Académicos II
I
Falando da minha experiência pessoal, e de acordo com a abertura da época da praxe, que se prolongará até ao fim do ano lectivo, venho por este meio reflectir sobre esta tradição que é a praxe.
A praxe enquanto tradição é recente e massificou-se com a massificação do ensino superior.
Surge nos contextos suburbanos lisboetas como moda moderna um pouco como a celebração do ‘rookie’ dos filmes de Hollywood enquanto arquétipo do iniciado ou das debutantes do século passado. Lembro-me de ver nos idos anos 90 a sua introdução em contexto do secundário, aplicada aos alunos recém chegados, por parte dos mais velhos, e que partilhava com as praxes actuais a simbiose de entusiasmos entre praxantes e praxados, uns por poder humilhar os outros, e os outros por se sentirem integrados numa brincadeira e num ambiente de amizade fácil, de protecção galinácia por uma espécie de superiores ‘pedagogos’ sobre os trilhos do novo trajecto, sem dúvida com imensos perigos.
Nunca praxei ninguém, fui praxado, e não tenho particular ódio ou amor à praxe académica, mas tenho a minha opinião e nela acho que a praxe é uma idiotice, mas respeito o direito de adesão de cada um, contando que seja voluntário.
Naquilo que supostamente a praxe representa, sou totalmente avesso, até porque por todos os argumentos e mais um, a praxe não serve para integrar, para isso qualquer actividade lúdica cumpriria o ojectivo, a praxe serve para ordenar e hierarquizar. E isso, lamentavelmente, rejeito.
II
Fui praxado por uma cachopa repetente de 2º ano que assim se vingava porventura de aventuras escolares menos felizes, e cuja niilista presença na Faculdade de Letras de Lisboa exigia sentido para o seu trajecto menos conseguido através de um sacrifício ritual de um caloiro.
Calhou-me a mim, que me neguei é certo, pois nunca gostei de me sujeitar a vontades alheias, mas à insistência ameaçadora da musa, fraquejei, confesso, mais por ceder ao mito de que quem se nega é depois renegado por todos os outros sujeitando-se a uma vida de eremita aleivoso, que por encantos intrínsecos da moça. De qualquer maneira, a tatuagem com o nome do meu curso na minha testa, fez-me sentir plenamente integrado e pensei que ao menos assim tinha alguém com quem falar a minha ‘madrinha’ que assim supria a minha falta de baptismo católico.
Com surpresa só a custo conseguia arrancar palavras de minha ‘madrinha’, sempre com ar de oráculo sapiente e milenar, o que de certa forma me fez perceber que as praxes pouco mais são que a repetição mistificada de lugares comuns em que vários interesses e patologias se cruzam.
Não tive uma experiência relevante ou particularmente atribulada, nem sequer ‘negativa’ pelo que julgo estar à vontade para afirmar que a praxe vale mais pela atmosfera alienada e alienizante que projecta que pelas supostas funções de integração e camaradagem. Atenção que não nego a existência das mesmas para pequenas quantidades de pessoas, mas como em tudo as excepções confirmam as regras. O traje académico é outra parte do folclore que surge tardiamente e por osmose em Lisboa (originário do luto académico de Coimbra, bem contextualizado histórica e ideologicamente) , cuja função era mais uma vez travestida, não para identificar membros da Academia, mas para os diferenciar dos comuns mortais como pude comprovar com a minha soberba quando entrei orgulhoso no autocarro, com o nome do curso a vermelho batôn na testa, sentindo-me um eleito.
A meio do percurso senti-me terrivelmente envergonhado por minha pequena e serôdia alegria que saí antes do meu destino para limpar aquela minha falha de carácter.
Com pompa vemos nestas alturas estes placebos de ‘batman’ ou pianistas cangalheiros vestidos ne negro, deambulamdo pelas ruas ou com um grupo de imberbes estudantes em suave perseguição. Conheci muitos colegas que participavam zelosamente nas praxes com um sentido de missão que sempre ultrapassava em intensidade a sua preocupação com as matérias a aprender.
Assisti também à permeabilização da sensibilidade docente para com estas palhaçadas, uns por se sentirem como Maomé perante a montanha, outros porque sabe sempre bem uns dias de folga por causa da tradição académica.
Assisti a suficientes discussões públicas e tomadas de posição de reitores e estudantes, e até às mortes de algumas vítimas de abusos. Cheguei a conhecer as praxes de universidades privadas que faziam da crueldade dos exercícios a liturgia do esforço de equalização da dignidade comparativamente às universidades públicas.
Cheguei a assistir num casamento, perante o olhar embevecido dos pais dos noivos, à cerimónia de celebração que atestava o fim glorioso de um percurso de juventude através de gritos guturais, pandeiretas, piruetas e motes semi brejeiros, que distinguem a elite letrada e bem sucedida do Portugal parolo.
No momento presente, como grande parte dos que já abandonaram os ‘cursos’ ou que já não sentem as hormonas em primaveril desarranjo, olho para estes rituais como cão para vinha vindimada, respeito o direito dos mais novos a celebrarem as tonterias próprias da idade, e não me afecta que os participantes embarquem numa mesma dança vil e suja de subserviência e atavismo chocante.
III
Subserviência porque como já disse, nada há na praxe, a não ser como máscara, que seja integrante. O caloiro integrado não é integrado na faculdade mas na irmandade dos que defendem esta suposta tradição académica. O direito de praxar, é um direito, um direito exclusivo, O veterano não assume o praxado e pós iniciado como seu igual, mas como alguém abaixo numa imaginária hierarquia social e académica. Na praxe, como na tropa, a antiguidade é um posto, e os pobres de espírito não podem dar-se ao luxo de abdicar dos privilégios da posição que julgam ter atingido. Quando ingressei na FCSH, fui abordado carinhosamente por um veterano que me pretendia praxar, pois que havia estado com o radar alerta para novas faces. Repliquei gentilmente que não, ao que o mesmo se despeitou por uma tão grave violação dos seus direitos, pelo que retorqui indagando qual a legitimação para se poder praxar outro, se era o maior número de matrículas. Não, pelos vistos era a apresentação de um currículo de veterania, que eu não tinha pois nunca tinha praxado ninguém, nem pertencia ao grupo de praxantes da instituição, pois ao que parece só se podem praxar uns aos outros dentro da instituição, o que é uma boa medida protectora, bem como cria uma pequena tribo dentro dos milhares de potenciais servos e escravos do ensino superior deste país.
Demovido pela minha recusa o jovem veterano sentiu que devia retirar-se para alvos mais aquiescentes pelo que fiquei com o meu mau feitio e com a ausência do medo de ficar só para todo o sempre.
No conjunto das actividades oferecidas numa instituição de ensino superior, a maior adesão envolve sem dúvida e geralmente a tradição praxista e como complemento vitamínico, as tunas.
Não é possível a alguém de boa fé negar que existem interesses próprios ou ganhos individuais nesta promoção de actividades. Se sujeito X opta por participar a expensas próprias no teatro da praxe é porque ganha algo com isso. Sejam vantagens a nível sexual (conhecer caloiras e caloiros e aparecer aos olhos de potenciais parceiros como alguém integrado e proactivo(a) ), sejam vantagens a nível psicológico, com a humilhação ou na melhor das hipóteses, no fascínio ou domínio exercido em outros mais impressionáveis. É claro que existem os caso de pessoas que acham genuinamente que através da praxe prestam um exercício ao próximo, mas pede-se apenas um pouco de honestidade para admitir, que se toda a gente que participa o fizesse por motivos altruístas, tínhamos todos os flagelos sociais portugueses resolvidos À base de caridade, a não ser que a imagem de um caloiro indefeso a entrar pela sombria e fantasmagórica entrada de uma universidade seja mais comovente que um desgraçado sem abrigo toxicodependente em coma alcoólico morando numa lixeira. Passo o exemplo.
Pessoalmente não acredito no argumento falacioso do altruísmo, tal como menos acredito no argumento a favor da manutenção desta tradição veneranda com menos de meio século de longevidade, que contextualizada a Lisboa, nem 30 aninhos deve estar a fazer.
Se toda a população do ensino superior se dedicasse de igual forma a todas as formas de preservação da memória cultural, teríamos núcleos de ranchos folclóricos e até de horto fruticultura em todas as universidades portuguesas. Passo o exemplo.
As palavras bonitas acerca das praxes são apenas isso, palavras bonitas para disfarçar o óbvio.
IV
Como já referi, a praxe implica uma sujeição entre membros de dignidade ou posição diferente, o que implica a aceitação dessa diferença, hierárquica.
É portanto uma actividade classista, parola e conformadora, que na minha opinião aliena e restringe o que de mais valioso se encontra na sociedade civil, a irreverência e força de esperança da juventude.
Praticada pelos jovens estudantes, que em casa recebem o ensinamento de uma sociedade dividida em ordens, dignidades, classes. Conforme à visão de alguns, é certo, mas terrivelmente serôdia no sentido de que aceitar a diferença ou seriação dos seres humanos em nós e eles, vai tão contra a propagada ideia de que somos todos iguais, como as difenrenças de ordenados para diferentes funções igualmente importantes.
O jovem licenciado sai com a praxe, mais conformado e conformador, que aquilo que é desejável. Sai do seu cursinho a acreditar que a paciência e a resignação, que a aceitação de ordens, que a subserviência fazem parte de um trajecto normal que culmina no prémio que ele ou ela anseiam.
É curioso como se defende por vezes a actividade desinteressada da praxe, baseada na integração dos novos alunos. Dá a ideia de que os veteranos são dedicados filantropos da harmonia universitária, o que de certa forma com a estratificação que desde o início se ensina aos caloiros, que têm de aprender a diferença entre caloiros, doutores, padrinhos, e restante parafernalia de nomes e rituais que se podem observar na praxe - e experimente-se abordar um destes veteranos, geralmente respondem com alguma aridez para quem não conhecem dentro do recinto escolar, aridez acentuada se for um caloiro a quem é preciso vincar a autoridade.
Cada doutor deve ser recompensado pelo montante gasto em fardas / uniformes, a bem do bem estar e acolhimento dos outros. Podemos até criar a ideia de uma universidade amistosa e plenamente porreiraça à conta destes veteranos dos livros, mas o que acontece a maior parte das vezes é que são criaturas classistas, elitistas e exibicionistas, em particular com o seu negro uniforme que os distingue dos demais.
Relembro uma tradição académica bem mais antiga e infelizmente que se vai perdendo, na Faculdade de Letras de Lisboa, em que não se utilizava o traje académico, e onde os caloiros eram convidados para beber cerveja, em igualdade, com os alunos mais velhos e os temas de conversa eram invariavelmente os assuntos que iriam tratar no decurso da sua aprendizagem, na instituição e fora dela. Quer porque esta veneranda tradição não cria senão um sentimento de partilha e camaradagem, vai-se perdendo para as ridículas tarefas de infantilização e pornografia de brincadeira que se escutam um pouco por toda a cidade. Nelas é invariavelmente observado um mandante e um executor, uma autoridade e uma submissão, sob todos os eufemismos que se queiram evocar para amenizar esta crua leitura.
No fundo a praxe é a institucionalização da violência sobre o outro através de uma manifestação imberbe e infantil, praxar é brincar ao reizinho e aos estudos, é fazer dos universitários pequenas crianças tiranas a brincar aos adultos.
Assim é a praxe uma actividade conservadora e socialmente regressiva, além de eticamente questionável.
Mas como é práxis, fica ao cuidado do comprador, Caveat Emptor.
I
Falando da minha experiência pessoal, e de acordo com a abertura da época da praxe, que se prolongará até ao fim do ano lectivo, venho por este meio reflectir sobre esta tradição que é a praxe.
A praxe enquanto tradição é recente e massificou-se com a massificação do ensino superior.
Surge nos contextos suburbanos lisboetas como moda moderna um pouco como a celebração do ‘rookie’ dos filmes de Hollywood enquanto arquétipo do iniciado ou das debutantes do século passado. Lembro-me de ver nos idos anos 90 a sua introdução em contexto do secundário, aplicada aos alunos recém chegados, por parte dos mais velhos, e que partilhava com as praxes actuais a simbiose de entusiasmos entre praxantes e praxados, uns por poder humilhar os outros, e os outros por se sentirem integrados numa brincadeira e num ambiente de amizade fácil, de protecção galinácia por uma espécie de superiores ‘pedagogos’ sobre os trilhos do novo trajecto, sem dúvida com imensos perigos.
Nunca praxei ninguém, fui praxado, e não tenho particular ódio ou amor à praxe académica, mas tenho a minha opinião e nela acho que a praxe é uma idiotice, mas respeito o direito de adesão de cada um, contando que seja voluntário.
Naquilo que supostamente a praxe representa, sou totalmente avesso, até porque por todos os argumentos e mais um, a praxe não serve para integrar, para isso qualquer actividade lúdica cumpriria o ojectivo, a praxe serve para ordenar e hierarquizar. E isso, lamentavelmente, rejeito.
II
Fui praxado por uma cachopa repetente de 2º ano que assim se vingava porventura de aventuras escolares menos felizes, e cuja niilista presença na Faculdade de Letras de Lisboa exigia sentido para o seu trajecto menos conseguido através de um sacrifício ritual de um caloiro.
Calhou-me a mim, que me neguei é certo, pois nunca gostei de me sujeitar a vontades alheias, mas à insistência ameaçadora da musa, fraquejei, confesso, mais por ceder ao mito de que quem se nega é depois renegado por todos os outros sujeitando-se a uma vida de eremita aleivoso, que por encantos intrínsecos da moça. De qualquer maneira, a tatuagem com o nome do meu curso na minha testa, fez-me sentir plenamente integrado e pensei que ao menos assim tinha alguém com quem falar a minha ‘madrinha’ que assim supria a minha falta de baptismo católico.
Com surpresa só a custo conseguia arrancar palavras de minha ‘madrinha’, sempre com ar de oráculo sapiente e milenar, o que de certa forma me fez perceber que as praxes pouco mais são que a repetição mistificada de lugares comuns em que vários interesses e patologias se cruzam.
Não tive uma experiência relevante ou particularmente atribulada, nem sequer ‘negativa’ pelo que julgo estar à vontade para afirmar que a praxe vale mais pela atmosfera alienada e alienizante que projecta que pelas supostas funções de integração e camaradagem. Atenção que não nego a existência das mesmas para pequenas quantidades de pessoas, mas como em tudo as excepções confirmam as regras. O traje académico é outra parte do folclore que surge tardiamente e por osmose em Lisboa (originário do luto académico de Coimbra, bem contextualizado histórica e ideologicamente) , cuja função era mais uma vez travestida, não para identificar membros da Academia, mas para os diferenciar dos comuns mortais como pude comprovar com a minha soberba quando entrei orgulhoso no autocarro, com o nome do curso a vermelho batôn na testa, sentindo-me um eleito.
A meio do percurso senti-me terrivelmente envergonhado por minha pequena e serôdia alegria que saí antes do meu destino para limpar aquela minha falha de carácter.
Com pompa vemos nestas alturas estes placebos de ‘batman’ ou pianistas cangalheiros vestidos ne negro, deambulamdo pelas ruas ou com um grupo de imberbes estudantes em suave perseguição. Conheci muitos colegas que participavam zelosamente nas praxes com um sentido de missão que sempre ultrapassava em intensidade a sua preocupação com as matérias a aprender.
Assisti também à permeabilização da sensibilidade docente para com estas palhaçadas, uns por se sentirem como Maomé perante a montanha, outros porque sabe sempre bem uns dias de folga por causa da tradição académica.
Assisti a suficientes discussões públicas e tomadas de posição de reitores e estudantes, e até às mortes de algumas vítimas de abusos. Cheguei a conhecer as praxes de universidades privadas que faziam da crueldade dos exercícios a liturgia do esforço de equalização da dignidade comparativamente às universidades públicas.
Cheguei a assistir num casamento, perante o olhar embevecido dos pais dos noivos, à cerimónia de celebração que atestava o fim glorioso de um percurso de juventude através de gritos guturais, pandeiretas, piruetas e motes semi brejeiros, que distinguem a elite letrada e bem sucedida do Portugal parolo.
No momento presente, como grande parte dos que já abandonaram os ‘cursos’ ou que já não sentem as hormonas em primaveril desarranjo, olho para estes rituais como cão para vinha vindimada, respeito o direito dos mais novos a celebrarem as tonterias próprias da idade, e não me afecta que os participantes embarquem numa mesma dança vil e suja de subserviência e atavismo chocante.
III
Subserviência porque como já disse, nada há na praxe, a não ser como máscara, que seja integrante. O caloiro integrado não é integrado na faculdade mas na irmandade dos que defendem esta suposta tradição académica. O direito de praxar, é um direito, um direito exclusivo, O veterano não assume o praxado e pós iniciado como seu igual, mas como alguém abaixo numa imaginária hierarquia social e académica. Na praxe, como na tropa, a antiguidade é um posto, e os pobres de espírito não podem dar-se ao luxo de abdicar dos privilégios da posição que julgam ter atingido. Quando ingressei na FCSH, fui abordado carinhosamente por um veterano que me pretendia praxar, pois que havia estado com o radar alerta para novas faces. Repliquei gentilmente que não, ao que o mesmo se despeitou por uma tão grave violação dos seus direitos, pelo que retorqui indagando qual a legitimação para se poder praxar outro, se era o maior número de matrículas. Não, pelos vistos era a apresentação de um currículo de veterania, que eu não tinha pois nunca tinha praxado ninguém, nem pertencia ao grupo de praxantes da instituição, pois ao que parece só se podem praxar uns aos outros dentro da instituição, o que é uma boa medida protectora, bem como cria uma pequena tribo dentro dos milhares de potenciais servos e escravos do ensino superior deste país.
Demovido pela minha recusa o jovem veterano sentiu que devia retirar-se para alvos mais aquiescentes pelo que fiquei com o meu mau feitio e com a ausência do medo de ficar só para todo o sempre.
No conjunto das actividades oferecidas numa instituição de ensino superior, a maior adesão envolve sem dúvida e geralmente a tradição praxista e como complemento vitamínico, as tunas.
Não é possível a alguém de boa fé negar que existem interesses próprios ou ganhos individuais nesta promoção de actividades. Se sujeito X opta por participar a expensas próprias no teatro da praxe é porque ganha algo com isso. Sejam vantagens a nível sexual (conhecer caloiras e caloiros e aparecer aos olhos de potenciais parceiros como alguém integrado e proactivo(a) ), sejam vantagens a nível psicológico, com a humilhação ou na melhor das hipóteses, no fascínio ou domínio exercido em outros mais impressionáveis. É claro que existem os caso de pessoas que acham genuinamente que através da praxe prestam um exercício ao próximo, mas pede-se apenas um pouco de honestidade para admitir, que se toda a gente que participa o fizesse por motivos altruístas, tínhamos todos os flagelos sociais portugueses resolvidos À base de caridade, a não ser que a imagem de um caloiro indefeso a entrar pela sombria e fantasmagórica entrada de uma universidade seja mais comovente que um desgraçado sem abrigo toxicodependente em coma alcoólico morando numa lixeira. Passo o exemplo.
Pessoalmente não acredito no argumento falacioso do altruísmo, tal como menos acredito no argumento a favor da manutenção desta tradição veneranda com menos de meio século de longevidade, que contextualizada a Lisboa, nem 30 aninhos deve estar a fazer.
Se toda a população do ensino superior se dedicasse de igual forma a todas as formas de preservação da memória cultural, teríamos núcleos de ranchos folclóricos e até de horto fruticultura em todas as universidades portuguesas. Passo o exemplo.
As palavras bonitas acerca das praxes são apenas isso, palavras bonitas para disfarçar o óbvio.
IV
Como já referi, a praxe implica uma sujeição entre membros de dignidade ou posição diferente, o que implica a aceitação dessa diferença, hierárquica.
É portanto uma actividade classista, parola e conformadora, que na minha opinião aliena e restringe o que de mais valioso se encontra na sociedade civil, a irreverência e força de esperança da juventude.
Praticada pelos jovens estudantes, que em casa recebem o ensinamento de uma sociedade dividida em ordens, dignidades, classes. Conforme à visão de alguns, é certo, mas terrivelmente serôdia no sentido de que aceitar a diferença ou seriação dos seres humanos em nós e eles, vai tão contra a propagada ideia de que somos todos iguais, como as difenrenças de ordenados para diferentes funções igualmente importantes.
O jovem licenciado sai com a praxe, mais conformado e conformador, que aquilo que é desejável. Sai do seu cursinho a acreditar que a paciência e a resignação, que a aceitação de ordens, que a subserviência fazem parte de um trajecto normal que culmina no prémio que ele ou ela anseiam.
É curioso como se defende por vezes a actividade desinteressada da praxe, baseada na integração dos novos alunos. Dá a ideia de que os veteranos são dedicados filantropos da harmonia universitária, o que de certa forma com a estratificação que desde o início se ensina aos caloiros, que têm de aprender a diferença entre caloiros, doutores, padrinhos, e restante parafernalia de nomes e rituais que se podem observar na praxe - e experimente-se abordar um destes veteranos, geralmente respondem com alguma aridez para quem não conhecem dentro do recinto escolar, aridez acentuada se for um caloiro a quem é preciso vincar a autoridade.
Cada doutor deve ser recompensado pelo montante gasto em fardas / uniformes, a bem do bem estar e acolhimento dos outros. Podemos até criar a ideia de uma universidade amistosa e plenamente porreiraça à conta destes veteranos dos livros, mas o que acontece a maior parte das vezes é que são criaturas classistas, elitistas e exibicionistas, em particular com o seu negro uniforme que os distingue dos demais.
Relembro uma tradição académica bem mais antiga e infelizmente que se vai perdendo, na Faculdade de Letras de Lisboa, em que não se utilizava o traje académico, e onde os caloiros eram convidados para beber cerveja, em igualdade, com os alunos mais velhos e os temas de conversa eram invariavelmente os assuntos que iriam tratar no decurso da sua aprendizagem, na instituição e fora dela. Quer porque esta veneranda tradição não cria senão um sentimento de partilha e camaradagem, vai-se perdendo para as ridículas tarefas de infantilização e pornografia de brincadeira que se escutam um pouco por toda a cidade. Nelas é invariavelmente observado um mandante e um executor, uma autoridade e uma submissão, sob todos os eufemismos que se queiram evocar para amenizar esta crua leitura.
No fundo a praxe é a institucionalização da violência sobre o outro através de uma manifestação imberbe e infantil, praxar é brincar ao reizinho e aos estudos, é fazer dos universitários pequenas crianças tiranas a brincar aos adultos.
Assim é a praxe uma actividade conservadora e socialmente regressiva, além de eticamente questionável.
Mas como é práxis, fica ao cuidado do comprador, Caveat Emptor.