I
A máscara é algo de muito interessante.
Na origem era um artefacto destinado a ocultar a identidade do portador.
Simultaneamente a máscara permite a adopção de outra identidade, não só ocultando, mas mostrando outro algo.
O ipsum é duplamente camuflado.
A máscara é o meio operador sobre a imagem ou visibilidade da mesma, que emana naturalmente de qualquer ente que deixe rasto.
Subsumindo, a máscara esconde, e revela outra coisa, que não passa de outra forma de esconder.
Forma negativa, ocultando, e forma positiva, mostrando o tal outro algo.
Como a questão da verdade e da mentira são coisas complicadas, especialmente se como os mais puritanos, tomamos por ponto de honra a adequação da coisa em si à coisa para si, ou à coincidência da aparência (na forma de discurso) à essência, então devemos supor que a projecção de uma imagem a partir de uma ipseidade só pode corresponder a que essa ipseidade não é o que quer projectar, pois se o fosse não tinha necessidade de mascarar.
Exemplificando de forma popularucha e boçal, o bruto projecta-se como sensível, o fraco como forte, o feio como belo, etc.
Se já somos o que somos, não precisamos de mostrar o que somos se aquilo que somos é o que queremos que os outros querem ver.
Isto torna-se giro, pois quem tanto se preocupa com o que os outros veem, dá por si a efabular loops psicadélicos, como por exemplo mostrar aos outros que não se rala com o que eles pensam, revelando assim a contradição daquilo que pretende mostrar, ou seja, rala-se com o que os outros pensam dele ou dela, e quer que pensem o contrário.
A necessidade de tais ancestrais malabarismos, tão velhos como a humanidade, revela que há benefícios a tirar de um rosto mascarado.
Naquilo que se esconde e no que transmutado se revela.
Um desses benefícios é o do feedback loop. Falta-me o termo adequado em português, lamento o estrangeirismo. O mais adequado na nossa língua talvez fosse ciclo vicioso, mas tal deixaria de lado a tónica egocêntrica do fluxo.
Quem projecta uma imagem para outros verem, recebe em troca algo. Aprovação.
Por sua vez a aprovação é a moeda que compra o valor.
Um bom carro e uma mulher boa e bonita ao meu lado, servem perfeitamente para eu mostrar o meu sucesso aos observadores, e através da sua reacção comprovar fora de mim aquilo que preciso de confirmar em mim próprio, não por crença na minha vida interior, mas porque comprovei lá fora, nos outros, o valor que tenho.
Sejam nestes apêndices ou noutros. Sejam artefactos ou não.
A preocupação com a imagem pública extravasa as intenções meramente higiénicas ou societais.
É uma questão do foro psicológico, bem sombria e angustiante.
E generalizada. Quantas vezes não ouvimos outros e outras assumir com a maior das naturalidades que o valor próprio é aferido de forma mediata, através da reacção dos outros?
Nem vale a pena perder tempo a rebater, que a interpretação da reacção dos outros está toldada pela crença interior que já formulámos para nós próprios.
Por exemplo, se um tipo se convenceu que andar com as cuecas espreitando por fora das calças rebaixadas até meio dos glúteos, então todas as reacções que receber, mesmo que do mais frontal repúdio, vão ser interpretadas de forma positiva como o mesmo estando bem, dentro da moda, sujeito plenamente integrado e sofisticado.
II
Há uma mistura erótica de insegurança e malandragem no acto de mascarar.
E delicioso e dramático observar como espectador ante peça teatral, a espécie sapiens sapiens no seu afã de dissimulação.
Há máscaras ocasionais e máscaras duradouras. Não deixam de ser máscaras.
Há máscaras que se transmutam em crenças duradouras no sujeito mascarado, em perfeita osmose com o rosto do mesmo, que o mesmo olhando-se ao espelho já não se distingue da sua máscara.
Eventualmente todas as máscaras caem em alguma altura. Mas todas caem.
É preciso atenção pois algumas fazem pouco barulho quando se estilhaçam no chão.
Umas são visíveis, outras nem por isso, correspondendo à habilidade individual de cada um em mentir. Se considerarmos que máscara ou maquilhagem são de facto mentiras.
Outras quando caem fazem grande contraste com o rosto ressequido e inexpressivo que as ostentava, outras ainda, revelam contraste quase nenhum.
III
Mergulhemos em exemplos concretos.
O secretário-geral do Partido Comunista Português, o senhor Jerónimo de Sousa, herda a representação de um partido central na democracia portuguesa, embora ela lhe seja tão ingrata na forma de tratamento. O legado herdado é demais para as suas costas, mesmo que se diga que é um colectivo que ajuda Sísifo.
Todos os anteriores desempenhantes da função, sempre se caracterizaram por um certo pudor no exercício do culto da personalidade, sublinhando que esse mesmo culto não devia ocorrer de forma a evidenciar uma máscara de individualidade sobre um colectivo.
Isto sempre foi usado por detractores e outros panfletistas para identificar o Partido com um conjunto de aspirantes a Estaline que com a bota de Orwell em '1984' espezinhariam de bom grado a individualidade de rosto humano.
Esta aparentemente inócua posição, é a base da credibilidade de um edifício comunista.
O mesmo não tem os seus pilares na aniquilação de individualidades, mas sim no esmagamento de qualquer personalidade acima das restantes.
Numa época em que as pizzas entregues na casa de um ex primeiro-ministro, são mais importantes que os programas eleitorais para as eleições que se avizinham, resta perguntar se a nossa sociedade, de acordo com as posturas de Cunhal, Carvalhas ou outros, não surge como o perfeito contraponto comunista, na medida em que um político investigado por corrupção centra todas as atenções, especialmente em relação aos que estão em exercício.
A análise sobre as formas como poderia o prisioneiro 33 votar, teve mais tempo de antena no total, que o tempo de antena dado aos 'pequenos' partidos, PCP incluído.
Falamos do PCP porque o camarada Jerónimo surge como sinal dos tempos, pois colapsou todo o esforço de postura anterior por parte que quem o antecedeu.
Pode-se dizer que o PCP adaptou-se e evoluiu. É uma saída airosa. Uma máscara.
Igual à da explicação que ouvi quando me revelaram os motivos de aceitação de pontos de venda da Pizza Hut e McDonald's no recinto da festa do Avante.
'Somos contra sim, e ainda, mas usamos o dinheiro do capitalismo para lutar contra ele.'
Coitada da mulher de César.
O camarada Jerónimo sucumbe, não por ele, mas precisamente por representar esse tal colectivo.
Quem se lembra da demagogia de publicitário que animaram a propaganda o Bloco de Esquerda quando este se tenta evidenciar como força política?
Lembro-me de olhar para os cartazes do mesmo e pensar que a esquerda usava as armas da direita, a propaganda. Mais tarde isso conduziu ao apetite pelas 'questões fracturantes', enfim.
O peso que vergou Jerónimo, decorre do sucesso da propaganda que se perpetua sobre os comunistas, de serem uns malandros retrógados e reaccionários em relação à leveza do progresso linear, das histórias dos velhos mortos com tiros atrás das orelhas repetidas liturgicamente até hoje.
A cada novo debate televisivo o decano marxista-leninista é tratado como menino de bibe num claro preconceito ideológico bem aceite e reproduzido por grande parte dos cidadãos telespectadores da classe média urbana e civilizada.
Análogo tratamento sofreu Carvalho da Silva, lembremo-nos dele.
Durante décadas a imagem de marca composta à frente dos protestos, das greves, como figura menor, acessória na discussão da retrógrada ideia da luta de classes.
De um momento para o outro fez-se doutorado, e posteriormente convidado e comentador televisivo em boa parte dos assuntos para os quais contribuiu o seu labor sociológico.
A esquerda é tão boa assim, conformada e domesticada, apta a que se lhe passe a mão pelo lombo em tão cínico afago.
O tratamento destes líderes, antes da metamorfose da aceitação, baseia-se sempre num chorrilho de interrupções, de considerações pessoais do moderador, polvilhado com alguns sorrisos de desdém e até alguma má educação (a que os moderadores gostam de chamar 'estilo incisivo' da escola americana que trata os políticos por 'tu').
Este proceder por parte de entrevistadores e moderadores é geralmente e incompreensivelmente negado aos líderes de outros partidos na mesma situação de entrevistados, mas que não matam os velhos com um tiro atrás da orelha.
Há a necessidade de urdir uma lei que garanta a estes líderes espoliados do arco governativo, igualdade de tratamento, sob pena de se poderem sentir discriminados.
Imagino que conscientes disto, os deuses olímpicos do Comité Central, os altos estrategas da política do partido de Jerónimo, tenham divisado uma estratégia de marketing, perdão, estratégia de comunicação na qual o seu líder assumiria o papel do avo lá de casa da política portuguesa, tornando o PCP mais vendável, mais consumível pelas massas, especialmente pelas massas de reformados e pensionistas que constituem a fatia de leão do eleitorado.
Só assim se entende que tenha ocorrido a alteração do foco do apelo, dos jovens, no passado, para os portugueses, no presente. Das promessas de construção dos amanhãs futuros, agora só se pede uma hipótese para compor o desarranjo.
Só assim se deve ler, a ruptura com a postura de recato dos anteriores líderes comunistas.
Assim o camarada Jerónimo não é nada avesso a narrativas na primeira pessoa, facilmente abrindo a intimidade a qualquer objectiva televisiva, participando nos pontos de emotividade fácil, os clichés, as historietas de cordel que os jornalistas hoje compõem em vez de narrativas secas e objectivas.
Tudo apelando à emoção, à moralidade, à hipocrisia.
Os jornalistas viraram realizadores porno manipulando e exarcebando os afectos.
Os grandes planos da cara das crianças, da cabeleira branca e saliva nos cantos da boca dos velhos, dos olhares de perfil, onde se deixa Jerónimo cair, aparentemente sem ter consciência de participar na charada.
Sabemos que se orgulha de saber dançar quando revê imagens das suas presenciais candidaturas no passado próximo, ou quando revela que apanhava camarinha à beira do Tejo, em trajes menores ou sem trajes.
Qualquer líder de um partido revolucionário mencionaria as condições de miséria que levavam crianças de 6 ou 7 anos a passear nos lodos assassinos de um estuário, o camarada Jerónimo prefere apenas mostrar que é apenas um dos demais, embora diferente, enaltecendo ao invés, a maturidade que as crianças já tinham naquele tempo.
Os estrategas de comunicação do Comité Central devem ter divisado uma estratégia de marketing assente nas camadas mais idosas da população. O PCP passou a ser o partido dos velhinhos, nada se diferenciando de outros que eram os maluquinhos das feiras.
Os velhinhos gostam, de receber estas atenções. De sentir que contam para alguma coisa.
Só assim se entende o uso e abuso de ditos, ditados, dizeres e adágios populares, em sintomatologia intensifica depois de peça jornalística que associava a popularidade de Jerónimo por causa desta espirituosidade verbal.
Desde então, carrega Jerónimo nos dizeres e ditos populares.
Incapaz de falar aos jovens de hoje, remete-se este partido a falar aos jovens de outrora, já que não consegue cativar a juventude aos festivais de Verão, que ainda passam pela atalaia para comer uma bifana antes do início das aulas, perde assim Portugal o único partido estruturado de esquerda revolucionária.
A acomodação passa por ceder à ambição das sondagens e das percentagens calculadas.
O poder ainda vai ser nosso se assim decidirem e grão a grão enche a galinha o papo.
O partido de máscara revolucionária que tanto se afirma como diferente, perfila-se como um lago de águas paradas, mascarado com a renovação etária das suas hostes no Parlamento e nas Câmaras, mas com mentalidades de idade gerontófila.
Tudo está bem quando continua bem.