grande quantidades de matéria, numa lógica clara de rentabilização.

Tal como uma fábrica onde até nem falta o toque para o recreio que emula o toque de fim de turno.

Não a escola enquanto ideia que nasce na Revolução Francesa, mas a escola como se tornou hoje. E há bons exemplos em Portugal de algumas escolas que tentam fugir a este modelo, e pasme-se, conseguem melhores resultados.



Mas não é da ideia de escola que quero falar.

Quero falar da escola onde vemos outros meninos e meninas que reflectem outras famílias.

Nos idos anos 80 eu via que alguns meninos não tinham uma roupa tão gasta como a minha e até já parecia de melhor qualidade.

Outros meninos e meninas tinham botas Botilde e galochas com olhinhos de sapo na biqueira, que eram a última moda de Inverno, contraposta à moda de Verão que havia sido uma argola que se enfiava no tornozelo e que ligava por um pequeno tubo de plástico a um limão sobredimensionado que roçava pelo chão quando a criança o fazia girar em torno do pé saltando sobre ele ao pé coxinho.



Outros meninos e meninas ainda olhavam para mim porque a minha roupa não era tão gasta como a sua, e os meus brinquedos eram melhores, um bocadinho melhores, e eu podia levar papo-secos de tulicreme e eles/elas apenas levavam carcaças com margarina Planta, ou no pior dos casos, Vaqueiro.

Não pensávamos sobre isto claro, só importava o pião, os bilas, a chinchada, as bonecas, a colecção de blocos de notas perfumados do Pierrot e outros, as guerras da calhauzada...etc.

E também se notava embora difusamente, que por mais que se esforçasse, o Professor não tratava da mesma maneira os meninos e meninas de mais bem, dos meninos e meninas de menos bem, embora se esforçasse imenso para tal.

Infelizmente não dependia dele, pelo menos conscientemente.

Se calhar ainda tens resquícios destes zumbidos na memória, se calhar não, se calhar é por isso que dás aos teus filhos hoje tudo o que podes e o que não podes, para que eles não sintam pitada do que possas ter sentido...ou não.



Fomos para a Preparatória.

Já alguns meninos levavam sandes com paio York.

Mantínhamos rivalidades aguerridas com a escola da Sacor, que agora é um hospital privado para gente com dinheiro, mas em particular com a escola do Catujal.

Em guerrilha urbana aberta, por dignidade ou para provar quais os mais duros, transformava-se a paragem da Bobadela em frente à pastelaria Torp,no Carnaval, um campo de batalha com munições de sacos com água inertes previamente arremessados contra os autocarros, farinha e ovos partidos.

A capacidade de improvisar asneira estava no zénite, ou assim parece agora.

Passávamos os dias quando podíamos a subir e descer numa novidade que era o elevador dos prédios da rua que levava à entrada da escola preparatória da Bobadela, tentávamos incendiar um carro estranho que era um Lótus branco de aspecto futurista acendendo fósforos para dentro de um dos seus dois depósitos de gasolina que se abriam facilmente.

Rebentávamos bombas de Carnaval bem potentes em tudo o que era lado, em claro frenesim tribal, jogávamos à bola com as couves e lombardos das desguarnecidas hortas circundantes.

Ouvíamos a música 'Final Countdown' dos Europe e olhávamos com alguma ansiedade para o futuro pois tínhamos entrado para uma coisa estranha chamada CEE.

Apanhávamos rãs que vendíamos na escola para depois ir comprar cromos e fascinados pela riqueza disponível, chegámos a roubar durante uma hora todas as canetas que pareciam de valor, dos estojos da criançada e professores que deixavam as portas abertas e estavam no intervalo.

Fomos apanhados porque a Sandra era memorável na sua roliça generosidade de carnes agraciada com o epíteto de 'Gordinha' e então apertada em interrogatório policial delatou sobre os companheiros do crime.

Já se ia para o Centro Comercial da Portela, comer croissants de chocolate e comprar carteiras da moda, com velcro ruidoso e marca 'Dunas'.

Já perguntávamos às miúdas se queriam curtir, e passávamos horas a tactear com a língua todo o ambiente dentário da outra pessoa, olhando para um relógio que não funcionava e dizendo como medalha ao peito que tínhamos dado beijos de mais de uma hora.

Um ou outro precisava de ajuda, pois o nariz às vezes atrapalhava e não fosse uma ajuda caridosa de algum mais experiente sucediam-se os choques frontais de narizes.

Por acaso descobriu-se o desporto do apalpanço, que era mais engraçado por ter de se fugir a uma lambada bem valente, que pela espremidela que se dava nos rabos prematuros das cachopas.

Aqui, como na primária, os meninos mais populares davam-se bem. Na primária recebiam a maior parte dos bilhetes a dizer 'Eu gosto de ti'. A evolução para o preparatório implicava um aumentar da fasquia, que se traduzia numa promiscuidade dentária que faria corar de inveja muito dentista profissional.



Alguns meninos jogavam ping pong com raquetes de marca, adornados por belos e refinados estojos, e pegas super hiper mega especiais anti transpirantes, na sala de convívio, outros utilizavam raquetes de madeira imitanto a forma geométrica circular em interpretação livre, e com dois bocados de alcatifa em cada face.

Que víssemos, começaram a surgir os primeiros Adidas a três contos e quinhentos, e esses começaram a distinguir de forma mais perceptível, quem podia e quem não podia, quem pertencia e quem não pertencia.

Os índios, os Huckleberry Finns do pedaço, já começavam a ganhar consciência de um distanciamento em surdina na forma de estar nas coisas, e se por uma lado invejavam os ténis de marca que nem todo o progenitor se prestava a oferecer, por outro ressentiam-se com aqueles que por terem acesso a esses bens, os rentabilizavam socialmente.

Quem não tem cão caça com gato ou melhor com Sanjo, que custavam um conto e duzentos, e com sorte um blusão da Chenco parecido com aqueles que os reformados e o António Guterres usava antes de ser Primeiro Ministro, uns anos depois.

Mas na altura estava no top. A marca.



Fomos para a Secundária.

7º O na escola secundária de São João da Talha.

A escola já era habitada por uma velha guarda um ou dois anos mais velhos que nós, e com uma gravidade nos modos semelhante à de senadores e senadoras veteranos.

Já não eram as posses a única categoria de distinção social, mas também a antiguidade do posto, leia-se progressão na escolaridade obrigatória e antiguidade da certidão de nascimento.

Posição ganha é para ser mantida. E nada como uma boa dose de arrogância e má cara para meter na ordem os pirralhos e pirralhas invasores, do espaço semi adulto já estabelecido.

Nesta escola, já não eram os professores de educação física que torciam ligeiramente o nariz aos meninos e às meninas que não investiam muito em ténis de marca e fatos de treino da moda, muitos dos quais da marca Olympic, e a eterna Adidas.

Talvez vissem nesta falta de investimento, indícios de desinteresse pela disciplina.

Agora eram os professores de Educação Visual que esperavam as melhores réguas, borrachas, compassos e marcadores, e estojos a condizer, sob pena de uma torção sumária de nariz.

Os bens de prestígio generalizavam-se ao ritmos das modas do consumo juvenil, blusões de penas Duffy, blusões pretos, vermelhos ou azuis da Refrigue com gola felpuda preta, botas Dr Martens, calças Soviet, Levis, Benetton, Chevignon, blusões de ganga a Lee usados até o algodão se desfazer na gola, alguns tinham aparelhagens Pioneer que davam os bons dias, e outros até tinham scooters que davam 120 km hora.

Começaram a surgir os mais veteranos com Sis Sachs restauradas e com estilo vintage.

O corredor que levava ao refeitório/sala de convívio era uma verdadeira passagem de modelos, onde nos mirávamos de alto a baixo, e nos mostrávamos através de adereços.

Alguns, como o meu caso, achavam que não estavam apetrechados a ser populares, nem a darem-se ao trabalho da conversão que passava por ler revistas da moda coeva e dar-se com os expoentes dessa trend.

Infelizmente preferia a Gina e a Tânia, a Revelação, a Newlook francesa e as páginas centrais da revista do Correio da Manhã ao Domingo, que me dava ao trabalho de recortar e combinar artisticamente nos meus cadernos escolares para choque e indignação dos meus professores em particular das professoras.

Optei assim pelas revistas porno e pelo campo de basquetebol, e se não desenvolvi a minhas inexistentes capacidades sociais, hoje sei pelo menos torcer os tornozelos como ninguém, e em 10 lançamentos, com bom vento faço 5 triplos, se estiver inspirado.

Cheguei a ir fazer treinos de captação ao Sacavenense, mas achei estranho que uma equipa de basquetebol precisasse de guarda redes, e foi então que vi que me tinha enganado no balneário.

Passei assim ao lado da NBA.

Explode o Metal pela 2a vez, com bandeiras como o 'Symphony of Destruction' dos Megadeth, e o black álbum dos Metallica.

De súbito a escola pinta-se de preto e cabelos compridos, há um crítico musical em cada aluno e passeiam-se discos de vinil dos Metallica, Slayer, Testament, Kreator e tantos outros, em pulsos recheados de picos, blusões de ganga sem mangas e quanto mais sujos melhor, sem faltar o mega patch nas costas de preferência com o bordado mais chocante possível.

Saem de novo do baú as tshirts do 'Metal up your ass' e a reacção surge com os acid, facilmente identificáveis por filosofias diferentes, que dispensavam as calças apertadas que tantos quistos dermóides nos rabiosques promoveram, e os cabelos compridos, mas não dispensavam os pins com um smiley na lapela.

Combinou-se até uma luta no parque de Vale de Figueira para esclarecer esta estranha rivalidade.

Depois surgem ou ressurgem os skaters, que passavam mais tempo com as pranchas na mão ou a falar da química dos componentes das rodas que saiam nos states, que efectivamente a gastar a sola no asfalto, salvo raras e tardias excepções.

A partir daí torna-se impossível enumerar o passar das modas, mas algumas espalhavam-se virulentamente através da MTV que alguns apanhavam por satélite.

No pico da metalada fomos ao concerto de Guns N Roses de lenços pretos ou xailes na cabeça, e 'Sweet Child of Mine' na boca, e cheirámos o limão de Alvalade quando os Metallica cá deram o primeiro concerto, ignorando quase por completo os 'The Cult' e o vocalista bipolar.



As fases 'de bem' sucediam às de rebeldia embora alguns indefectíveis se mantivessem fiéis à moda anterior.

Os metaleiros, dos quais cheguei a fazer parte com a formação de uma banda de garagem igual às milhentas que surgiram a imitar o James Hetfield um pouco por todo o país, embora o sonho tenha durado sensivelmente o mesmo que os meus dotes vocais.

Ou seja fui mais depressa despedido da banda que formei, que o tempo que levei a reunir todos os músicos. É preciso muito para despedir alguém de uma banda amadora de heavy metal por não saber cantar.

Esqueci-me dizer que de música só sei o que sai nas colunas do rádio, e portanto, depois da tentativa de deixar crescer o cabelo que nunca me passou das orelhas, me deixei de escrever letras de um novo estilo que seria o death metal ecológico, exortando por exemplo no meio de riffs, a que se salvasse o lobo ibérico.

Para o meu insucesso artístico contribuiu também a minha falta total de dotes sociais, e de irreverência de estrela, que no caso do nosso grupo, os metaleiros, passava pelo desempenhar o papel de maluco, o que intumescia as ninfetas.

Para isso bastava treinar uma pose ou postura de 'que me estou a cagar para tudo' e 'que eu é que sei e tu és um quadrado/limitado/igual a todos os outros/etc'.

Esta era uma pose por vezes contraditória, uma outra versão em negativo de um 'nós' que está on, e de um 'eles' que está off.



Actos de escarrar e lamber o escarro, ou de estar à chuva debaixo de uma caleira de um dos pavilhões, era para o comum dos mortais motivo de gozo e danação eterna nos risos dos semelhantes, mas para os metaleiros era o ouro pelo qual mantinham o brilho que projectavam, sob epítetos de 'maluco' espectacular' em clara sintonia e respeitabilidade pelas outras tribos dos bem aceites.

Aos metaleiros até era permitida a façanha de serem mal educados com os professores e de serem grunhos de estimação, o que naquele tempo era privilégio. Mas os verdadeiros metaleiros apenas curtiam metal.

O ponto alto da carreira de qualquer um era o coma alcoólico, ou em excursões, ou ouro sobre azul, no recinto escolar, o que elevava a efémera glória eterna o mítico.

Com o adormecimento do metal até ao advento do nu metal, a rebeldia mainstream foi mais o menos representada por uma parte da nossa geração que infelizmente sucumbiu face aos psicotrópicos, mas que durante uns tempos, pelo menos até começarmos a ver os óbitos e as prostituições, manteve o look de renegado sobre os iniciantes.





A passagem do tempo, caro irmão, irmã, revela a nossos olhos algo que podes achar idiota e contra argumentar, nesta espécie de mecanismo de estratificação social, que não se fica apenas pelos critérios de posses materiais, ou pela posse do 'cool', mas se expande também ao mercado da carne.

Pois no fundo, não se trata esta estratificação senão de mercado da carne.

O grau de sofisticação ou afinação com a moda presente como meios de mater a auréola 'cool', junta-se o grau de beleza física, que por si fixa o grau de desejo e por consequência de aceitação.



Alguém considerado 'feio' mas sofisticado, tinha mais probabilidade de ser aceite que bonitos não sofisticados. Digo bonitos, porque neste aspecto era mais fácil para as cachopas o entrosamento no tecido dos 'populares'.

Por mais matrafona que a rapariga fosse, uma pequena aculturação bastava para a calibrar de forma igual às restantes, ao passo que as 'feias' e em menor grau os 'feios' e 'borbulhentos', tinham de desenvolver uma personalidade vincada e descomplexarem-se sob pena de caírem sob a oprobidade dos 'outros'.

O barómetro da sofisticação, regra geral, determinava, os grupos que se formavam ou sob que forma inconsciente se compunham.Muitas das vezes formavam-se grupos por rejeição dos estereótipos, de outros grupos 'estereotipozantes'.

A sofisticação não era apenas psicológica, mas também geográfica, regra geral, os autóctones da Bobadela eram mais sofisticados, e assim vistos, que os de São João da Talha, Portela de Azóia, Santa Iria.



Quanto mais próximos do 12º ano mais à vontade os alunos se iam sentindo pois subiam na hierarquia de bicagem, ou como se diz em americano 'pecking order'.

Chegava-se a olhar até para os portadores de acne recém chegados aos portões da escola secundária de São João da Talha, com alguma condescendência tal não era a frescura dessa condição na memória individual.

A maior parte dos integrados sofisticados já pensava muito à frente, fosse a nível do que querer e fazer da vida, fosse da mundividência já construída, especialmente no que concerne ao mundo dos adultos que levam a roupa muito a sério.

As saudosas festas na nossa sala de convívio, a entrega à música com copos a cheios de algo a imitar gin tónico na mão, que a AE disponibilizava, com cachopas sofisticadas no meio e cachopos não sofisticados de encontro à parede e de olhos bem abertos.

Elas com cachopos sofisticados gritando com estilo e patine as músicas de Transvision Vamp e o último êxito, uns tais de Quinta do Bill e não sei que de filhos da nação.

Elas totalmente inacessíveis, com camisas brancas desabotoadas, com um fosso medieval traçado com o olhar para os que usavam tshirts e calças de ganga gasta, Não sofisticados.

Talvez esteja teatralmente a exagerar, espero que não a ser injusto.



O canto do cisne do já falado metal ocorre com os Pantera, 'vulgar display of power' e 'cowboys from hell', mas aqui o metal tradicional estava ferido de morte, cabelos compridos já não eram requisito obrigatório.

As gerações que entravam pelos portões, 7º, 8º, 9º, 10º, já não eram tão fundamentalistas e por isso de mais fácil adesão e adaptação às modas, e menos dadas a tribites.

Entraram já plenamente europeizadas,embora a estrutura discriminatória se mantivesse, aplicava-se essencialmente de forma mais subtil, mais ligado ao carácter do porreirismo reinante, e não tanto à aderência a bens de prestígio.



Voltando um pouco atrás, na mesma altura que surgem as tshirts de 'and justice for all' brancas, surge também o Spectrum, e a tecnologia é só mais outra estrada por onde se ordenam as diferenças.

Alguns tinham o 48k, outros o 128k que já tinha música, tão complexa como qualquer grito de Tamagotchi moderno.

Surge o boom do +2, (a que alguns se distanciavam com o commodore 64, ou o msx), dependendo a variação mais por questões de a que loja se ia, que a verdadeiras opções ideológicas.

O +2 dispensava a ligação homoerótica umbilical a um gravador externo mas não a presença constante de uma chave de fendas.

Corríamos ao carinhosamente senhor 'Gordo', cuja pastelaria ficava ao pé da loja de pneus em frente à paragem da rodoviária antes dos Lobatos. Passávamos lá horas a escolher cassetes de jogos.

Comprávamos a Capital que tinha o único suplemento de informática e vibrávamos com o Paradise Café. Má escolha de palavra para enunciar este jogo feito por portugueses para portugueses.

Iamos a Moscavide a pé ou de bicicleta sem inspecção e travões, para comprar os jogos do vício.

Os mais sérios e com posses já tinham computadores Olivetti com disquetes do tamanho de estiradores, programavam em MS DOS e para eles o Target Renegade era brincadeira de criança.

Surge o Commodore Amiga e depois o PC.

Mesmo no Amiga havia os segmentos, a populaça com o 500, os pros com o 2000 e depois surgem os novos ricos com o 600 e o 1200.





Numa perspectiva geral, a nossa escola foi o denominador comum que agregou os diferentes grupos de pessoas que por sua vez reflectem não a variedade como alguns gostam de afirmar, mas a uniformidade de um sistema discriminatório.

A nossa forma de pensar de crianças, não diferia assim tanto no essencial, mais diferindo as condições materiais e o apego a uma ideologia de sofisticação.

A diferença revela-se abissalmente maior quanto mais nos afastarmos geograficamente, por exemplo, entre São João da Talha e Rio de Mouro ou São João da Talha e Salesianos.



E o que é que isto te interessa?

Até que ponto as tuas condições materiais te levaram a gostar de metal ou acid, ou a emular os jovens tardios de Beverly Hills 90210?

Quantas das coisas te passam hoje pela cabeça, resultam da forma como a miúda mais popular olhava para ti como se fosses transparente ou de um campeonato completamente diferente do dela, ou do rapaz com quem curtiste atrás do pavilhão de electrotecnia, que curtiu porque apostou com os amigos ou para chatear a namorada?

O que é que isso mudou em ti, e assim ajudou a enformar o resto da tua vida?

De que forma a aceitação das regras tácitas do jogo contribuíram para aceitares e integrares a existência natural de uma hierarquia, da aceitação de um status quo ou de uma forma de ver o mundo, que pouco ou nada terá a ver com a tua própria cogitação?



Quantos patinhos feios não se tornaram cisnes e quantas pessoas populares e sofisticadas não continuam a perpetuar a conservação daquilo que é uma das bases da estratificação social?



Como na canção:

«All in all you were all just bricks in the wall.»



Os bons tempos e as memórias banham o passado que aqui celebramos quando espreitamos o perfil uns dos outros para ver como seguiu o caminho de cada um.

No último ano que passei na nossa escola, já se faziam praxes aos recém chegados, na recorrente forma de fomentar a integração diferenciando.







Há qualquer coisa que me escapa no alcance das palavras, e que talvez se achares nexo a algo do que foi dito possas ajudar a clarificar.

O melhor da vida são as pessoas, e nesta página reencontramos rostos conhecidos e alguns parceiros e parceiras de viagem.

Até que ponto vale a pena olhar para a sombra na miragem, que paira só se quisermos olhar?

Vale a pena olhar para os tijolos menos conseguidos que ajudaram a fazer o que és hoje?





Podem os teus filhos um dia sentir nem que ao de leve como uma brisa estival pela pele passando, essa discriminação suave implícita ou explícita, consciente ou inconsciente porque não tens dinheiro para comprar a lancheira do sponge bob ou a blusa da floribela, ou porque os teus filhos nasceram com uma beleza não convencional ou sem capacidades de socialização e serão saco de pancada social a não ser que aprendam a ser 'fortes'?



Não é um grande drama que se levanta com isto.

Apenas uma sugestão para reflectir.





A memória torna a pílula dourada, e relembrar objectivamente para lá desse brilho não é tirar valor, é trazer para a luz aquilo que à chuva já não parecia uma aguarela.

Paz.
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