Ana Cunhal, entrevistada 5 anos após a morte dele.
Sem gaguejos nem verniz. Vale a pena ler quem não teve oportunidade. Cortesia do DN
Ana Cunhal só falou por duas vezes sobre o pai, ambas ao fim de cinco anos sobre a morte. Quem a conhece retrata-a como bastante rebelde. Após o funeral de Cunhal peregrinou pelos lugares onde o pai viveu, e rumou depois aos EUA.
Cinco anos após a morte do seu pai, como o definiria?
Um ser humano extraordinário e exemplar. Um homem que sacrificou tudo o que tinha ou podia ter tido para construir um mundo mais justo. Altruísta, honesto, íntegro, carinhoso...
Há cinco anos faria o mesmo retrato?
Claro. Porque seria diferente?
Porque um pai vivo causa-nos outra responsabilidade…
Ah, a tal coisa da responsabilidade. Estará a assumir que por ser filha de quem sou tive ou tenho de me comportar de uma certa maneira? O facto é que nunca aceitei esse tipo de "responsabilidade".
Qual a característica que mais apreciava no seu pai?Todas as suas faculdades humanas e intelectuais.
Alguma de que gostasse menos?Não.
Ele escondia muito a personalidade. Conheceu-o a 100%?O que acaba de afirmar é tão absurdo que se torna quase insultuoso. Como é que o simples facto de uma pessoa se defender contra bisbilhotices e indiscrições se traduz em "esconder a personalidade"? Há quem queira saber tudo, como se a vida privada dos outros fosse uma telenovela. O meu pai nunca escondeu a sua personalidade, o que fez foi não deixar certas pessoas meterem o nariz onde não eram chamadas. E teve muita razão. Eu faço a mesma coisa. E estou segura de que muita gente "normal" faz o mesmo.
Se pudesse retocar a biografia do seu pai em que situação o faria?O meu pai não era grande fã de biografias. Sempre se opôs a culto de personalidade ou qualquer outra forma de atenção desmedida. Compreendo-o bem.
Quando é que entendeu que crescia fora do seu país?Quer saber se eu sabia que era portuguesa? Sempre o soube.
Foi difícil crescer fora do país, ou era natural?Naturalíssimo.
Que memórias mais antigas tem dele?
Férias na praia, partidas de xadrez, muita risota.
Para os portugueses, Cunhal parecia ser tudo menos capaz de fazer rir. Estão enganados?Essa "maior parte dos portugueses" nunca deve ter tido ocasião de ter uma conversa com ele. Porque os outros dirão o contrário.
Ele gostava de desenhar. Fez-lhe alguma história infantil?
Durante os meus anos de infância desenhou-me dezenas e dezenas de giríssimas caricaturas de gatos. Eram inventadas por ele e coloridas a lápis de cores de boa qualidade, daqueles que se diluem como aguarelas se lhes passarmos um pincel molhado por cima. O humor era fantástico, com gatos a patinar ou a tocarem guitarra numa banda de rock. Os gatos tinham uns olhos enormes, muitíssimo expressivos e bigodes a "abanar ao vento".
Ainda em criança, o seu pai separa-se da sua mãe. Foi difícil conviver com a sua ausência?"Presença" não é uma questão de geografia. "Ausência", tão-pouco.
Sentiu falta de ter um pai em casa?
Casais separados, desde que o queiram, podem sempre inventar maneiras de estarem "presentes" para os filhos. Conheci bastantes filhos de casais que viviam juntos, dos quais o pai, mesmo vivendo em casa, estava muito mais "ausente" que o meu. O meu pai fazia tudo o que podia para estar "presente". Tudo reside na maneira de comunicar o amor que sentimos e em fazê-lo frequentemente. Coisa a que ele se dedicou a 200%.
Sentia o mesmo que os outros filhos de exilados políticos, ou ser filha de Cunhal dificultava ou facilitava o estar fora de Portugal?Não sei como é que os outros filhos de exilados se sentiam.
Ficou feliz por voltar a Portugal?Iria finalmente conhecer o resto da família e conhecer o meu país.
O que mais a marcou no regresso?O frenesim pós-25 de Abril. A minha obstinação em continuar a ser uma pessoa como qualquer outra, num ambiente tão politizado quanto excessivamente curioso e agitado.
Sentiu-se a viver outro exílio pelo protagonismo político do seu pai?Quem viveu em exílio foi o meu pai, não fui eu. Quanto a mim, apesar das circunstâncias fora do comum, tive uma infância que me pareceu perfeitamente normal.
A política interessou-a então?Durante muito pouco tempo, quando fui mordida pelo micróbio dos movimentos estudantis.
Foi fácil conviver com o papel do seu pai no início da revolução?Depende do que isso quer dizer.
Que queria implantar um regime comunista em Portugal.Eu tinha apenas 13 anos em 1974 e fazia o que uma criança daquela idade faz... E isso, obviamente, não inclui política.
Os vossos pensamentos políticos divergiam?Para mim, o meu pai sempre foi antes de mais nada o meu pai, mesmo tendo sido Álvaro Cunhal para o resto do mundo. As nossas conversas não eram debates políticos mas as típicas entre pai e filho.
Era difícil ser conhecida como a filha de Álvaro Cunhal?Tenho muito orgulho no meu pai. Nunca apreciei foi o facto de certas pessoas julgarem que tinham o direito ou o dever de me tratarem de uma forma diferente pelo simples facto de eu ser filha de quem sou.
Qual o livro dele de que mais gosta?A Arte, o Artista e a Sociedade. Um livro espantoso que aconselharia a qualquer apreciador de arte.
O seu pai gostava de pintar, mas a maior parte dos seus quadros são desconhecidos. Porquê?Porque era uma pessoa muito modesta, que pintava pelo gosto de pintar. Se calhar muita gente não sabe que, apesar da sua modéstia e de muitas reticências, acabou por autorizar a publicação de uma colecção de impressões dos seus quadros. Chama-se Projectos - Eu gostaria de saber pintar. Era o que ele costumava dizer: "Eu gostaria de saber pintar."
Tem algum quadro dele em casa?Duvido de que os leitores do DN se importem com o que tenho ou não em casa. Se é para se saber se me deixou os seus quadros, é evidente que sim. E revelo isto só para que não se duvide do seu amor de pai.
Porque foi viver para os EUA?Tem a certeza de que isto não é para uma revista social?!
entrevista no DN Gente online, do dia 12 de Junho.
http://dn.sapo.pt/gente/interior.aspx?content_id=1591061
Sem gaguejos nem verniz. Vale a pena ler quem não teve oportunidade. Cortesia do DN
Ana Cunhal só falou por duas vezes sobre o pai, ambas ao fim de cinco anos sobre a morte. Quem a conhece retrata-a como bastante rebelde. Após o funeral de Cunhal peregrinou pelos lugares onde o pai viveu, e rumou depois aos EUA.
Cinco anos após a morte do seu pai, como o definiria?
Um ser humano extraordinário e exemplar. Um homem que sacrificou tudo o que tinha ou podia ter tido para construir um mundo mais justo. Altruísta, honesto, íntegro, carinhoso...
Há cinco anos faria o mesmo retrato?
Claro. Porque seria diferente?
Porque um pai vivo causa-nos outra responsabilidade…
Ah, a tal coisa da responsabilidade. Estará a assumir que por ser filha de quem sou tive ou tenho de me comportar de uma certa maneira? O facto é que nunca aceitei esse tipo de "responsabilidade".
Qual a característica que mais apreciava no seu pai?Todas as suas faculdades humanas e intelectuais.
Alguma de que gostasse menos?Não.
Ele escondia muito a personalidade. Conheceu-o a 100%?O que acaba de afirmar é tão absurdo que se torna quase insultuoso. Como é que o simples facto de uma pessoa se defender contra bisbilhotices e indiscrições se traduz em "esconder a personalidade"? Há quem queira saber tudo, como se a vida privada dos outros fosse uma telenovela. O meu pai nunca escondeu a sua personalidade, o que fez foi não deixar certas pessoas meterem o nariz onde não eram chamadas. E teve muita razão. Eu faço a mesma coisa. E estou segura de que muita gente "normal" faz o mesmo.
Se pudesse retocar a biografia do seu pai em que situação o faria?O meu pai não era grande fã de biografias. Sempre se opôs a culto de personalidade ou qualquer outra forma de atenção desmedida. Compreendo-o bem.
Quando é que entendeu que crescia fora do seu país?Quer saber se eu sabia que era portuguesa? Sempre o soube.
Foi difícil crescer fora do país, ou era natural?Naturalíssimo.
Que memórias mais antigas tem dele?
Férias na praia, partidas de xadrez, muita risota.
Para os portugueses, Cunhal parecia ser tudo menos capaz de fazer rir. Estão enganados?Essa "maior parte dos portugueses" nunca deve ter tido ocasião de ter uma conversa com ele. Porque os outros dirão o contrário.
Ele gostava de desenhar. Fez-lhe alguma história infantil?
Durante os meus anos de infância desenhou-me dezenas e dezenas de giríssimas caricaturas de gatos. Eram inventadas por ele e coloridas a lápis de cores de boa qualidade, daqueles que se diluem como aguarelas se lhes passarmos um pincel molhado por cima. O humor era fantástico, com gatos a patinar ou a tocarem guitarra numa banda de rock. Os gatos tinham uns olhos enormes, muitíssimo expressivos e bigodes a "abanar ao vento".
Ainda em criança, o seu pai separa-se da sua mãe. Foi difícil conviver com a sua ausência?"Presença" não é uma questão de geografia. "Ausência", tão-pouco.
Sentiu falta de ter um pai em casa?
Casais separados, desde que o queiram, podem sempre inventar maneiras de estarem "presentes" para os filhos. Conheci bastantes filhos de casais que viviam juntos, dos quais o pai, mesmo vivendo em casa, estava muito mais "ausente" que o meu. O meu pai fazia tudo o que podia para estar "presente". Tudo reside na maneira de comunicar o amor que sentimos e em fazê-lo frequentemente. Coisa a que ele se dedicou a 200%.
Sentia o mesmo que os outros filhos de exilados políticos, ou ser filha de Cunhal dificultava ou facilitava o estar fora de Portugal?Não sei como é que os outros filhos de exilados se sentiam.
Ficou feliz por voltar a Portugal?Iria finalmente conhecer o resto da família e conhecer o meu país.
O que mais a marcou no regresso?O frenesim pós-25 de Abril. A minha obstinação em continuar a ser uma pessoa como qualquer outra, num ambiente tão politizado quanto excessivamente curioso e agitado.
Sentiu-se a viver outro exílio pelo protagonismo político do seu pai?Quem viveu em exílio foi o meu pai, não fui eu. Quanto a mim, apesar das circunstâncias fora do comum, tive uma infância que me pareceu perfeitamente normal.
A política interessou-a então?Durante muito pouco tempo, quando fui mordida pelo micróbio dos movimentos estudantis.
Foi fácil conviver com o papel do seu pai no início da revolução?Depende do que isso quer dizer.
Que queria implantar um regime comunista em Portugal.Eu tinha apenas 13 anos em 1974 e fazia o que uma criança daquela idade faz... E isso, obviamente, não inclui política.
Os vossos pensamentos políticos divergiam?Para mim, o meu pai sempre foi antes de mais nada o meu pai, mesmo tendo sido Álvaro Cunhal para o resto do mundo. As nossas conversas não eram debates políticos mas as típicas entre pai e filho.
Era difícil ser conhecida como a filha de Álvaro Cunhal?Tenho muito orgulho no meu pai. Nunca apreciei foi o facto de certas pessoas julgarem que tinham o direito ou o dever de me tratarem de uma forma diferente pelo simples facto de eu ser filha de quem sou.
Qual o livro dele de que mais gosta?A Arte, o Artista e a Sociedade. Um livro espantoso que aconselharia a qualquer apreciador de arte.
O seu pai gostava de pintar, mas a maior parte dos seus quadros são desconhecidos. Porquê?Porque era uma pessoa muito modesta, que pintava pelo gosto de pintar. Se calhar muita gente não sabe que, apesar da sua modéstia e de muitas reticências, acabou por autorizar a publicação de uma colecção de impressões dos seus quadros. Chama-se Projectos - Eu gostaria de saber pintar. Era o que ele costumava dizer: "Eu gostaria de saber pintar."
Tem algum quadro dele em casa?Duvido de que os leitores do DN se importem com o que tenho ou não em casa. Se é para se saber se me deixou os seus quadros, é evidente que sim. E revelo isto só para que não se duvide do seu amor de pai.
Porque foi viver para os EUA?Tem a certeza de que isto não é para uma revista social?!
entrevista no DN Gente online, do dia 12 de Junho.
http://dn.sapo.pt/gente/interior.aspx?content_id=1591061