I
a)
Dia glorioso.24 de Junho de 2016.Dia glorioso.
Por todos os motivos e mais um.
Um conjunto de povos, até mais ver, decidiu não continuar no monstro neofascista e neoliberal que se assume burocraticamente como «União» Europeia.
Esta ocorrência adquire mais carga simbólica se tivermos em conta que o Reino Unido se 'queixa' das desvantagens de estar metido nesta caldeirada apesar de sempre ter gozado de uma situação de excepção, sempre habilmente negociada (ou no pior dos casos comprada pelos outros países do Eurogrupo) em relação particularmente à política monetária.
Apesar de nunca ter aderido ao euro.
Apesar de ter sido sempre um entrave à federalização da Europa à moda do Iº Reich, a
Grã-Bretanha sempre cumpriu os seus deveres e exerceu os seus direitos assumidos, suscitando
interpretações que iam desde as acusações de estar fora mas dando dicas para dentro, até às acusações do estando dentro querendo secretamente dar o fora.
A máquina política e diplomática britânica nunca deixou de mostrar compromisso com o projecto europeu, desde que ele não fosse contra os seus interesses enquanto nação.
b)
Os endoutrinados burocratas e politólogos sempre se esforçaram por identificar esta postura com uma decisão dúbia, de esperteza saloia até por parte dos britânicos a quem o tempo veio dar razão em razão à sua cautela.
Tendo perto de si dois colossos do velho continente, o sem vergonha designado eixo franco-alemão, cabe aos representantes ingleses, por mais incompetentes que sejam, manter um denominador mínimo de autonomia e independência em relação às potências continentais.
Isto só é censurável, para quem depende do orçamento da Comissão Europeia e para portugueses que tentam assumir o seu alter ego europeu uma vez que não conseguem viver com a má imagem que têm de si mesmos.
A cautela e digamos até alguma desconfiança é salutar e desejável. Sem que por isso se deva acusar de não se estar com o projecto europeu.
Que diga-se e repita-se, o que foi referendado positivamente em 1975, (tendo na altura a Escócia votado contra) não é o mesmo que foi referendado em 2016.
Não nos podemos esquecer que o tratado de Maastricht matou a Europa dos 'Jogos sem Fronteiras' e do 'Festival da Eurovisão', os mais simpáticos instrumentos de charme que a radiodifusão já conheceu.
c)
Os media continuam a sua vergonhosa campanha de desinformação, remetendo para comentadores avulsos e cómodos as crónicas sobre assuntos de ideologia. A Europa a que aderimos, não é a Europa que temos agora, e nem uma única vez foram sujeitos a escrutínio público quaisquer temas relativos aos tratados, que são uma espécie de concílios de Trento, mal explicados à população, que no nosso país recebe as notícias como se de factos incontestáveis, pois estar no projecto europeu significa abdicar de toda e qualquer identidade nacional que não passe como estereótipo bonacheirão.
Upss não se pode falar em 'nacional' que é algo anacrónico e vai contra os paradigmas pop de sucesso, bem como contra as mundividências das massas da classe média de mundos utópicos com céus cor de rosa e nuvens de algodão. Quem fala em nacionalismo só pode ser um porco fascista, pois foram os estados que promoveram as guerras, ou o Estado-Nação é uma coisa ultrapassada por causa da globalização, como se fosse ecologicamente sustentável a médio prazo a orgia de desperdício que essa mesma globalização produz.
Mas não faz mal.
A própria coordenadora do Bloco de Esquerda confessou às câmaras antes do seu congresso que essa coisa dos países como eram nunca mais iria voltar que não tinha condições para isso ou estava ultrapasado, se bem me lembro.
É sempre bom constatar a desenvoltura conceptual e a omnisciência dos nossos políticos, que sabem tanta coisa da vida e do mundo que nos podem ensinar a todos, neste caso acerca da marcha do progresso, que apresenta (como o discurso da senhora Martins o prova) semelhanças com todos os impérios passados que se consideravam eternos.
A senhora Martins por outro lado, sempre rápida a reconhecer o direito à autodeterminação dos povos, nomeadamente no 'vespeiro' do Adriático, ou pela causa curda, reconhece perante as câmaras, por certo para aplacar os facilmente impressionáveis, que na Europa (onde as identidades nacionais são demasiado fortes – e isso corresponde a uma força cultural e não a um defeito) isso dos países está ultrapassado.
Menorizamos os motivos dos povos das Ilhas Britânicas chamando-os de racistas, como se cerca de 17 milhões de votantes fossem movidos por ódio ao kebab ou ao vindaloo.
Chega-se a ler que quem votou a favor do Brexit foram os ignorantes e hooligans.
Acho que deve-se colocar primeiro a seguinte questão, será que nos damos conta de que a «União Europeia» ou o «Projecto Europeu» se transformaram em dogma religioso?
d)
Que democracia europeia é esta que prevendo (há uns anos atrás repetia-se pelas redacções dos Telejornais de que não havia plano de saída para os países, porque não se acreditava que alguém quisesse sair, ontem descobriu-se que afinal tinha ficado escrito preto no branco, no Tratado de Lisboa) a saída de um Estado Membro, o castiga com impropérios ao jeito da pior disputa conjugal?
Os britânicos não foram nisso e em coro, na oposição interna e nos países 'amigos' chamam incompetente a Cameron por ter chamado o povo a dar voz. Os mesmos que criticavam a asfixia da austeridade agora vêm a público dizer que o Reino unido veio estragar a coisa que estava agora tão boa.
Curiosamente os mais comedidos nas críticas são os países periféricos, maltratados pela austeridade. Com excepção à malta da escola de Chicago que enxameia as faculdades de Economia em Portugal.
e)
O que o Reino Unido provou democraticamente (provavelmente saindo o tiro pela culatra a quem pretendia calar a critica interna com uma legitimação popular, que foi em sentido inverso) neste referendo, é que existe limite para comodismo e para a submissão que qualquer povo está disposto a suportar SE mantiver o mínimo de dignidade e margem de manobra para exercer a sua liberdade.
As Ilhas Britânicas a dar o exemplo no exercício da liberdade desde a Magna Carta.
Brave Great Britain.
II
f)
Admito que exultei com este resultado.
Já tinha passado a fase do desespero.
Passei a do cinismo.
Estagnei na da apatia.
Não tinha esperança de ver no meu tempo de vida, a potencialidade de a médio prazo, poderem vir a ocorrer alterações no meu país, pelo qual jurei bandeira e que tenho observado lenta e gradualmente transmutar-se em protectorado. Com uma eficiência que deve muito a Bismark.
Já me tinha acostumado à ideia do florescimento do Estado Totalitário e Burocrático em que vivemos, onde a reificação do cidadão se designa de 'gestão eficiente', e onde o dogma religioso (a ideia de examinar a utilidade de uma união europeia é algo de tão evidente que nem merece exame por parte da maioria dos interlocutores que não se imagina noutra situação) é palavra do (S)enhor.
g)
Que fazer desta segunda natureza das gerações mais jovens que nunca conheceram o país antes da adesão, ou das elites que à conta do Erasmus transmitem nas Universidades que o futuro do país está no Turismo e em não sair da UE que é o nosso abono de família, a nossa São jorge da Mina do século XXI, o nosso Brasil que nos entretém mais umas décadas enquanto adiamos de novo o nosso destino como nação?
Que fazer a motivadores pagos pela Comissão Europeia que circulam por anfiteatros universitários pregando ao dinamismo, pá estão num mercado de 500 milhões arrisquem, coloquem uma mochila às costas e tornem-se empreendedores da vossa própria a vida, ocultando-se o facto de que aqui, na jangada de pedra, é onde existem menos licenciados, e mais licenciados no desemprego, em toda a Europa.
h)
Várias falanges sociais tremem com a sombra de um referendo.
Só quem tem algo a perder, naturalmente.
Quem vive na merda e na miséria sabe menos o que é a Europa, que aqueles que de acordo com a comunicação social, andaram a pesquisar no 'Google' no que tinham votado no referendo, tentando mais uma vez passar um atestado de imbecilidade ao eleitor britânico.
Os ingleses, galeses, escoceses não rejeitaram Portugal ou a Roménia. Rejeitaram a Europa do directório.
Rejeitaram a Europa em que a Alemanha arrasa com os têxteis europeus para poder vender maquinaria pesada à República Popular da China.
Rejeitaram a Europa que perdoa sem sanções durante décadas o desrespeito por deficits acordados, à França e Alemanha, para no momento seguinte castigar PIGS, por não cumprirem com o deve/haver. Ou seja, um sistema burocrático e político que é fraco com os fortes e forte com os fracos.
Rejeitaram a Europa que permite que durante anos não se procedam a aumentos salariais na zona do Ruhr (aliás em toda a Alemanha), erradicando quase por completo toda a indústria em redor, incapaz de competir. Depois de dar cabo da concorrência há que fidelizar. E é por isso que a outrora brilhante indústria automóvel inglesa, com centenas de milhar de engenheiros produzindo excelentes produtos, está de rastos ou nas mãos de estrangeiros enquanto que o Estado alemão ainda tem percentagem de acções nas maiores empresas, alguém se lembra da golden share?
Como dizia o Miguel Sousa Tavares, num comentário que foi esquecido pela maioria das pessoas «(...)era o que faltava alguém chamar à atenção quem mais joga dinheiro na União Europeia».
i)
A Europa a 27, que após o referendo, reuniu a 6, os 'fundadores' como se os restantes 21 fossem verbo de encher.
Brave Great Britain.
Chamam-lhe 'democracia representativa', alguns.
Mesmo que não os tenhamos eleito para nos representar.
Muitos dos indivíduos da minha geração, e até anteriores, gosta do Portugal do Ronaldo-o-melhor-do-mundo-é-português. Rejeitando com algum rubor e vergonha o português dos 3 b's : bigode, barriga, e barril, que era imagem de marca nos anos 80.
É por esta hipótese de análise de psicologia social, que podemos começar a fazer um exame político ao cadáver adiado da CEE pós Maastricht.
A questão do comodismo também vem dar um contributo ao tema.
O pessoal do turismo e dos gadgets que destesta o tecido produtivo no torrão pátrio gabando-o noutras coordenadas geográficas, é aquele que mais sofre com o espectro de não poder comprar nas lojas online que estão sediadas no UK ou que fazem passar pelo UK a expedição dos seus produtos.
j)
Já ninguém quer falar da ingerência desse polvo de índole mafiosa que é a Comissão Europeia, gente sinistra com ingénuas ligações à Goldman Sachs ou ao Lehman Brothers que transita do FMI para a Comissão e da Comissão para o FMI.
Ninguém quer falar das vergonhosas campanhas patrocinadas pela Comissão onde quer que exista um referendo que tenha consequências para o poder ou prestígio desta comissão, na Grécia, Escócia, Irlanda, etc. num claro exemplo do que é ingerência na política interna de um país.
Queixas de agressividade e cinismo inéditos em campanhas eleitorais ocorrem sempre que o dedo da Comissão Europeia vai provar a temperatura da sopa, usando os métodos mais eficazes de apelo ininterrupto à emoção, simplismo e lugares comuns, em manobras que muitos analistas, politólogos da praça apenas identificam em regimes totalitaristas (nem todos, a Arábia Saudita é amiga por exemplo). Disto, os media nacionais, não passam, talvez porque é mais fácil comprar notícias à Reuters, France Press ou BBC do que ensinar aos estagiários a utilizar o Google Translator para verter as notícias para português. Alguns até as fabricam, tudo em nome da democracia representativa.
As tácticas de manipulação de opinião, quando provenientes da Rússia por exemplo, são de escola estalinista. Quando provenientes da Comissão Europeia, são legítimos e profundos apelos à razão.
k)
O indivíduo português particularmente é avesso e acrítico a alguma análise ao que consista ser-se 'europeísta'. É-se e pronto, «não há palavras.» - seja qual for o conteúdo denotado.
Se sair mais uma directiva da Comissão Europeia afirmando que só europeísta quem saltar para dentro de um poço, no dia seguinte esgotam-se as toucas de silicone na Sportzone e Decathlon.
Ser europeísta é ser sofisticado, responsável, moderno, ecologicamente consciente, humanista, comprometido com a paz, como se fosse a União Europeia a responsável por 60 anos de paz nos quais todos os países possuem os exércitos próprios.
Passa-se a ideia de que o comércio cria as interdependências necessárias que dissuadem do conflicto pois os oponentes perderiam algo de igual forma.
Mas a paz só foi mantida jorrando dinheiro, ou melhor deslocalizando-o.
Apenas enquanto há um equilíbrio em que todos ganham, ou onde uns poucos ganham mas controlam completamente os outros.
Os britânicos gostam de dançar, mas apenas o foxtrot e não esta valsa.
Passa-se a ideia de que uma postura crítica ao projecto europeu, (aquele do milho grátis, não este do redil construído) é feita por extremistas.
Existe a esquerda e a direita moderada e responsável. Os criticos são sempre os extremistas de esquerda ou de direita. Um partido neonazi europeísta é baptizado de 'democrata-cristão' só por pertencer ao mesmo credo.
Por mais fascista, idiota ou pérfida que seja a lei europeia sugerida (não precisa de ser imposta, e mesmo imposta no caso português, se a multa for inferior ao lucro que se retira da infracção, não é para ter em conta, veja-se o caso do IA) desde que seja europeia diz-se 'Ámen'.
E assim temos 80% do nosso corpo de leis oriundo de Bruxelas.
Ou seja, a soberania nacional está descentrada do próprio país e o próprio teor de definição da União Europeia é o mercado. O chamado Estado Social europeu está originalmente pensado no Estado-Nação e não na «União» que o utiliza como bandeira de propaganda para aplacar o facto de que a Comunidade Económica Europeia, não deixou de o ser. Isto é apenas uma guilda de feirantes.
Continuo a pensar que o estado da coisa não se deve apenas a uma identificação moral entre «Europa» e progresso civilizacional na cabeça dos portugueses.
Há também uma correspondência a um profundo complexo de inferioridade no nosso modo de pensar, ora tudo o que é externo, tudo o que é estrangeiro é bom, ao mesmo tempo que nos telejornais e conversas de café nos regozijamos porque temos o melhor pasteleiro de Londres, uma das melhores investigadoras no laboratório Y ou um sapateiro numa marca conceituada de chinelos, tudo como exemplos de como o português pode estar entre os melhores, como se isso fosse motivo de espanto.
l)
Em suma, e de acordo com as redes sociais, poucas são as expressões de regozijo por:
a1) realização de um sufrágio universal em que o povo é chamado a decidir o seu destino colectivo, especialmente em assuntos europeus – algo que temo que nunca seja concretizável no nosso país, e isto independentemente de o mesmo ter sido planeado para sacudir o peso crescente do senhor Farage, por parte do senhor Cameron, tendo o tiro saído pela culatra de acordo com as sondagens sensacionalistas que sempre precedem estas votações, decerto sem o intuito de influenciar o resultado final;
a2) rejeição deste 'modelo' europeu por um país que não recebe lições de democracia de ninguém, que não aderiu ao euro para estar no pelotão da frente (vide Guterres) e assim evitando um instrumento de controlo centralizador e de desigualdade entre economias, país que tinha direitos de excepção nos 27;
a3) supostamente, ser respeitada quer a vontade de um povo de sair de uma espécie de federação, bem como ser respeitado o direito de a espécie de federação «deixar» sair um dos seus membros – dando um exemplo ao mundo de como nem sempre os divórcios acabam à paulada.
Ao invés, pelo que é possível perceber nas reacções, é que os malandros dos britânicos estão a ser estúpidos e racistas, e a dar cabo do bem bom para toda a gente e são desde já os responsáveis pela IV Guerra Mundial.
Porque:
b1) vão dar cabo da Europa, essa maravilha que permitiu 60 anos de paz, paga, de fundos de convergência que culminaram em dívida, como se fosse literal essa associação, ou se o clima de apartheid entre membros a Norte e a Sul do Reno não fosse uma espécie de Guerra Fria;
b2) deitaram por terra os ideais europeístas dos fundadores como se cada postador de Facebook fosse um profundo conhecedor de Jean Monnet ou de monsieur Schuman, e como se essa mesma herança não estivesse já morta e enterrada, a fazer tijolo para um estado totalitário;
b3) as motivações britânicas são exclusivamente xenófobas, repetindo de forma insultuosa o mote que os meios de comunicação apoiantes do Brestay, como se a avaliação de metade de um país que sempre soube acolher bem outras nacionalidades e crenças, (leia-se Voltaire), dependesse exclusivamente de motivos mesquinhos e egoístas, desvalorizando por completo a opção de cerca de 17 milhões de pessoas e chegando mesmo ao ponto de utilizar uns supostos dados de motor de busca para ridicularizar a opção dos britânicos querendo passar a ideia de que não sabiam no que estavam a votar ou de que mudaram de ideia no caminho para as urnas – a que se pode responder com outra pergunta, a saber, se foram esses motivos mesquinhos que conduziram para a saída, não foram também mesquinhos os motivos (económicos) para a entrada?
b4) os mesmos que agora criticam, coincidem com aqueles que há uns poucos anos atrás, tinham o credo na boca a cada passo por causa do terror da imagem que dávamos de nós próprios enquano portugueses, nada de incompetentes e estróinas – nada disso- adoramos pensar que somos os «bons alunos».
«Nós não somos a Grécia!» repetia-se o ano passado, e ai de quem ousasse fazer ou dizer algo que nos fizesse parecer mal. Deputados nacionais houve, que foram ridicularizados e criticados por sugerirem calma em relação à questão europeia, ai os mercados, ai a comunidade internacional.
E tudo isto para mascarar o miserável facto que preferimos criticar os ingleses que vão piorar a vida dos 400 000 que moram no UK, em vez de criticar as condições que os forçaram a ir para lá, preferimos martelar contas ou meter criancinhas como ingredientes de hamburguer que passar uma má imagem de nós próprios, temos terror do que os outros pensam de nós.
Não queremos que saibam o que somos na realidade, um país de complexados incompetentes, incapazes de qualquer evolução ou reformulação social, que fecha escolas e deixa os velhos morrer nos hospitais, para salvar o sistema financeiro.
Como podem os outros ter má imagem de nós, os sabujos, se só no Reino Unido vivem 400 000 portugueses (mais 200 000 e suplantavam os retornados das ex colónias), é que os britânicos devem pensar que só foram para lá por causas das praias e do Sol, ou porque adoram a Tower Bridge e peixe com batata frita. Não, não existe miséria em Portugal. Eles saem de lá em vagas migratórias, porque são empreendedores.
Assim percebem eles a nossa miséria, já que nós não o fazemos.
Que bem que se está na Europa.
Brave New Britain