«Para que um governo não tenha o direito de punir os erros dos homens, é necessário que esses erros não sejam crime; os erros só são crime quando perturbam a sociedade; os erros perturbam a sociedade logo que inspiram o fanatismo; é portanto necessário que os homens comecem por não ser fanáticos para merecerem a tolerância. (…) Não é apenas grande crueldade perseguir nesta curta vida os que não pensam como nós, mas não sei se não há demasiada ousadia em pronunciar-lhes a condenação eterna.»
Voltaire, Tratado sobre a tolerância
I
Poucas pandemias são tão interessantes e potencialmente destrutivas, como a pandemia dos pavões morais.
O pavão moral é o mesmo que social justice warrior, ou guerreiro de justiça social.
É um arquétipo da selva urbana, e engloba uma miríade de estilos, que por sua vez classificam inúmeras posturas adoptadas por um número interminável de indivíduos.
Basicamente, o pavão moral, é alguém que paga o seu privilégio na existência, com a exposição das suas penas ornadas de superioridade moral. Serve para acasalar e não só.
Paga a má consciência, isto é, o conforto material e uma vida de relativo conforto (que tornam as pessoas cegas em relação à dor da existência – pois têm de a imaginar, conceber intelectualmente e não sentir a fraternidade com outros, que só está disponível a quem sofre na carne e não apenas no espírito), com a dedicação a uma causa de luta contra injustiças e males neste mundo. No fundo paga o seu conforto, com acções e ideias de caridade adequada.
É também uma forma de pagamento ao justiceiro impotente, aquele que não motivado para vir para a rua oferecer pedras à polícia, tem a forma mais fácil de limpar a consciência, destilando ódio contra o sistema do qual beneficia. Sob este ponto de vista, o justiceiro social é portanto um cobarde, cuja acção preconiza uma desistência de dar o exemplo, preferindo captar legionários para a sua causa, supostamente até atingir uma massa de aderentes que importe para alguma coisa. O justiceiro é o revolucionário lúcido, que sabe apenas que só mudará alguma coisa com o apoio da maioria, e por isso também, reforça o ódio e a reacção aos que pensam diferente dele, pois são não só uma regressão no processo, como uma fácil forma de destilar a tensão acumulada.
II
É mais fácil encontrar este tipo de postura nas falanges da esquerda tradicional, na medida em que esta tem por tradição uma justa crítica ao sistema capitalista, não podendo identificar senão dois campos, o campo a favor, ou o campo contra. Fundamentalismo, portanto.
A direita padece menos destes achaques, pois o peso do ideal é menos pronunciado, por causa do pragmatismo emanado do amor ao capital.
O pavão moral moderno, tem por isso mesmo, grande dose de fundamentalismo porque é influenciado por dois mecanismos de reforço em relação à sua individuação: 1) assinalar para outros em que campo está (como se a coisa ética fosse análoga a paixão clubística ou a um espírito de grupo) e 2) assinalar para si que está do lado dos pobres e desprotegidos.
Em ambos os mecanismos de reforço exprime-se o investimento egóico que cada indivíduo faz nas crenças a partir das quais retira valor para si próprio.
O objectivo é o mesmo em ambos, ser valorizado por outros, ser valorizado por si mesmo, através da composição e reforço da auto-imagem.
O justiceiro social entrega-se amiúde a esta forma de encarar o mundo, fundamentalista, dual e infantil. Tem de o fazer pois a convicção no ideal é tal, que não admite que a idealidade não possa ser correcta ou a forma de alterar o mundo. Que o mundo se não for como o ideal lhe dita, mais vale que não seja.
E se assim é, o justiceiro passa a ver-se a si mesmo, como a solução para o problema, o lado bom das coisas. Reforça essa ideia quando encontra pessoas que alinham na mesma forma de encarar a realidade, esse conceito nebuloso, e raramente procura os que o contradigam, senão para enxovalho e desdém. Porque não procura uma adequação do discurso com a coisa-em-si, mas um reforço entre o externo e a coisa-para-si. Por outras palavras, procura caixa de eco nas pessoas que pensam igual, para confirmar o próprio viés que coloca na interpretação do mundo.
O justiceiro social pode ser encarado como a maior ameaça à democracia, porque 1) é drogado, 2) está preso num feedback loop, e 3) é fundamentalista.
Sendo drogado move-se por intenções egoístas travestidas de altruístas, sem se aperceber. Estando preso num loop de confirmação e reforço, não tem capacidade crítica a não ser que uma situação-limite o puxe para fora do torpor narcótico, e é fundamentalista, porque isso reforçará a sua dose, sendo drogado, ou seja, ganha algo anulando o discurso do outro. A justificação para tal virá depois, desde que funcione.
Eu por exemplo, sendo de esquerda desde que voto, sou acusado de ser de direita, ou pior, um troll, se por acaso me oponho a uma partilha de conceitos sem direito a análise ou contraditório. Por alguma razão, pareço nunca estar na posse dos estudos que confirmam as opiniões, e portanto, na mira dos conformados. Neste ponto de vista, a homogeneização ideológica, em nada se distingue dos jogos de hierarquia na C+S.
III
O pavão moral, reforça desta forma a sua individuação, a saber a forma como se diferencia dos outros, pois sente-se bem com a sua superioridade moral, reforçada por outros que a reconhecem, numa espécie de mente colectiva codependente, onde uma ideia em comum é a de um suposto progresso civilizacional.
Há uma espécie de esquizofrenia na crítica da sociedade ocidental, ao mesmo tempo que se exige a adequação da moldura ética e de justiça (às causas defendidas), por outras palavras, a sociedade ocidental é má e a raiz de todos os problemas, mas, temos de mostrar que somos avançados e moralmente conscientes, pese embora a sociedade ocidental tenha servido de modelo para as outras, a nível das instituições e liberdades individuais.
Ah, mas é o capitalismo a causa de todos os males. Concordo, mas remetendo a Marx, também libertou forças de produção prodigiosas, responsáveis não só pelo conforto material a que o justiceiro social nunca, em rigor, admitirá abdicar, mas também pela gradual obliteração do planeta.
O capitalismo é a forma mais rápida de limar as diferenças entre sociedades, e oponho-me a este sistema de forma total, mas gostava de ver o guerreiro social fazer campanha para a China abandonar as centrais a carvão, por exemplo. Ou reduzir os gases de estufa. É mais fácil fazê-lo no Ocidente.
A ideia de progresso civilizacional é ilusória, existe progresso técnico, nenhuma lei, nacional ou internacional, superará a natureza de primata e as consequências da geografia.
O justiceiro social acredita no conceito progressista da História, não como adequado a uma interpretação do real, mas ad hoc, isto é, a eterna revolução em curso, que faculta sempre uma causa a que se adira, e gente a quem odiar.
O desmantelamento da sociedade de serviços que deslocalizou o trabalho árduo para outras latitudes, implodiria com o conforto material do justiceiro social, urbano e defensor de causas. Remete-se para o ponto I, pois é outra forma de tomar esta ideia de pagamento pelo conforto material obtido pela sociedade que se critica. Pagar a má consciência.
IV
Esta crença acrítica nas ideias com as quais o guerreiro social se acostumou a avaliar, fazem com que qualquer crítica às mesmas seja interpretado como um ataque social.
Se interferirmos com a dose de oxitocina e endorfina do toxicodependente, é o valor próprio e o lirismo do ideal que são atacados, e portanto o indivíduo reage guturalmente, animado até pela ideia de ter encontrado uma causa nobre para a sua peleja, o inimigo, que apenas existe na sua cabeça enformada pelo espírito fundamentalista, acima descrito.
Geralmente inconsciente da mão do instinto titereiro, boa parte dos guerreiros sociais não tem a capacidade quer de introspecção, quer de autocrítica, e portanto reage de forma emocional e não tem paciência para o mais exaustivo exercício democrático, o diálogo.
Tudo o que seja dialogar é visto como uma cedência à idealidade, uma traição a imperativos mentais estabelecidos a priori, e aos quais a realidade, o concreto, se devem submeter.
Por isso, o ódio aos maus, pouco tem a ver com a adesão a uma causa, mas com um processo egoísta de individuação, que visa captar aceitação dos outros e de nós para nós mesmos. Tem mais a ver com um prolongado investir da nossa identidade em determinada ideia, que na adesão a uma projecção (causa) que acreditamos que vá resolver determinado problema.
Se a ligação entre a nossa crença sofre uma ruptura, é o nosso ego que desaba, pois está ligado a essa ideia.
Portanto, o drogado social, foge como o diabo da cruz, a qualquer heterodoxia em relação às suas crenças mais basilares.
V
Estamos pois, perante uma geração de drogados, de bons sentimentos, que não hesitam em lançar os outros na fogueira, para benefício próprio. Na fogueira, no auto de fé, na câmara de gás.
Seja com anulações do outro, bloqueando-o, desprezando-o, ignorando-o ou catalogando-o simplisticamente de acordo com etiquetas infantis que visam reduzir a sua complexidade, seja activamente enxovalhando-o, ou atacando-o com vergonha, fazendo-o recuar na heresia, de forma a silencia-lo, ou normalizá-lo, isto claro, ao mesmo tempo que se apela nas redes sociais à livre expressão do indivíduo contra o sistema que o oprime.
Entre a espada e a parede, o herege fica sem saber quem o oprime mais, o sistema, ou os partidários anti-sistemáticos.
O guerreiro social apenas tem uma ponte com o real, baseada no sistema reticular, e como o caro leitor sabe, o sistema reticular é um sistema psicológico, que simplificado faz com que se nos foquemos em determinado aspecto na realidade, esse conceito nebuloso, encontraremos ou encontraremos mais aquilo em que nos focamos.
Por exemplo, carros vermelhos, se nos focarmos em reparar em todos os carros vermelhos, verificaremos que parece que existem mais carros vermelhos que o que havíamos notado anteriormente. Não existem, o nosso sistema reticular é que traz mais à consciência por meio do esforço consciente para encontrar. Existem os mesmos carros, mas parece que existem mais. Parece que isto tem a ver com a necessidade de encontrar um x na selva, libertando o cérebro de estímulos desnecessários na procura desse x, quando ainda andávamos de gatas na savana.
Portanto, o justiceiro social, é aquele que vai à procura na realidade, de tudo aquilo que lhe comprove a crença. E encontra sempre. Pois passará a dar a ênfase que acha que deve ter o que encontrou, e passa a agir como caixa de ressonância para os outros, manipulando – com boa consciência – a percepção alheia, para os problemas da sociedade, e muitas vezes acentuando a culpa e os maus sentimentos a outros, pobres queimados na fogueira em que são lançados.
Ao mesmo tempo que se queixa das técnicas de manipulação do sistema, o justiceiro social manipula o seu próximo, para ter a sua dose de neurotransmissores.
Mas não se pense que o cruzado espera conversão do herege.
É mais útil um inimigo, que um cristão-novo. Tem de haver sempre uma vítima sacrificial, pois o drogado precisa do contraste, o mundo uniformizado seria a cessação da dose. E por isso as causas sociais nada mais são que modas em vitrines giratórias.
O Casal Ventoso está gradualmente voltando a tempos idos, desta vez não vendendo doses de heroína, mas de indignação.
Voltaire, Tratado sobre a tolerância
I
Poucas pandemias são tão interessantes e potencialmente destrutivas, como a pandemia dos pavões morais.
O pavão moral é o mesmo que social justice warrior, ou guerreiro de justiça social.
É um arquétipo da selva urbana, e engloba uma miríade de estilos, que por sua vez classificam inúmeras posturas adoptadas por um número interminável de indivíduos.
Basicamente, o pavão moral, é alguém que paga o seu privilégio na existência, com a exposição das suas penas ornadas de superioridade moral. Serve para acasalar e não só.
Paga a má consciência, isto é, o conforto material e uma vida de relativo conforto (que tornam as pessoas cegas em relação à dor da existência – pois têm de a imaginar, conceber intelectualmente e não sentir a fraternidade com outros, que só está disponível a quem sofre na carne e não apenas no espírito), com a dedicação a uma causa de luta contra injustiças e males neste mundo. No fundo paga o seu conforto, com acções e ideias de caridade adequada.
É também uma forma de pagamento ao justiceiro impotente, aquele que não motivado para vir para a rua oferecer pedras à polícia, tem a forma mais fácil de limpar a consciência, destilando ódio contra o sistema do qual beneficia. Sob este ponto de vista, o justiceiro social é portanto um cobarde, cuja acção preconiza uma desistência de dar o exemplo, preferindo captar legionários para a sua causa, supostamente até atingir uma massa de aderentes que importe para alguma coisa. O justiceiro é o revolucionário lúcido, que sabe apenas que só mudará alguma coisa com o apoio da maioria, e por isso também, reforça o ódio e a reacção aos que pensam diferente dele, pois são não só uma regressão no processo, como uma fácil forma de destilar a tensão acumulada.
II
É mais fácil encontrar este tipo de postura nas falanges da esquerda tradicional, na medida em que esta tem por tradição uma justa crítica ao sistema capitalista, não podendo identificar senão dois campos, o campo a favor, ou o campo contra. Fundamentalismo, portanto.
A direita padece menos destes achaques, pois o peso do ideal é menos pronunciado, por causa do pragmatismo emanado do amor ao capital.
O pavão moral moderno, tem por isso mesmo, grande dose de fundamentalismo porque é influenciado por dois mecanismos de reforço em relação à sua individuação: 1) assinalar para outros em que campo está (como se a coisa ética fosse análoga a paixão clubística ou a um espírito de grupo) e 2) assinalar para si que está do lado dos pobres e desprotegidos.
Em ambos os mecanismos de reforço exprime-se o investimento egóico que cada indivíduo faz nas crenças a partir das quais retira valor para si próprio.
O objectivo é o mesmo em ambos, ser valorizado por outros, ser valorizado por si mesmo, através da composição e reforço da auto-imagem.
O justiceiro social entrega-se amiúde a esta forma de encarar o mundo, fundamentalista, dual e infantil. Tem de o fazer pois a convicção no ideal é tal, que não admite que a idealidade não possa ser correcta ou a forma de alterar o mundo. Que o mundo se não for como o ideal lhe dita, mais vale que não seja.
E se assim é, o justiceiro passa a ver-se a si mesmo, como a solução para o problema, o lado bom das coisas. Reforça essa ideia quando encontra pessoas que alinham na mesma forma de encarar a realidade, esse conceito nebuloso, e raramente procura os que o contradigam, senão para enxovalho e desdém. Porque não procura uma adequação do discurso com a coisa-em-si, mas um reforço entre o externo e a coisa-para-si. Por outras palavras, procura caixa de eco nas pessoas que pensam igual, para confirmar o próprio viés que coloca na interpretação do mundo.
O justiceiro social pode ser encarado como a maior ameaça à democracia, porque 1) é drogado, 2) está preso num feedback loop, e 3) é fundamentalista.
Sendo drogado move-se por intenções egoístas travestidas de altruístas, sem se aperceber. Estando preso num loop de confirmação e reforço, não tem capacidade crítica a não ser que uma situação-limite o puxe para fora do torpor narcótico, e é fundamentalista, porque isso reforçará a sua dose, sendo drogado, ou seja, ganha algo anulando o discurso do outro. A justificação para tal virá depois, desde que funcione.
Eu por exemplo, sendo de esquerda desde que voto, sou acusado de ser de direita, ou pior, um troll, se por acaso me oponho a uma partilha de conceitos sem direito a análise ou contraditório. Por alguma razão, pareço nunca estar na posse dos estudos que confirmam as opiniões, e portanto, na mira dos conformados. Neste ponto de vista, a homogeneização ideológica, em nada se distingue dos jogos de hierarquia na C+S.
III
O pavão moral, reforça desta forma a sua individuação, a saber a forma como se diferencia dos outros, pois sente-se bem com a sua superioridade moral, reforçada por outros que a reconhecem, numa espécie de mente colectiva codependente, onde uma ideia em comum é a de um suposto progresso civilizacional.
Há uma espécie de esquizofrenia na crítica da sociedade ocidental, ao mesmo tempo que se exige a adequação da moldura ética e de justiça (às causas defendidas), por outras palavras, a sociedade ocidental é má e a raiz de todos os problemas, mas, temos de mostrar que somos avançados e moralmente conscientes, pese embora a sociedade ocidental tenha servido de modelo para as outras, a nível das instituições e liberdades individuais.
Ah, mas é o capitalismo a causa de todos os males. Concordo, mas remetendo a Marx, também libertou forças de produção prodigiosas, responsáveis não só pelo conforto material a que o justiceiro social nunca, em rigor, admitirá abdicar, mas também pela gradual obliteração do planeta.
O capitalismo é a forma mais rápida de limar as diferenças entre sociedades, e oponho-me a este sistema de forma total, mas gostava de ver o guerreiro social fazer campanha para a China abandonar as centrais a carvão, por exemplo. Ou reduzir os gases de estufa. É mais fácil fazê-lo no Ocidente.
A ideia de progresso civilizacional é ilusória, existe progresso técnico, nenhuma lei, nacional ou internacional, superará a natureza de primata e as consequências da geografia.
O justiceiro social acredita no conceito progressista da História, não como adequado a uma interpretação do real, mas ad hoc, isto é, a eterna revolução em curso, que faculta sempre uma causa a que se adira, e gente a quem odiar.
O desmantelamento da sociedade de serviços que deslocalizou o trabalho árduo para outras latitudes, implodiria com o conforto material do justiceiro social, urbano e defensor de causas. Remete-se para o ponto I, pois é outra forma de tomar esta ideia de pagamento pelo conforto material obtido pela sociedade que se critica. Pagar a má consciência.
IV
Esta crença acrítica nas ideias com as quais o guerreiro social se acostumou a avaliar, fazem com que qualquer crítica às mesmas seja interpretado como um ataque social.
Se interferirmos com a dose de oxitocina e endorfina do toxicodependente, é o valor próprio e o lirismo do ideal que são atacados, e portanto o indivíduo reage guturalmente, animado até pela ideia de ter encontrado uma causa nobre para a sua peleja, o inimigo, que apenas existe na sua cabeça enformada pelo espírito fundamentalista, acima descrito.
Geralmente inconsciente da mão do instinto titereiro, boa parte dos guerreiros sociais não tem a capacidade quer de introspecção, quer de autocrítica, e portanto reage de forma emocional e não tem paciência para o mais exaustivo exercício democrático, o diálogo.
Tudo o que seja dialogar é visto como uma cedência à idealidade, uma traição a imperativos mentais estabelecidos a priori, e aos quais a realidade, o concreto, se devem submeter.
Por isso, o ódio aos maus, pouco tem a ver com a adesão a uma causa, mas com um processo egoísta de individuação, que visa captar aceitação dos outros e de nós para nós mesmos. Tem mais a ver com um prolongado investir da nossa identidade em determinada ideia, que na adesão a uma projecção (causa) que acreditamos que vá resolver determinado problema.
Se a ligação entre a nossa crença sofre uma ruptura, é o nosso ego que desaba, pois está ligado a essa ideia.
Portanto, o drogado social, foge como o diabo da cruz, a qualquer heterodoxia em relação às suas crenças mais basilares.
V
Estamos pois, perante uma geração de drogados, de bons sentimentos, que não hesitam em lançar os outros na fogueira, para benefício próprio. Na fogueira, no auto de fé, na câmara de gás.
Seja com anulações do outro, bloqueando-o, desprezando-o, ignorando-o ou catalogando-o simplisticamente de acordo com etiquetas infantis que visam reduzir a sua complexidade, seja activamente enxovalhando-o, ou atacando-o com vergonha, fazendo-o recuar na heresia, de forma a silencia-lo, ou normalizá-lo, isto claro, ao mesmo tempo que se apela nas redes sociais à livre expressão do indivíduo contra o sistema que o oprime.
Entre a espada e a parede, o herege fica sem saber quem o oprime mais, o sistema, ou os partidários anti-sistemáticos.
O guerreiro social apenas tem uma ponte com o real, baseada no sistema reticular, e como o caro leitor sabe, o sistema reticular é um sistema psicológico, que simplificado faz com que se nos foquemos em determinado aspecto na realidade, esse conceito nebuloso, encontraremos ou encontraremos mais aquilo em que nos focamos.
Por exemplo, carros vermelhos, se nos focarmos em reparar em todos os carros vermelhos, verificaremos que parece que existem mais carros vermelhos que o que havíamos notado anteriormente. Não existem, o nosso sistema reticular é que traz mais à consciência por meio do esforço consciente para encontrar. Existem os mesmos carros, mas parece que existem mais. Parece que isto tem a ver com a necessidade de encontrar um x na selva, libertando o cérebro de estímulos desnecessários na procura desse x, quando ainda andávamos de gatas na savana.
Portanto, o justiceiro social, é aquele que vai à procura na realidade, de tudo aquilo que lhe comprove a crença. E encontra sempre. Pois passará a dar a ênfase que acha que deve ter o que encontrou, e passa a agir como caixa de ressonância para os outros, manipulando – com boa consciência – a percepção alheia, para os problemas da sociedade, e muitas vezes acentuando a culpa e os maus sentimentos a outros, pobres queimados na fogueira em que são lançados.
Ao mesmo tempo que se queixa das técnicas de manipulação do sistema, o justiceiro social manipula o seu próximo, para ter a sua dose de neurotransmissores.
Mas não se pense que o cruzado espera conversão do herege.
É mais útil um inimigo, que um cristão-novo. Tem de haver sempre uma vítima sacrificial, pois o drogado precisa do contraste, o mundo uniformizado seria a cessação da dose. E por isso as causas sociais nada mais são que modas em vitrines giratórias.
O Casal Ventoso está gradualmente voltando a tempos idos, desta vez não vendendo doses de heroína, mas de indignação.