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Sê um homenzinho I

7/9/2016

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Primeira parte


A) o vício


As redes sociais tornaram-se num fenómeno fantástico.
Apresentam-se, tal como um inquérito de rua ou à boca das urnas, como um excelente barómetro da vox populi.


Além disso, possuem a capacidade paradoxal de ao mesmo tempo aproximar (ainda que virtualmente) as pessoas uma das outras, isolando-as e polarizando-as em micro comunidades de indivíduos com opinião semelhante.


Todas as semanas surge uma nova polémica por murais dentro, onde se debate ora apaixonadamente com recurso a argumentos, placebos de argumentos ou tentativas de ridicularização chegando geralmente a puros insultos.


A maior parte das achas para a fogueira visam apenas a criação de ondas de consternação, cujo objectivo final não é debater alguma coisa, mas apenas suscitar adesão emocional – emoções, essas anfetaminas naturais que a Natureza deu aos primatas para lhes guiar comportamentos, proteger contra as garras e os caninos, e seduzir para a vida – adesão emocional essa que se serve de uma suposta análise racional para eclodir.


Ou seja, somos viciados em emoções, particularmente quando elas reforçam a divisão infantil do mundo entre 'nós' e 'eles', e em que o 'nós' se identifica com a luz, e o 'eles' com o lado negro.


Que luxúria essa de demonizar o outro.


Se as emoções pudessem ser assimiladas intravenosamente ou por ingestão oral, em Portugal todas as freguesias teriam um CADE ou Centro de Atendimento ao Dependente de Emoções, que proporia administração de emotodona para recuperação do vício que cada nacional tem por uma boa emoção, fresquinha e arrebatadora.


Perante a insuficiência da oferta, e perante a recusa de monopólio estatal, multiplicar-se-iam os quiosques e bancas de rua com seringas coloridas consoante as emoções a injectar, o que aumentaria o peso do sector privado em tal comércio, criando postos de emprego, numa ordem de magnitude tal, que estimo que teríamos a médio prazo metade da população a abastecer a outra metade, em que uma parte seria exclusivamente consumidora e a outra consumidora/empreendedora.


Os defensores da racionalidade firme, hirta, absoluta não estariam isentos deste tráfico, pois também defenderiam esta primazia de forma apaixonada, alheios à sua fraqueza de primatas.


B) Emociodinâmica


As emoções, ou melhor, as formas de exprimir o sentimento das emoções, estão sujeitas a modas, ou para parecer mais sofisticado, paradigmas.
Como primatas temos um conjunto relativamente compacto e determinado, homogéneo entre indivíduos, de emoções disponíveis para sentir, mas talvez nos últimos 20 anos, a que tem obtido maior preferência e destaque é a emoção de sentimento de superioridade moral.


O 'pipl' não resiste a um bom sentimento de que é moralmente superior ao próximo e que esse sentimento de superioridade traduz directamente uma melhor 'essência' como pessoa, que por sua vez só pode significar que o outro ou é um imbecil, ou nem merece o valor da nossa argumentação, pois estamos tão certos e convencidos acerca da nossa certeza e exactidão, que a solidez argumentativa é apodíctica, auto-evidente. De que se lhe segue que o outro se diverge ou discorda, é o inimigo contra o qual se luta.


Por exemplo, se numa qualquer rede social em que se debata a violência contra as mulheres, se se defender a tese de que os homens também são vítimas de violência doméstica, e nem é preciso negar a ocorrência de violência doméstica em relação às mulheres (o que seria estúpido e facilmente exposto como alucinada mentira), apenas mencionar ao de leve que também existem homens que são agredidos pelas parceiras.
O que acontece em grande parte dos casos, é que se numa polarização fundamentalista em que um sexo, ou seja, um conjunto alargado de indivíduos com algumas características em comum, é identificado como opressor, as excepções que ocorrem contra esse mesmo grupo são não só tratadas como algo de excepcional ou de excepção que confirma a regra, como o simples facto de uma excepção ser evocada, aquele que a evoca é imediatamente identificado com o opressor, pois é uma verdade feita que todos os homens são maus e perigosos, e é retrógado negar a vitimização a quem se vitimiza.
Só o facto rebelde de não se aderir à ladaínha geral, o quer que seja que ela envolva, faz com que cada sujeito mais afoito a evitar o politicamente correcto que compõe o Zeitgeist hodierno, assume automaticamente a sua culpa ante os inquisidores de serviço.


Ou seja, a facilidade com que qualquer indivíduo se identifica com as suas opiniões, aliada à vontade irresistível de ser um 'filho do seu tempo' alguém evoluído e sofisticado, o pináculo dos séculos passados criam uma mistura explosiva de estupidez e fundamentalismo.


*) Desde logo porque nós não somos as nossas opiniões.
Nem cada indivíduo tem acesso privilegiado a todo o campo do real.
O acesso à realidade depende das fontes, da experiência e das circunstâncias.
Depende de factores subjectivos e objectivos que tratam os dados recebidos. Ou seja, fazemos a nossa interpretação do mundo, de acordo com a nossa formação e informação, e também deformação (os viés e limites que a mente humana estruturalmente tem).
**) A sofisticação e evolução são preocupações do indivíduo, enquadrar-se num contexto social, procurar nele a sua identidade, e exprimir-se dentro dessas balizas, são formas de exprimir a sua individualidade. Se a moda é tatuagens, então eu convenço-me de que gostava de ter uma tatuagem na testa para me sentir bem e porque os outros me dão algum tipo de atenção também me dá alguma satisfação. Gosto de pensar que por ter uma tatuagem na testa serei visto pelos outros de determinada forma. As modas são como infecções, nas quais o surto ocorre até à contaminação da maioria das células (indivíduos) até se chegar a um ponto em que a expressão da novidade/prestígio, deixa de o ser.
Hoje em dia quase não existe bípede que não seja tatuado, portanto a mensagem passou a ser não de distinção, mas de aniquilação de individualidade. Já não pensam os outros, que sou um born to be wild por ter um menu de restaurante chinês tatuado sob o tríceps.
***) As modas são tanto estéticas, como éticas, e sendo éticas são também ideológicas.
Existem valores que escalam a adesão ao que os indivíduos consideram 'sagrado' ou intocável.
Desde os gregos antigos que sabemos que nada deve ser considerado sagrado ou alheio à cogitação.
O indivíduo hodierno identifica-se quase que como por osmose com aquilo que considera ser os valores da maioria, aquilo que é esperado dele e que lhe garante a satisfação interna de considerar-se evoluído e civilizado por contraposição aos brutos do passado.






Desta forma podemos ler a polarização e a importância da mesma para o indivíduo, como arrepios completos da actividade reflexiva. Os fundamentalistas existem também, além das fronteiras do Daesh.


C) A epidemia


Parece existir uma dinâmica quase paradoxal na cabeça dos portugueses.
Por um lado convivem mal com a opinião contrária à sua. Ou a rejeitam sem mais pela arrogância de ser contrária, ou nem a digerem, pois ouvir o outro é sinónimo de reconhecer-lhe capacidades e de o ver como alvo de respeito, coisa que um fundamentalista não pode fazer.
Se a minha opinião, por mais imbecil que seja, é a medida com que avalio o mundo, e se os outros pensam pior e diferente de mim, não é necessário aprender com eles.


Revela-se portanto a epidemia de falta de empatia que se espalha por cafés, praças e escritórios deste país.
Esta indigência reflexiva (e falta de humildade) acerca do mundo e dos outros, coincide com o facto de que no ano da graça de Nosso Senhor 2016, nunca tanta gente nesta ocidental praia lusitana possuiu graus académicos, décadas de estudo, e acesso facilitado a tanta informação, o que faria supor um florescimento de opiniões mais elaboradas e informadas.


Conviver mal com opinião divergente, e condições para ter opinião própria mais elaborada pode, sob determinado ponto de vista, parecer paradoxal, e completamente lógico.
SE)tenho condições para ter uma opinião elaborada, não devo tomar em conta a opinião de outros, cuja capacidade ou é ligeiramente inferior ou inferior à minha, para pensar o mundo;
E SE)tenho condições para ter uma opinião elaborada, e se as opiniões são tão variadas, cada um pode defender o que quiser.


Tanta gente formada, faria supor que a formação é equivalente, mas não é.
Se um transeunte desejar opinar sobre termodinâmica com um Engenheiro Mecânico, se nada disso perceber, vai evitar fazer figura de urso. Reconhece de forma inequívoca o maior conhecimento do outro nessa àrea.
Mas se esse mesmo transeunte for confrontado com questões de Filosofia, Sociologia ou Antropologia, por mais jargão técnico com que se invistam as respostas, sentir´-se-à capacitado para responder e dar a sua achega, afinal, ele pensa, e o seu pensamento é tão válido como o dos outros.
Regra geral só o saber exacto é considerado saber técnico. O outro saber, é opinião, o seu grau de complexidade depende apenas de jargão e jajão.


Os portugueses estão cada vez mais isolados e auto-isolados.
As redes sociais são a ilusão que confirma esta regra, criam a ilusão de comunidade, na qual opiniões semelhantes se aglutinam em grupos onde se convive mal com a diferença. Isto cria percepções que distorcem um sentido de realidade adulto, pois polariza em «nós» e «eles», e ainda faculta a falsa ideia de que a semelhança é mais homogénea do que realmente é.
Tenho tatuagens na testa, dou-me apenas com gente que tem e adora tatuagens na testa, e portanto encorajo a ideia de que gente com tatuagens na testa são um grande grupo, tanto quanto penso que tenho mais em comum com gente que tenha esse gosto, que com outro tipo de gente.


Resumindo, a malta polariza-se e organiza-se de acordo com a sua opinião.
Estamos perante a legião de filodoxos.
No passado não existiam livros suficientes para ler à luz da vela.
Hoje em dia a 'net' permite obter informação para justificar e legitimar tudo aos nossos filodoxos.
Desta forma, a formação de opinião e a sua reconfirmação passam a depender menos do acesso à informação, do que do desejo de legitimar a informação ou opinião de que já se dispõe.


D) Posição ganha é para ser mantida


Quem quer que seja que deseje defender a opinião de que o Planeta Terra é o centro do Universo e de que o Sol gravita em torno da Terra, pode tentar encontrar informação na internet que o confirme, se bem que em quantidade inferior à da hipótese heliocentrista.
As paixões arrastadas por geocentristas e heliocentristas nada são por comparação, com aquelas que emanam de assuntos menos técnicos como por exemplo a importante questão acerca do grau masculino da palavra que denota o astro-rei, 'Sol'.


As falanges do politicamente correcto protestam contra esta cedência ao chauvinismo, a conotação de um astro que é de todos e todas, mas que pelo nome está condenado a ser associado à opressão da sociedade patriarcal, que se apoderou do discurso astronómico monopolizando para a ideologia machista a maior e mais próxima reacção termonuclear, que seria bem mais sensível e menos lesiva da pele na praia se o género do Sol fosse feminino e se chamasse por exemplo «Sola».


Uma pequena minoria, que se revoltou contra a opressão dos anti-opressivos riposta com petições e vigílias que defendem a alteração da designação do planeta Terra, numa demonstração além de dúvidas, da reacção contra a opressão matriarcal insinuada na linguagem que designa as coisas.


Adoramos uma boa discussão.
Especialmente se ela permite ou a humilhação e superiorização sobre o outro, ou um registo pacífico e superficial no qual nada de relevante seja debatido.
Isto não é incoerência, é apenas expressão do desejo de não desejar nenhum arrasto de personalidade, nenhuma aventura para fora da sua zona de conforto.


Somos completamente viciados em vitimização / superiorização.
Com elas alimentamos a fornalha emocional da nossa individuação.


Ninguém minimamente saudável de um ponto de vista psicológico, pode negar sofrer influências do meio social e cultural em que vive.
Uns e umas, terão consciência do lugar comum e convencionalidade das suas opiniões, outros e outras nem por isso.


Defender a opinião da moda é uma excelente forma de comprar a aprovação dos outros.
Entra-se num círculo de palmadinhas nas costas, apoiamo-nos uns aos outros enquanto as nossas opiniões se confirmarem entre si.
É pá e toda a gente gosta de um carinho.


E nos tempos que correm é tão fácil ser-se hipócrita atrás de um monitor, que seria um completo desperdício perder essa oportunidade.


O nosso admirável novo mundo actual, faculta o insulto fácil e pronto atrás da segurança de um teclado e como substituto de um argumento pensado e partilhado cara a cara.
Para quê estar-me a maçar com o complexo, difícil e que coloca em causa aquilo que penso acreditar, se é bem mais fácil chamar este gajo de imbecil e gozar com ele, ou tentar com que passe por ridículo, recorrendo à vitimização e ao lugar comum?


Não concordas com ele?
Não estás para ler 3 linhas de texto sem imagens ou desenhos?
Prepara os dizeres brejeiros e jocosos, são a melhor forma de o acossar e calar.
Não queres dar crédito público à posição do outro? Chama-lhe nomes.
Fechá-lo em etiquetas feitas, comunista, machista chauvinista, retrógrado, troll, pessimista, vampiro emocional, insinua que desconhece do que fala.
Quando apertado só o ganhar a discussão interessa, de preferência humilhando o interlocutor.
Não tens pachorra para perceber de onde vem o outro, de lhe dar crédito na elaboração e expressão dos seus raciocínios, e ainda usas isso para o vexar. Enquanto um perde tempo a exprimir-se de forma a ser entendido, o outro procura de forma ardilosa formas de o entalar.
Um preocupado em ordenação racional das palavras, outro na subversão desse esforço apelando a atalhos como a manipulação dos afectos e da retórica que bloqueia a clareza argumentativa.
A intenção nunca é a troca de ideias, apenas o ganhar a discussão, especialmente nas redes sociais, pois a auto-imagem do indivíduo é escrutinada por vários outros, e como o seu amor-próprio depende daquilo que pensa que os outros pensam dele, temos a caldo das emoções entornado.
Nesta manipulação saloia, quem se preocupa na troca honesta de ideias perde quase sempre pois não sabe funcionar ao mesmo nível.






Segunda parte


E) a insustentável inexistência do ser


Um dos mais fecundos temas de motivação dos espasmos emocionais é a suposta guerra dos sexos.
Suposta, pois só existe na cabeça das mulheres e dos hominas (metade homens e metade vaginas).


O homem, enquanto sexo ou género viçoso, orgulhoso da sua condição já não existe.
O mais aproximado que temos é a descrição das feministas dos homens, como brutos, porcos maus, em reedições pelos anos dos vilões dos spaghetti westerns.


Quem tenha atenção à máquina de propaganda comercial, o estereótipo masculino oscila entre o tolo submisso e adorável, ou o bruto desprovido de sofisticação, incapaz de sobreviver na selva urbana sem a superior orientação da companheira.


Lugares comuns como a ideia de que lá em casa manda ela, que está sempre certa, de que as mulheres têm um acesso privilegiado à realidade com o seu suposto 6º sentido, contribuem para a caracterização dos personagens masculinos que o marketing nos impinge, como seres menores e incapazes, autênticas máquina numa perpétua busca de aprovação.


É este o paradigma do homem hodierno.
É este o paradigma da sofisticação, a moda, o objectivo a ser-se.


Alguns reagem, de forma igualmente extremista, generalizando e tratando de forma odiosa as 'mulheres'.
Os piores exemplos servem para caracterizar o todo, «Todos os homens são porcos chauvinistas e violentos.» e os melhores exemplos são descritos em folhetos largados via aérea por bimotores a hélice, onde aparecem as formas de comportamento aceites, ser dócil, submisso, abdicar da sua expressão individual fora do que é permitido (como urrar com futebol, encharcar-se de cerveja com os amigos igualmente tolos, ou ser escravo do seu desejo por gadgets infantis) e a mensagem implícita (que é para mim a genialidade da manipulação do século XX) de que a contricção tem de ser absoluta e não regateável – isto é – muito mal foi feito às mulheres no passado, qualquer homem que o seja tem de assumir por si essa culpa e pagar o preço, a submissão.
Se isso não acontece, se o indivíduo acha que é um preço alto a pagar, entra em cena o plano B.
Exercer controlo através do acesso à vulva. Queres um orgasmo usando o meu corpo? Submete-te.




Os rapazes já não se regozijam de terem nascido rapazes.
São as mulheres que o confirmam. Invariavelmente escutamos as amigas, as ex namoradas, as familiares queixando-se que já não existem homens de jeito, apenas entidades amorfas e bípedes sub humanamente abjectas no que diz respeito à sua expressão de individualidade, que oscila entre a violência física e psicológica com outros (especialmente mulheres) e a codependência de busca incessante de aprovação dos outros (especialmente de mulheres também).


Como já foi dito, cada vez mais a inteligência social se define, não pela capacidade empática de ocupar por empréstimo momentâneo o lugar do outro – percebendo-o – mas pela aceitação budista do direito inalienável do outro em ser imbecil.
Imbecilidade e fundamentalismo andam de mão dada. Se entendermos o fundamentalismo como a negação do discurso do outro, por força de verdades não regateáveis de «nossa» autoria, a imbecilidade partilha esta inexistência militante de capacidade reflexiva.
O fundamentalista nega o discurso do outro, o imbecil obtem comprazimento na sua clausura, conforto na sua aversão. O fundamentalista é parte agente, age em nome das suas crenças, o imbecil reage ou não age. A sua acção é somente defender o seu direito a não agir, ou seja, a manter a sua crença, colocando-a em lugar de igualdade de direito, por mais abstrusa que seja. Independentemente do conteúdo, mas não independentemente da aceitação social desse mesmo conteúdo.
Epá, é a minha opinião tens de respeitar. Seria mais correcto dizer «Eu sou a minha opinião, tens de me respeitar.»
Cada um identifica a opinião própria não como obra em progresso, mas como resultado incontestável de individualidade.
A malta não tem medo de ter uma opinião errada, tem medo de ter uma opinião «correcta» que possa ser publicamente ridicularizada.
Epá, é a minha opinião tens de respeitar. Se eu digo que o Sol gravita em torno da Terra, exijo respeito pela minha pessoa.
Não é o conteúdo que é realçado, mas a proveniência.


A melhor forma de provar este sabor, é manifestar discordância com a tese da opressão patriarcal.
As verdades feitas do nosso tempo, como as de outros tempos passados, são percutores perfeitos para as nossas emoções, para amar e odiar por causa delas, para dar a vida e a morte, para discutir bola enquanto milhares morrem afogados, ou para bloquear alguém que criticou no nosso mural a nossa disponibilidade para usar uma rede social como «o meu querido diário».


Dude escreveu:
«Não concordo com a tese de opressão patriarcal.»
feminista_empedernida escreveu:
«Porco fascista!»
homina_de_serviço escreveu:
«Por causa de cavalgaduras como esta é que o país não vai para a frente!»
moralizador_mor escreveu:
«Inacreditável como no século XXI podes dizer isso, depois do massacre dos Incas, de Treblinka, e da 2ª Guerra Mundial, se és branco, europeu e homem, tens de assumir todos os crimes de todos os homens europeus brancos que cometeram crimes antes de ti. Assumir a culpa implica não poderes discordar de qualquer tese que centre qualquer interpretação fora de um contexto acusatório ou de vitimização.»
bombista_cirúrgica escreveu:
«Incrível haver gente assim, anedótico. Palhaço/retrógrado/atávico/ridículo/ouqualqueroutroinsultogratuitoaopinadoresdivergentes»
O exercício acima simulado, é um esquema básico da estrutura de qualquer debate numa rede social, que se sirva da internet, esse meio fantástico cujos «inventores» sonharam como veículo de troca de ideias.


F) Feios porcos e maus


Ah porco chauvinista.
Malhar no indivíduo masculino graças à verdade feita da unívoca interiorização da culpa milenar por causa da opressão da mulher exercida por gerações de homens passadosque o fizeram de forma deliberada e orquestrada, a coberto de longas noites de conspiração em húmidos subterrâneos, nos saudosos tempos em que nenhum homem era oprimido, por contraposição ao monopólio feminino da submissão. Cada fundamentalista evoca a sua experiência pessoal para legitimar o opróbio milenar que as gerações de homens passados exerceram.


A generalização funciona bem até certo nível.
As mulheres são as vítimas da História, e os homens – esses malandros – só queriam guerrear, pilhar e violar. O mundo seria tão mais cor-de-rosa se as mulheres mandassem mais.


A rainha Victoria em relação à escravatura é tão mais amena retratada como mulher de Estado no seio de tensões terríveis, mas se fosse homem, era um porco imperialista.
A condessa Isabel Bathory aparece como excêntrica e mártir pela sua beleza, ao passo que Vlad Tepes é retratado como um déspota atroz e representante do Reino da Testosterona.
Ambos eram assassinos, mas uma mão feminina num punhal confere mais doce à violência.


O homem bate na mulher, é (correctamente) conotado como criminoso violento. Uma mulher que agride o marido, é igualmente criminosa, mas a tal vox populi de taberna, não raras vezes lhe encontra justificações para o mesmo acto, foram as desilusões, o colapso nervoso decorrente do azar na vida, etc. como se supostamente o homem tivesse, por definição do seu género, de ser um semideus quase isento de defeitos.


Valha-nos a letra da lei, que considera criminoso aquele que agride outro, independentemente do seu sexo.


Há uma maré feminina no feminino.
Estudos de género nas faculdades cujo foco de estudo é entendido não como segregacionista mas como clarificador do papel das mulheres na ciência, partindo do viés metodológico de que sem sombra de dúvida, todos os contributos de mulheres na ciência ou não receberam o crédito 'devido' ou sequer o reconhecimento.
Na história da ciência, podemos evidenciar também a falta de reconhecimento dos cientistas carecas, sempre relegados para segundo plano em relação aos colegas pilosamente mais bastos.
A História faz-se a partir do que se quer mostrar.


Passa a ideia, acredito que de forma não intencional, que as mulheres sempre foram ou parte passiva em tudo o que é mau e activa no que é bom, suportando estoicamente os demandos belicistas e racionalistas dos homens, que as dominavam e oprimiam. Passa a ideia de que o progresso tecnológico foi feito apesar da existência de homens, apesar dessa sombra masculina asfixiante, ansiosa de retirar protagonismo à Gaia incauta.


Se não aderimos a esta narrativa, se não a defendermos, fazemos automaticamente parte da falange patriarca, logo somos o inimigo, ou resquícios de qualquer coisa ultrapassada que urge extirpar da existência. Sem tréguas. Sem perdão.


De lado fica a coerência lógica, e qualquer narrativa não concêntrica, que passa por excêntrica aos olhos de cada imbecil.
Lógica, essa coisa aparentemente masculina que suportou a sociedade tecnocrata contra a qual as «mulheres» sempre lutaram, mas que se esforçam agora por fazer evidenciar o contributo.
Leva a que se pergunte, então se a história é o relato da sociedade patriarcal opressora, evidenciar os feitos das mulheres nos estudos de género, não é identificar o feminino com a opressão que se critica?


Ah, mas nem tudo o que é civilizacional é mau, há muita coisa boa.
O melhor claro é responsabilidade das mulheres. E só não é melhor porque elas não têm mais poder.
Voltemos a questionar, as mulheres dos esclavagistas transatlânticos amoleceram os corações dos seus esposos, contribuindo para a redução de indivíduos escravizados?
Sofreram em silêncio guardando apertado no peito sob o espartilho, o sofrimento adivinhado dos negros?


Ou beneficiaram de igual forma que os seus companheiros, na exploração desse comércio?
As esposas dos donos de Treblinka provocaram graves conflictos morais nas mentes dos algozes?


Como se pode continuar a contribuir para o odioso acto de perpetuação da culpa através das gerações, por causa da mordaça patriarcal, quando a mulher lucrou de igual modo nas contas gerais de perpetuação e expansão dos genes?


O discurso ou sequer insinuação que culpabiliza o homem, por tudo o que é mau e rasteiro é apenas um discurso de poder ao mesmo tempo que branqueamento da responsabilidade das «mulheres» pela história violenta e velhaca que é responsabilidade da espécie e não do género.


Por isso encaro o discurso dominante como uma moda, e não como consequência de um avanço científico das ciências sociais.


G) A boa, a má e a vilã




Partilho 3 exemplos observados em 1a mão.


1) Finais dos anos 90, aula de Antrologia e Cultura, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, uma docente alerta para a necessidade de escapar ao determinismo linguístico machista, que promove a desigualdade de género no seio do protagonismo da nossa espécie Sapiens sapiens – como? Evitando denotar a espécie humana no seu geral como o «Homem», mas como «Homem/Mulher»;


2) Primeira década do novo milénio, aula de História da Expansão Portuguesa na mesma Faculdade, dois discentes acometidos de auto-flagelismo primário ridicularizavam a explicação dada pelo docente acerca da progressão marítima portuguesa nas costas da Guiné, emitindo juízos de valor através de comentários jocosos, pressionando o docente a basicamente encolher os ombros e desculpar-se por aquela crítica aberta à «mentalidade» e pathos português e implicitamente à globalização.
Não pude resistir e perguntei aos argutos discentes se tinham noção de que estavam a emitir juízos de valor de forma pouco científica, sobre uma sociedade na passagem da medievalidade à Idade Moderna, a partir de uma mentalidade pós-industrial.
Perguntei também ao docente se estávamos numa aula de História ou num auto-de-fé na medida em que não acreditava eu ter alguma coisa a ver com os portugueses que comerciavam escravos e/ou praticavam actos de canibalismo para com os negros em casos de naufrágios, que nada tinha a ver com esses portugueses semi medievais que dividiam os lucros do tráfico esclavagista com os chefes tribais negros que fomentavam esse mesmo tráfico.
Sim, parece que nem eram os portugueses responsáveis pela parte de leão do comércio de escravos.


3) Numa aula de História de Portugal Moderno, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, um docente, historiador célebre, confessa-se acérrimo feminista.
«Oh diabo!» pensei.
Mas feminismo não é uma espécie de racismo?


Posteriormente aprendi que existem duas grandes teorias nesta temática.
A primeira é a teoria do cobertor, e a segunda é a teoria do mama todos por igual.


A teoria do cobertor defende que no caso da defesa dos direitos das mulheres, essa mesma defesa não pode ser feita sem limitação ou subtracção dos supostos direitos dos homens.
Da mesma forma que um casal luta no Inverno por um cobertor demasiado diminuto para os dois, há sempre um que fica ao frio.


A teoria do mamam todos por igual pretende fazer estender os mesmos direitos a ambos os géneros.


Relembro que os 3 exemplos acima citados ocorreram em ambiente universitário das chamadas ciências humanas, onde existe uma desproporção avassaladora entre o número de discentes de sexo masculino em menor número, em relação aos discentes de sexo feminino.
Espelham bem, na minha opinião a cultura de vitimização e feminização transversal na nossa sociedade e mentalidade.


Algumas figuras da nossa cultura pop como por exemplo a senhora Joana Amaral Dias, não se inibem na emissão de juízos claramente inquinados e parciais sobre esta temática. A referida senhora, implicitamente exprimindo uma suposta superioridade intelectual feminina, em declarações televisionadas, disse que não compreendia como é que as mulheres tinham ainda pouca expressão em lugares de «topo» visto que terminavam em maior número (e qualidade?) os cursos universitários.
Este tipo de declarações, além da importância e da falta de necessidade de refinamento estatístico mostram que é causa de surpresa geral que os broncos dos homens (mais burros ou menos motivados) consigam dominar milenarmente as mulheres, se nem cursos universitários de 3 anos conseguem terminar.


Como é que a sociedade patriarcal conseguiu dominar o mundo até hoje mesmo em tempos que nem homens nem mulheres sabiam ler ou escrever. Só mesmo através da força. E da conspiração colectiva.
Outro motivo de surpresa reside no facto de nesta sociedade industrial, os papalvos dos homens serem os maiores criadores de artefactos que visam aliviar a escravidão do alvo da sua sanha opressora.
Esses tiranos pérfidos e velhacos afinal parecem ter a maior vontade de manter as «mulheres» numa gaiola dourada, investindo energia criativa e esforço criando condições que aumentem o conforto e bem estar das fêmeas, como seja o caso dos electrodomésticos, inventados em grande parte nas Universidades onde o estrogénio não abunda, e onde a estatística demográfica da senhora Joana Amaral Dias não se aplica.


Mas temos de concordar com essa ideia sussurrada mas pouco assumida, de que as mulheres, apesar de uma caixa craniana inferior para a mesma estrutura cerebral, conseguem mais inteligência. A testosterona deve ter alguma influência nisso. Então não é que os burros dos homens metem-se em guerras após guerras, andando entretidos a morrer, levando a que no século XX a mulher saisse do lava loiça para a fábrica e para o escritório podendo assim criar o balanço para se tornar independente financeiramente?
Como explicar a burrice dos homens que através de um homem de 26 anos em 1951, fez a síntese da Noretindrona, abrindo assim caminho para a pílula contraceptiva que viria a dar às mulheres finalmente, controlo sobre o seu corpo, controlando a concepção? Como explicar que foi o homem no laboratório que mais contribuiu para a liberdade das mulheres desde que Eva trincou a maçã?


São tão broncos estes homens, e mal organizados, que nem conseguem manter uma conspiração mundial milenarmente egrégia.


Ah, é porque eles dominam os centros políticos e a Academia.


Não se percebe como é que este género que conspira contra as mulheres, não é unido (senão para conspirar) e se lança aos milhões para a sua aniquilação no Somme ou em Estalinegrado.
Género estranho, o masculino.




H) Os géneros são iguais, mas uns são mais iguais que outros


O paradigma corrente, ou moda, caracteriza-se por uma noção de igualdade que implica uma vitimização, e não há vitimização sem flagelização contínua do opressor.
Sem remissão. Sem perdão. Sem excepção.
Por isso o feminista é fundamentalista. Por isso o fundamentalista é imbecil.


Eu penso que não se deveria pactuar com este paradigma de «feminismo».
Mas por motivos de impregnação e dimensão, o indivíduo vê-se como lesma em salina à procura de cana de açúcar.
Apenas pode o indivíduo resistir e encontrar forma de lidar com as pressões e insultos daí resultantes.
Não há forma de se soltar, senão exprimindo-se a si mesmo, individuando-se, independentemente das opiniões de mulheres demasiado zelosas e de hominas.
O «feminismo» de Verão que é dogma hoje em dia, visa substituir uma suposta opressão por uma opressão imposta. Imposta e auto-imposta.
O indivíduo tem de redimir-se de ter nascido com pilinha.


Jovem, tens pila e o azar de ter testosterona «a mais»? 500 Pais Nossos e 1000 Avé Marias.
Livra-te e arrepende-te desse pecado.


Como já havia sido mencionado, ninguém tem de se culpabilizar ou de ir contra a sua consciência por causa de crimes cometidos na costa da Guiné ou se os números da violência doméstica contra as mulheres são aterradores.


Cada indivíduo é responsável por si e a lei enquadra os excessos tolerados e não tolerados.
Que tenho eu ou o meu género a ver com dezenas de criminosos violando mulheres na Índia ou no Brasil?
Que culpa tem qualquer homem psicologicamente saudável em relação a grelhados de bruxa ou à cultura de brincar com lâminas e clitóris?


Ninguém tem de assumir como sua a responsabilidade em crimes de outros, ou assumir culpa por não ter nascido com o poder de decisão sexual que vem de fábrica com uma vagina.




Seria bom que cada indivíduo assumisse apenas o esforço duplo e continuado de :
1) tratar qualquer próximo de forma igual independentemente do seu sexo;
2) resistir tanto quanto a sua observação lhe permite, à ideologia de uma sociedade hipersexualizada e hipócrita, que mistifica a juventude quase infantil, de corpo e de espírito, que uniformiza o poder sexual na mulher ao mesmo tempo que mercantiliza o seu corpo em ciclo de violação do ponto 1.


Esta não é a igualdade que a maior parte das mulheres quer.
Não tenho de ficar ressentido com isso.
Ficava ressentido quando tinha como crença que as raparigas são feitas de doce e algodão, e os rapazes de pedras e cobras.


Cada vez se torna mais evidente o essencial do acessório, e o fascínio de uma personalidade bem torneada torna-se cada vez mais apelativo.
Não há nada de mal em procurar tirar partido das vantagens que se tem na vida.
Pessoas que nascem com contornos dérmicos apelativos sob boa estrutura óssea devem aproveitar a sorte que lhes coube.
Mesmo que isso implique que cada vez mais as mulheres bonitas, (a maior parte pois a beleza é vulgar) interiorizem a ideia de que por alguma ignota razão os homens e o mundo lhes deve vassalagem e admiração.


Chamo a isto a mentalidade de Prometeu (desconheço um Prometeu feminino). Os ossos vão para os deuses, os quais tememos e odiamos por estarmos submissos a eles.
A carne boa fica connosco (humanos).


No caso das mulheres, além de uma superior inteligência, como suspeitou Joana Amaral Dias, no seu comentário, conjuga-se também uma maior esperança média de vida.
Um género que é mais inteligente e mais resistente quer às doenças quer à dureza da vida, só pode receber admiração por nessa sorte que lhe cabe, reivindicar mais e melhor parte do presunto da vida.


Por exemplo, os tais cargos de «topo». Nunca vi uma manifestação de mulheres exigindo o direito de desempenhar os trabalhos mal pagos e considerados que a maior parte dos homens desempenha, mas posso estar enganado pois sou pouco viajado.


Há outro mito que merece análise, acerca da suposta superioridade espiritual, dos sentidos ocultos, da intuição, da maior empatia da mulher em relação ao homem.
Aqui o espanto atinge o seu zénite.
O género mais inteligente, mais resiliente fisicamente, com ferramentas conceptuais e não conceptuais para tratar a informação do ambiente em que está inserido, sucumbe vítima única e exclusivamente por ter menos força física?
Tem de facto o homem as costas mais largas, literalmente e não só.


O mesmo homem que lhe paga bebidas no bar, lhes abre as portas, lhes faculta o lugar no autocarro cheio, ou que lança o casaco sobre a poça de lama para ela não enlamear os delicados pés.
Porque é cavalheiro, e porque ser cavalheiro é o que o homem deve ser, abdicar de si em detrimento de um sexo mais fraco (!), porque é de bom tom.


Quantas vezes ouvimos nos media que morreram n pessoas em tal catástrofe, entre as quais x mulheres e y crianças, como se o facto de o sexo ou a idade aumentassem ou tornassem mais trágico a morte de uma data de gente em determinada catástrofe.
Também já ouvi relatos sobre a morte de x pessoas e y jornalistas, como se pelo facto de ser jornalista de profissão mereça destaque em relação aos outros cadáveres.
É o mundo que temos, parece.
As pessoas teoricamente são todas iguais mas umas mais iguais que outras.
As conversas de café (as tais baseadas exclusivamente na experiência e opinião própria que tem de se respeitar porque é a dignidade social do orador que está em jogo) vão dar sempre ao mesmo:


a)os homens são uns cabrões querem é sexo, boa vida, fazem os filhos, e depois dão à sola e as mulheres é que os criam;
b)sempre que podem cometem adultério, e são os totalistas da violência doméstica.
Pouca gente debate, ou sabe sequer que apesar de ser um flagelo, inaceitável, uma tragédia, a violência de género, contra as mulheres, é ainda assim uma reduzida parte no bolo da criminalidade violenta.
Existe também criminalidade no feminino, por isso existem prisões femininas.


Que se saiba, quer homens quer mulheres, mentem, manipulam, cometem adultério, matam os filhos, abusam de crianças.


Já incorri no erro de entrar no jogo da culpa, de um género inteiro, como forma de exorcizar as minhas falhas enquanto pessoa. E é isso que eu vejo na maior parte dos discursos de poder feministas, e até no meu monólogo interno.
Paguei por isso, até descobrir que também existiam mulheres feitas de pau e pedra.
E homens de algodão e doce.


Penso, e é essa a razão desta primeira parte de texto, que assumir cada um e uma, a firme resolução de não contribuir para o peditório desta sociedade comercial que se aproveita de estereótipos de supostas guerras entre sexos, para continuar os níveis de consumo, vamos continuar no mesmo registo de estupidez.


Enquanto cada um ceder ao mantra da vitimização, do tirar vantagem sem alguma elevação de espírito, vamos todos cair no fundamentalismo e na imbecilidade a que isso conduz.
Continuar a espalhar pelo mundo (que nos dá palmadinhas nas costas por isso) que o Sol orbita em torno da Terra, que se devia chamar «Sola» em nada vai adiantar senão revelar o ressentimento latente em cada indíviduo.


Actualmente já não acho graça a esse discurso e tenho pouca paciência para ele.
Assim que escuto alguém falar acerca do quão mau as mulheres o têm (os azares da existência), o meu limiar de atenção reduz-se e esforço-me por não pensar judicativamente acerca da sofisticação mental do orador ou da oradora.


Não é negar a ocorrências de abusos e dramas, e violência na História.
É não capitalizar de forma oportunista sobre eles.


Tu, se gostas de ser vítima, dá-lhe.
Não te esqueças contudo que o teu opressor é tu.






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Considerações éticas como expressão de gosto

8/17/2015

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            O mais interessante, e trágico, de constatar nas várias experiências com o homem e a mulher comuns, que a sociedade burguesa dos convívios, com caracóis e cervejada ou nas reuniões sociais em que os pater familiae trocam experiências de sucesso, é a forma como interiorizam e assumem como normal os usos e efeitos da propaganda.

O maior truque do diabo não foi convencer toda a gente que não existe. Foi meter toda a gente a convencer toda a gente de que ele não existe.

O homem e mulher vulgar, isto é, a mole de indivíduos com que trocamos a experiência de viver, geralmente defendem a pés juntos que as artes da propaganda não surtem grandes efeitos nas suas mentes emancipadas, e pior, que é normal as empresas recorrerem às indústrias do convencimento para aumentarem as vendas. Que é assim que o nosso sistema funciona, que nada há além dele, que se assim não fosse a roda de engrenagem parava e voltaríamos ao Paleolítico.

É curioso que esta gente espalha anúncios pelas redes sociais exortando a um novo mundo, que divide o lixo por contentores coloridos separados por essências materiais, e muda de plasma televisivo de dois em dois anos, não querendo saber se os velhos e obsoletos utensílios vão parar a países de 3º mundo, deixando lá os plásticos e aproveitando os materiais nobres que voltam a alimentar a indústria primeiro mundista.

É compreensível, pois esta gente, durante algum tempo e embora muitos não se apercebam, ficou com a boa mão de cartas, no jogo da bisca da vida.

Lavar o automóvel como ritual rotineiro, não se compadece com pensar que dois terços do planeta não têm acesso à água potável.

Os protestantes misturaram o conceito de culpa com o de trabalho para a redenção e temos o neoliberalismo a anunciar aos 4 ventos, de que a miséria de uns é sua própria culpa, quem é pobre ou subdesenvolvido, é-o por sua culpa. Se queremos sair da miséria material e espiritual, devemos trabalhar mais. Nada de novo debaixo do Sol, a não ser ser este o paradigma geral, em boa parte para comprar a má-fé a troco do conforto a prazo que vamos tendo.

Não levantar ondas, cooperar, resignar com o mundo tal e qual como parece ser, mais do que necessidade, passou a profissão de fé. Fora deste nosso conforto, o que existe senão o caos?

Coincidência formidável, o nosso conforto coincidir com a última esperança para a Humanidade e civilidade.

Enunciar portanto a filha de putice do vale tudo da propaganda 'comercial' é um atestado de imbecilidade, nas jantaradas da gente adulta e responsável.

O emissor em regra arrisca-se a ser considerado uma raridade, uma ave-do-paraíso, ou relegado para a função de mija-na-parada, a leste do que é a interpretação geral do mundo, dessa gente responsável.

E aqui que ninguém nos ouve, quem pode provar os mecanismos em jogo, as intenções em acção, os conteúdos das cadeiras dos cursos de marketing aplicados à letra, senão aqueles pagos para os colocar em execução?

E no entanto, espalha-se a ideia de que o consumidor médio é emancipado ou adulto o suficiente para deslindar e cogitar sobre estes conteúdos, criados e estudados por especialistas para produzirem determinados efeitos.

Esta festa no lombo, que consiste em dizer que cada consumidor tem a capacidade crítica necessária para não se deixar influenciar pelo marketing, é um ponto-chave em relação ao qual esse consumidor espalhará com soberba, a sua capacidade por via das suas palavras e acções, a todos aqueles que achem a coisa um bocado estranha e inaceitável. Ninguém coloca limites, e a boçalidade espalha-se como um vírus.

Tudo vale, vale tudo.

Veja-se as crianças, as criancinhas.

A criação do estereótipo da criança como algo de indiscutível, para lá de qualquer debate, é ponto assente. A criança é a última almofada emocional mais importante que o âmago do indivíduo, seja ele pai ou mãe. Dá a ideia de que o indivíduo a partir de certa idade deixa de ser especial e fundamental. Muitas vezes só se entende sacrificando-se pela criança, numa rebeldia sempre adiada que culmina com a resignação na idade adulta. Pelo meio, ao jovem cabe consumir roupas de marca, viajar de mochila nas costas e frequentar os festivais de Verão.

A criança sem defesas é mais cidadão que um adulto?

Pode-se perguntar isto?

Para muito quem faz este tipo de perguntas só pode ser contra as crianças. O fundamentalismo é tal que chegámos a esse ponto.

A criança tornou-se objecto fétiche, tal como há uns anos atrás eram os modelos femininos, também eles crianças na maior parte.

O adulto está encaixotado entre a criança fétiche e o idoso repetido em poses que suscitam ternura rápida. A adesão a estes valores fundamentais e fundamentalistas é tal, que passa qualquer filtro racional, afinal é de emoção que aqui se fala.

Parece que vai ser lei proibir o abandono de idosos, como se os mesmos se parecessem com animais de estimação. Pouco convém ralar com as notícias vindas a lume recentemente em que Portugal é vendido como destino turístico de longa duração para idosos de outros países europeus. Um qualquer alguém do governo sugeriu despudoradamente que era uma indústria em que havia dinheiro a ganhar e empregos a criar. Fantástico, impedir por lei o abandono dos idosos indigentes deste Portugal, e aliciar com panos quentes os idosos remediados de outros países.

O abuso da publicidade despudorada que utiliza crianças, afinal setas às fraquezas das massas, na ânsia de vender afina pela criação de peças de nonsense que fazem bypass a qualquer mediação crítica.

A Associação Portuguesa de Direito de Consumo fez notar a sua existência num fleumático bocejar traduzido num comunicado segundo o qual parece que o código de publicidade pareceria letra morta.

Parece, afinal, que existem normas específicas para a utilização de crianças em anúncios, não sendo essa utilização permitida em peças sobre produtos que não lhes digam directamente respeito.

'Dá lucro às empresas explorar as crianças ou explorar os adultos através das crianças' queixa-se a APDC.

Pois. Quem diria.

Após anos desta prática corrente parece que misturar uma cabra e uma criança muito expressiva a chorar, no anúncio da Vodafone, foi a gota de água.

Perdemos a conta aos anúncios que ao longo dos anos e de forma completamente despudorada passaram pelas defesas dos consumidores como faca quente por manteiga, através do apelo ao paternalismo/maternalismo usando as crianças como isco para a coisa.

Agora, uma criança a chorar e uma cabra, alto e pára o baile.

Isto é uma palhaçada.

Pior, é uma palhaçada do politicamente correcto.

A APDC usa para mostrar que existe, a mesmíssima propaganda de mau gosto usando as crianças como desculpa para a preocupação.

Se fosse um tipo maduro ou uma dondoca trintona no anúncio a chorar ao ver a cabra, já não haveria problema?

Deixaria de haver apelo ao sentimento, à projecção do imaginário do espectador em relação aos comportamentos na vida real em relação ao anúncio?

Deixaria o mesmo de ser propaganda normalizadora?

Ah, mas os adultos têm defesas.

A chamada de atenção da APDC para a sua existência, visa passar a ideia de que se pode confiar maniqueisticamente na existência e operação das 'instituições' existentes.

Que tudo está regulado, ordenado e escrutinado, embora por vezes a máquina oleada precise de ajustes.

Há quantos anos se usa tudo o que são medos, complexos, lugares comuns, humor corriqueiro, comédia de situação, fraqueza humana, mediocridade, da vivência humana para vender aquele creme, aquele carro ou aquela margarina?

A preocupação da APDC e de outras semelhantes, parece ser com as crianças, que não podem participar em anúncios sobre produtos que não lhes dizem respeito, fazendo vista grossa à publicidade restante, como se só as mensagens subliminares fossem perigosas.

A infantilização dos adultos, incapazes de deslindar um texto complexo em português, não parece preocupar esta instituição, pela certeza das capacidades críticas de uma população esclarecida.

Quanto mais as crianças aparecem na propaganda dos adultos, mais os adultos se tornam crianças em relação à propaganda.

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Religião do +

3/12/2015

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«Assim, a sede de compaixão é uma sede de auto-satisfação, e, na verdade, à custa do próximo(...)»
Nietzsche, Humano, demasiado humano, 50


Coisa curiosa, a fé.

a)

O cristianismo para o povo passa bem por ser um confortável e aconchegado dispensar de mediação do pensamento. Normal pois os seculares servos e agricultores de subsistência não bebiam metafísica, os clérigos tinham de falar de modo a que percebessem.

Mas não só.

A genialidade da propaganda católica, especialmente na Contra-Reforma, reside no doseamento psicológico entre o maravilhoso e o abstracto (de preferência pomposo), abstracto esse construído através de séculos de operários retóricos da patrologia, muitos com dimensão intemporal, como Aquino ou Agostinho.

Séculos a compôr a cartilha que facilitava a vida ao padre que tinha de lidar com as questões naif no seu rebanho.

Havia que provocar o escândalo da razão, mas não a polémica, essa reservada às universidades e à pompa do cerimonial académico.

As inquietações do crente deviam orbitar em torno da mitologia debitada pelo senhor padre, e não andar por aí perdido, por terras de inquietação mental profunda atrás do significado da sua humanidade.

Esse povo, que de geração em geração acredita nas histórias do Livro, tanto quanto acredita na sua mais que suficiente capacidade de entendimento do mundo e dos homens através da palavra revelada. O divino atrás do símbolo dando largas à imaginação refreada dá todo o enquadramento necessário para entender e justificar quer a vida diária quer os segredos mais profundos do Cosmos, desde que, se acredite. Quanto maior a fé, mais confortável o mundo.

b)

Felizmente alguns decidem fazer ciência indo além das instituições, e no fim do trajecto emerge o estado laico europeu, no qual as extremidades da cruz se equilibram designando a César o que é de César, delimitando áreas de competência nas quais o padre não fala de Física nem o físico fala de Deus.

E quando opostos, podem ignorar-se em paz.

A morte de deus sobrevive mesmo ao niilismo, e parece perder-se pelos tempos a hierarquia litúrgica da ecclesia, mas são ainda necessárias algumas historietas para encantar os crentes, histórias renovadas, mais cientifizadas, com mais glamour.

O agricultor medieval sobrevive como arquétipo, hoje na figura do indigente burguês dos serviços, e com ele, a certeza inabalável na sua capacidade de entendimento e controlo dos assuntos, do dia a dia e das verdades científicas mais profundas do Cosmos.

Se antes era porque o senhor padre dizia, agora são os estudos científicos de uma qualquer obscura capela universitária  que o confirmam, ou no pior dos casos, algum telejornal.

Basta a ambição para atingir o sucesso, não no reino de deus por vir, mas no império do aqui e do agora, no tempo em que a vida corre, onde o paraíso está prometido sem o preço a pagar à morte.

c)

Dizia-se ao agricultor medieval para crer e submeter, ao camponês hodierno diz-se para se submeter crendo. Qualquer revolta não passa de ilusão, entalada entre a compra de um produto e o choro defronte um qualquer surdo e mudo muro de lamentações.

 A revolta de nada serve, dizem-lhe.

Só vais perder tempo e este tempo da tua vida é demasiado precioso para que o percas com revoltas, entrega-te à luta e ao fazeres o melhor dele.

Não queiras mudar o mundo, saca o máximo gozo dele, se o mudares, tanto melhor.

O esforço político da nossa era resume-se a assumir que não conseguimos mudar o mundo, apenas a nós. Mas que a mudança de nós próprios é já uma mudança do mundo, e só assim, ao bochecho, mudamos alguma coisa.

Bochecho a bochecho é o método de engolir o mar, isto é de mudar a democracia de massas.

Quanto mais a sua existência (e a do próximo) se transforma numa vida de merda, mais o crente se esforça para confirmar as colunas do seu edifício teológico.

A vida é demasiado curta. É mais fácil aumentar a graduação das lentes que tirar as palas dos olhos.

A religião cristã deu assim lugar a uma outra, híbrida, a religião do optimismo.

A cruz é a mesma, ou quase, apenas se alteraram as pontas, agora equidistantes do centro.

A única hierarquia é entre os que se safaram e os que não se safam e continuam a lamechar. Quem não se queixa é porque continua a tentar, e nesta religião, todos conseguem, basta despender o esforço necessário.

d)

Ou vai ou racha, o único argumento é o da força.

Esta postura colhe seguidores, em homens e mulheres fortes que se sentem os vencedores da selva de betão, vencedores da competição, do cão come cão, isolados no seu condomínio teleológico, em que o cão comido é aquele que não morde ou não sabe morder.

Inebriados com a ideia de que são senhores do seu destino só porque arrancam do sistema o seu sustento, vivem o seu tempo, apreciam a sua vida, nem que seja à força. Tão entretidos com o seu lufa lufa deixam fugir a ideia de que são escravos no mundo, cães desdentados incapacitados de morder de volta ao grande cão que os come a eles.

Tem de ser assim, sob pena de desesperarem. De perder a esperança.

A cruz é só já o sinal positivo de um abnegado optimismo cujo peso arrastado pela via sacra aumenta se não mergulharmos de cabeça na cantiga ideológica para esquecer o carreiro, e o peso.

A cruz é o sinal positivo e matemático, sem carga, sem gerar oposição, a nova religião do sucesso, se e somente se, a entrega for total.

Esta religião dispensa edifícios grandiosos para culto público, que não uma expressão vistosa e ostensiva de uma ideia de sucesso, e de uma congruência a toda a prova, sob a forma de uma convicção interior, mesmo que fingida.

As suas celebrações colectivas são polidas competições na demonstração da fé individual analogamente à fé nas velhas igrejas definida pelo valor monetário das esmolas.

e)

A programação neuro linguística (NLP), surge como tecnologia.

A ciência do auto aperfeiçoamento, e do sucesso.

Teve como mãe a psicologia de vendas, e como pais, um rol de abastardamentos científicos, da psicologia, à linguística, passando pela retórica e arte dramática.

Emancipa-se a partir da eclosão da crença na existência de um método para o sucesso, baseado numa análise matematizante e pseudo-lógica do comportamento de indivíduos que correspondem ao modelo de sucesso a imitar, e torna-se sucesso precisamente por causa da existência de tanta vida miserável que aspira a sair do seu desespero.

A psicologia motivacional não é bem sucedida porque tem muitos seguidores, é bem sucedida pelo contrário, porque existe muita gente desesperada que não consegue extirpar a miséria da sua vida. E vê na convincente estratégia de marketing, uma saída para os seus problemas.

Claro que fica bem dizer que se motiva e ajuda os outros, mas tendo em conta que poucos o fazem sem ser por prestígio ou dinheiro, somos levados a pensar que bem sucedidos são aqueles que conseguem ganhar a vida através de um trabalho limpo (apenas na forma, não no conteúdo), e sem muito esforço associado que não o de ter lábia e espinha maleável, além de uma infinda capacidade de auto manipulação.

Combate-se a depressão com Prozac e mantras.

Cá em Portugal tivemos casos mediáticos, como os exilados da Psicologia, um tal de Miguel Gonçalves, ou um Gustavo que foi motivar outros num programa televisivo alusivo à construção civil.

Combate-se a tristeza com mais afinco que se combate  a corrupção, e até nas escolas já se alertam as crianças acerca dos perigos da tristeza, apesar do falecido Nobel Saramago ter dito que  as crianças devem crescer à sombra.

Não por amor às crianças. Mas  por um jogo cínico e infantil por parte dos próprios adultos.

Não é a criança, indivíduo, que interessa. É a categoria de 'criança', um oceano de significados do sensus comunis que é de bom tom partilhar e perpetuar. Serve de contraponto, pela sua inocência e ingenuidade, aos adultos que aparecem, nos filmes e outra propaganda, como pérfidos, e já iniciados na Queda, justificando o sacrifício que fazem, não só por causa (justificadamente) da criança indivíduo, mas também porque devem assumir que pecaram entretanto e já crianças não são, portanto merecem os castigos que a vida lhes deposita na pele. Perde assim também, o adulto, os dentes políticos, sob uma imbecilização humilhante, onde se nega a individualidade a criança e a crescido.

A criança é o atalho mais rápido à carteira. É um valor supra individual capaz de apelar a um sentimento sem reserva.

f)

Um pouco por todo o lado se penduram espanta espíritos metálicos e ruidosos, para afastar as más energias, e tudo que metafisicamente não é ainda explicado pela Física moderna. Não significa que a alegria seja pobre de espírito, ou que os alegres são tolinhos fúteis. Isso está reservado não para os alegres mas para os que negam a tristeza. Para aqueles que se manipulam a si mesmos sob as desculpas de que querendo ser felizes adoptam um padrão de comportamento de ludibriar os outros para proveito próprio, ou seja, a malta da indústria da auto-ajuda, e do marketing.

A vida parece algo que tem de ser mascarado a todo o custo através de umas lentes ingénuas.

No processo abdicamos de parte da nossa humanidade e da nossa espontaneidade, cedemos, desistimos, egoístas, de acumular raiva e vontade revolucionária de mudar o mundo, assumimos uma incapacidade que desculpa o não querermos fazer nada. Outros, mais fatais, não têm escolha senão fugir a serem consumidos por desejos de transformação social em terra de imbecis que sendo maioria sujeitam os outros à sua imbecilidade.

Os profissionais desta indústria da motivação, reduzem o outro a potencial cliente da sua pílula dourada, afogando a má consciência com desculpas de que no fundo apenas espalham uma metodologia de felicidade, e que os proventos financeiros apenas compensam a dedicação ao espalhar da boa nova.

Queres ter uma vida como eu?

Liberta de trabalho e constrangimentos financeiros?

Compra o que tenho para venda.

Infelizmente nem sempre são assim tão honestos.

A venda geralmente não se apresenta como tal, nem o produto vale pela sua qualidade se não implicar o resultado certo através da adesão incondicional do comprador. Como qualquer placebo.

Escolher ver apenas o lado bom da vida, é uma negação consciente da verdade tomada no significado clássico como construção de uma narrativa coincidente o mais possível com os dados apreendidos pelos sentidos, e com narrativas sobre narrativas, num esforço de dar sentido.

Aqui, o sentido é dado à partida, é aquele que me fará mais feliz, de modo a depois só ter de o confirmar através dos factos.

Este positivismo de consumo não quer observar o mundo. Quer uma narrativa atalhada da realidade.

Rejeita liminarmente a empatia, em detrimento de uma simpatia incondicional chave na mão.

g)

Os novos padres levam ao exagero a linguagem kantiana, no processo de se tornarem legisladores e súbditos de si mesmos.

Também não positivam o mal.

Colocam fotos nas redes sociais, engomam camisas e calças com rigor de missionário, espalham para informação geral as suas presenças nas praias ou em destinos turísticos sempre com sorrisos frondosos e enigmáticos, partilham com toda a gente as fotos das comidas e bebidas que atestam a sua capacidade de saber viver, os seus sucessos nocturnos, sempre de copo na mão em poses sofisticadas, os prazeres do BTT, surf, ou de qualquer actividade que esteja na moda e represente dinamismo, toda a vida reificada, transformada em produto para atestar a eficácia do sermão a quilo.

O maravilhoso da religião saiu da sacristia, e deslocou-se para a horta, cada um gaba e publicita o seu canteiro aos demais, com citações motivacionais cuja base é o mais serôdio carpe diem em prol da vida e da luta. Acredita o crente que é uma boa luta, digna, e que essa luta mostra a força do seu espírito.

A nova religião celebra em transe e de mãos dadas, em longas filas de indivíduos murmurando as afirmações positivas repetidas até se tornarem verdade, auto lavagens cerebrais, numa escolha óbvia de como se quer encarar a realidade.

h)

Nada pode dificultar este esforço.

Nada pode semear dúvida.

Uma consciência crítica é um incómodo.

Pessoas esquivam-se de pessoas, de todos os que não comunguem na mesma confissão.

Ah, ele não pensa como eu, é pessimista, negativista, troll, quezilento, quero-me rodear de gente positiva.

Os tristes e os deprimidos, e muitas vezes os lúcidos, estariam condenados a morrer na solidão por vontade deste clero.

O pessimismo é uma peste que só através de uma abnegação na pobreza de espírito, se pode extirpar.

A vida interior não traz senão inquietação e sofrimento, há pois que travesti-la de forma a reflectir nuvens cor de rosa e algodão pompom.

O sucesso na vida depende da alegria, e a alegria depende do sucesso material, cada camponês se transforma no cardeal do segredo do seu sucesso, contra os apóstatas que conspiram contra si pelo negativo, pelo lado escuro da força.

Cada camponês supera desta forma a natureza, extirpando de si, aparentemente,  os sentimentos de  ódio, inveja, revolta, indignação, ou aspiração espiritual.

A miséria de cada um é sinal de fraqueza, e cada qual mascara a sua para não dar ao outro o biscoito do juízo fácil da pena fingida.

O discurso vitimizado só colhe quando dá ao orador a compreensão branqueadora por parte do ouvinte, não quando lhe pressente a humanidade.

i)

Portugal, país clássico do choraquelogobebes, tem apóstolos do risenãonãomamas.

Começaram em workshops, tedtalks e em átrios de hotel.

Com o sonho de vender um produto que os dispense do trabalho duro, sujo ou repetitivo.

Uns derivando da Psicologia desempregável, outros da praia e conchinhas no céu, como o Gustavo.

Umas frases sonantes, uns conceitos aparentemente complexos e acima de tudo uma linguagem corporal a condizer e congruência implacável, convencem os tolinhos que se deixam apanhar, com uma pinta de brilhantismo.

Com a lógica de café empresarial tuga, a legião de fanáticos tem-se multiplicado.

Um imenso exército partilha agora o seu método ou a sua visão com outros de molde a todos podermos ter sucesso, e assim mudarmos o mundo com bolas de perlimpimpim.

É mágico. Muita bonito.

 A religião é o ópio do povo, e acorremos aos anfiteatros ressacando pela próxima dose de motivação que nos volte a dar esperança. Pelo menos até a realidade a contrariar ou o seu efeito desaparecer como o rasto de navio em radar.

j)

Com a nossa autoestima tão em baixo, obtemos ajuda dos telejornais, ou outro lixo televisivo, bombardeados com campanhas de solidariedade, exemplos de portugueses bem sucedidos lá fora, com imagens de crianças repetidas até à exaustão, de forma a evocar rapidamente o sentimento, e na ressaca do mesmo o conforto de sentirmos as emoções correctas.

Parece (mas não é) que vivemos num mundo de merda, e que a própria comunicação social oscila entre a denúncia pornográfica e a palestra motivacional.

Português de sucesso?

Qual o critério de 'sucesso'?

É algum motivo de espanto haver portugueses em elevado nível de 'conseguimento'?

Precisamos mesmo destes exemplos para acreditar que somos 'bons'?

Parolice adorável.

Como num jantar de maratonistas um se levantasse e andasse para mostrar aos outros que sabe caminhar.

A dose de autocomprazimento por sentir o que é expectável, inunda os jornais de gastronomia e doenças raras, com campanhas de solidariedade, casos de vidas difíceis, não por real interesse mas para que nos cafés à hora de almoço se possa ter pena em massa, e obter o tal autocomprazimento por sermos tão bonzinhos.

O alvo da ajuda, não é senão o meio para o nosso fim, a dose de superioridade moral, pagando a má fé com umas caridadezinhas em forma de esmolas, que são as provas concretas do esforço para mostrar aos amigos.

E assim confirmar o nosso mundo de pompom, idealizado nas fantasias motivacionais.

As esmolas são as provas concretas do esforço dos indivíduos no tango da má fé dançando sós no baile apinhado.

Tal como a criança, o carente não vale por si, é só mais um objecto de consumo.

A cruz perdeu o sagrado e ganhou o mundano.

Da coisa de deus passou o crente a ser a coisa sua, encantado por uma suposta liberdade decorrente por ter deixado de ser gente e ter continuado a ser coisa.

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Os drogados do Bem

11/17/2014

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Como ruído devolvido exponencialmente, recebemos como que por intuição sem fios as linhas mestras da sensibilidade coeva. O politicamente correcto já não faz escola, já fez Universidade, que passou a Fundação, depois a Business School, e por fim se tornou em cooperativa privada de ensino...Apesar dos tempos difíceis em que a meritocracia ilusória já não necessita de aval do Ministério da Educação para dar consideração social e uma vida mais desafogada no pântano de merda em que vivemos, claro, com muitos ambientadores para disfarçar o cheiro.




O políticamente correcto tem um efeito bidireccional, afina o individuo de acordo com o caldo de ideias da opinião pública, (algo de artificial e parcial que é forjado em meia dúzia de gabinetes de redacção), e de acordo com este condicionamento manifesta de dentro para fora a sua individualidade através da adesão ao lugar comum, isto é, o sujeito individua-se, dissolvendo a sua individualidade.




Nas redes sociais, nos telejornais feitos com a comida já mastigada de Reuters, France Press, BBC's e CNN's, abundam os vídeos que prometem que depois de os vermos vamos chorar, e que nos vão mudar a vida, é o cão que salva a criança, é alguém com cancro a chorar, de preferência com olho azul, é uma suposta criança síria a salvar uma outra ao alcance de atiradores furtivos (mesmo que se venha a saber que foi uma serôdia encenação e ideia triste) é um baile organizado por supostas celebridades para sensibilizar para lúpus, violência doméstica, direitos das mulheres, das crianças com trissomia, das crianças com déficit de atenção, das crianças com papeira, das crianças com bexigas, etc.

Os velhos aparecem de quando em vez, aludindo ao consumidor contribuinte, que tenha um daqueles lá por casa ou em algum lar onde os colocou à espera que morram.




A grande farsa é a de que estas campanhas são algo mais que cosmética. O primeiro rebate é de que as intenções são boas e valem por si, e que no mínimo quem dá a cara para a entrevista na rubrica social cor de rosa, ou que se deixa fotografar dando sopa aos sem abrigo, está a fazer algo para melhorar o mundo.

Quem o nega fará parte do problema. Quem levanta algum problema é negativo negativista, ressentido e frustrado.




O discurso tem tanto de racional, como o de um toxicodependente a quem ameaçam a recolha da sua dose.

É de droga que falo, uma droga neurofisiológica que se liberta no nosso cérebro quando nos sentimos os bons e boas da história, como os bonzinhos que fazem alguma coisa, ao seu alcance claro, para erradicar a maldade do mundo.

Não nos passa pela cabeça que somos tão bonzinhos como aquele que leva a senhora cega a atravessar a estrada para mostrar aos outros que é bonzinho. Os outros podem ser os nossos olhos. Geralmente colocamos uma moedinha na caixa das esmolas para uma qualquer causa que renasce todos os Natais, e voamos para casa satisfeitos connosco próprios por sermos bons, compramos por trocos a boa consciência, que nos abre o apetite para um jantar composto pelos restos de cadáveres de outrora seres vivos e senscientes, minoritários para a nossa preocupação, com um bom vinho alheio à falta de àgua potável em mais de dois terços do planeta, para outras pessoas.

Diz o ingénuo que o oceano é composto de gotas e assim branqueia o ridículo da sua superioridade moral a prestações.

Diz o cínico que os outros são pobres porque querem, que trabalhem como ele, que negaria trabalhar por um prato de arroz, na única ocasião hipotética em que pensa em direitos, apenas quando calha a si.




Nada como o Natal que se avizinha para enchermos os nossos corações de boa vontade e amor abstracto pelo próximo, ou de qualquer adesão que surja por consequência da projecção mediática que tenha, decorrente do sinistro suspense das causas perdidas que aparecem e desaparecem sem que ninguém perceba como, sinistramente as crises humanitárias parecem só existir se aparecerem na televisão.




Os mais honestos dedicam-se a não querer saber, rindo com vídeos em 5ª mão de istosóvideos americanos, ou recentemente nos youtubes «virais», ou com o sorriso maroto no fim do telejornal quando passavam modelos com pouca roupa, após os comentários provincianos do pivot.




Na escola de Frankfurt parece que o politicamente correcto era obra da classe média alienada em conforto de veludo.

A classe média emprenhou e teve filhos, generalizou-se através dos gadgets, e hoje qualquer um que tenha um telemóvel de 500 euros sente a ilusão de pertencer a uma casta privilegiada, mesmo que more no mesmo bairro de lata, coma as mesmas comidas estupidificantes e baratas, e que a miséria seja a estrutura dos seus pensamentos.




O acesso aos vídeos e as redes sociais criaram outra ilusão, a de que existe um corpo homogéneo e sintonizado de cidadãos, mais real que o inefável quotidiano, afinal, a realidade está ao alcance de um botão de ligar/desligar.




Os mais viciados precisam de se sentir mais especiais, conseguindo fazê-lo através da disponibilização de vídeos grotescos, sobre a morte de animais, decapitações para qualificar todos os muçulmanos, ou vídeos sobre a miséria nas favelas, ou a miséria em geral, como forma de criticar a humanidade em geral pela sua estupidez.




Já não é o falhar olhar o corpo por detrás do dedo que aponta. É obter a dose apenas por apontar, o dedo.

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Amigos amigáveis

7/15/2014

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Escutando qualquer rádio pela manhã surfando pelas filas intermináveis e congestionadas de cidadãos automobilizados, podemos confirmar sempre umas três coisas engraçadas.

1)      A omnipresença da publicidade idiota e idiotizante.

Ás vezes parece que o único objectivo desta orgia de ligeirezas acessórias, que são as ideias passadas, é arrepiar caminho a qualquer mediação racional e ponderada. A rádio através das suas frequências é um gigantesco posto emissor que irradia emoções e ideias feitas. Tal é feito através do sensacionalismo de preços baixos, cómico de situação e jogos de poder encobertos.

«Eu é que não sou parvo.» ouve-se por aí, e ficamos a saber que ser parvo é pagar mais por qualquer tipo de objecto inútil. A boa vida passa pela ligeireza do passar do tempo e do killer instinct consumista.

Várias encenações são compostas para o efeito pelos magos do marketing. Os gradientes de glamour giram em torno de um qualquer produto ou serviço.

Velhos, mulheres e crianças são utilizados como chamarizes para vender tudo.  «-Oh pai preciso muito de X…» ou «-A sua criança para ser feliz ou bem sucedida daqui a umas décadas, precisa de X ou y…» são ideias marteladas até à exaustão pelos propagandistas que conhecem muito bem onde tocar e magoar para obter o efeito desejado, seja um iogurte vitaminado ou uma outra qualquer parvoíce.

Nas representações radiofónicas e televisivas surge a personagem do provindenciador/protector, ou da mulher, quase sempre como oráculo de sapiência e sabedoria prática, reflectindo para as espectadoras a imagem que elas gostam de ter, de si mesmas. A mulher segundo o Evangelho publicitário está sempre em cima da última promoção, ou sempre a fazer contas e cálculos, acompanhando todos os produtos e serviços que providenciam a imagem de esperteza e o conhecimento de como saber viver.

2)      Tagarelice assexuada

Se ativermos a nossa atenção nos pivots televisivos de um qualquer programa generalista, ou especialmente na rádio, verificamos que geralmente são elaboradas parelhas de homem e mulher, perfeitamente sincronizadas com conversas fúteis e infantilizadas de modo a não terem arestas, contradições ou que fujam dos lugares comuns, e acima de tudo, apolíticas. Apolíticas, porque o politicamente correcto, é a ideologia que dispensa todas as outras na guerra das audiências.

Dinâmicas aparentemente acasaladas e convencionais, sem chama que não brejeira, sem químicas, os próprios comentadores políticos vestidos e maquilhados de forma a mostrar as alianças conjugais que asseguram ao espectador que o falante é dos seus, responsável e consciente na fantasia colectiva que representamos uns para os outros, confirmações deste mundo virtual e cínico de onde se retira a espontaneidade e profundidade às emoções e às paixões.

A publicidade e a política usam e abusam do vocábulo ‘paixão’. Ela é instrumental a vender um carro, a vender um sofá, ou a convencer sobre um programa político, de preferência com uma linguagem corporal a condizer.

No anúncios em câmara lenta sobre futebol, ou outras serôdias peças publicitárias em que somos incentivados a seguir os nossos sonhos, desde que não passem por destruir esta ordem reinante de faz de conta e jericácá, neutro, asséptico, irreal.

Muitos programas televisivos com parelhas de sexo diferente projecta uma suposta igualdade tentandp agradar aos dois públicos, projectando uma imagem de igualdade da mulher a expensas do homem, quase sempre mal representado por homens sem arestas, ocos, também eles assexuados pese embora a brejeirice que tenta emular masculinidade, e por isso em televisão, o homem babaca é sempre suporte à modelo feminina.

Os amigos amigáveis falam de uma futilidade sem fim, com vista a entreter, compõem a sinfonia que faz acreditar num mundo monocórdico e doseado.

Por vezes emergem campanhas de publicidade caridosa, que visa unir os participantes na sua dose heroinómana de superioridade moral, dando resposta a um qualquer sentimento de precisar acreditar que se está a fazer algo para mudar o mundo.

O sal dos dias é uma repetição do mesmo através do diverso, sempre a mesma merda com diferentes roupagens, até que pelo menos as gerações se esqueçam que aquela moda se repete já.

Nesta aparência repetida há sempre lugar para uma vida com altos e baixos emocionais, provocados com a rotatividade dos artefactos que nos dão sentido à vida, e com os engodos que a eles se agarram como as férias, a família como produtos ainda, que provam que temos vidas cheias.

Nas redes sociais também se confunde esta convencionalidade pactuante  com um adulto saber-estar.

Imagens de pés com vista para a praia, fotos de bebidas exóticas com a finalidade dupla de provocar inveja nos outros e mostrar que se vive a vida à grande, com «paixão»…exortações motivacionais, ou desabafos comezinhos de partir os cornos a um chefe ou colega de trabalho inconveniente ajudam a criar e manter este ambiente de morna putrefacção onde o confortável nós não quer deixar de estar.

As provocações são deflectidas porque não queremos más energias a povoar o nosso arduamente ganho mundo de faz de conta, e o provocador não terá efeito em mim.

A todos os argumentos por mais imbecis que sejam se nega o caminho do debate :« Eu acredito no Pai Natal, tens de respeitar a minha opinião.»

A televisão portuguesa apenas traduz o que lhe dão a Reuters, France Press, CNN ou BBC, num coro generalista que parece projectar a comprovação de uma globalidade que dilui as identidades num abraço fraterno. De vez em quando uma notícia idiota e sem interesse senão como exemplo de grotesco ou estupidez, oriunda dos EUA, o grande profeta, por certo em retribuição dos imensos episódios ocorridos em Portugal que por certo passam nos EUA, pelas televisões, que por lá laboram.

A merda acumula-se de tal forma que parece que todos a tomamos como o cabouco da nossa existência.

Não é possível perante esta cortina de fumo, afirmar que vivemos uma vida examinada. O resultado é que alguns vivem bem na pocilga do imediato, e outros se coçam na inquietude. Amigavelmente.

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Pensamentos sobre a ideia de masculinidade (I)

4/2/2014

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Noções de masculinidade (I)

I

                A argumentação sobre o facto comprovável de que as agências de publicidade usam as fraquezas das pessoas, sejam sentimentos ou formas inquinadas de pensar, é tão batida como qualquer praia erodida do litoral português.

Supostamente o telespectador é alguém com uma capacidade crítica para perceber que é tudo brincadeira e que no fundo, no momento final da compra, não se deixa ir em cantigas e compra racionalmente.

Pois eu discordo, eu e felizmente muita gente. Não só somos imunes a 24 horas de propaganda comercial, como a veiculação da informação não obedece a auto estradas racionais. O apelo a sentimentos imediatos é um bipasse  à racionalidade que deveria em primeiro plano perceber quando está a ser conduzida. Isto também não é novo, há milhares de estudos a apontar isto, milhares de rios de tinta sobre o assunto. Não é novidade, excepto para a maioria dos analfabetos funcionais que não têm tempo para pensar o mundo que os rodeia. Mas é assim que é rentável. Mesmo que uns poucos se indignem por fazerem deles parvos, a maior parte acha que o atalho é a estrada principal.

Tudo bem, a malta do marketing tem de ganhar o seu e as empresas de vender. Seja como queiram.

O assunto presente é no entanto esse tal contexto em surdina que permite a postura acrítica. Não só a tomada da publicidade como inócua, mas acima de tudo, o apelo a um mundo contextual politicamente correcto, uma espécie de ‘terra em que todos adultos sabemos o que se passa e ainda guardamos algum humor ‘ em analogia às expressões faciais do José Rodrigues dos Santos quando apresentando o ‘Telejornal’ comentava serodiamente a passagem de modelos femininos, que serodiamente sempre brindava o fim de um programa informativo de quase duas horas.

A carinha e as boquinhas enviadas através cinescópio, eram para os telespectadores, numa espécie de fruição de mundo comum em que os homens olham e comentam para dentro para mostrarem uns aos outros que gostam de mulheres mas se sabem comportar.

Ora a publicidade cria esse mundo de enviesado sensus communis que supostamente é propriedade do ‘pater familias’ burguês, que se sente ainda homem além do dever, por recordação da sua malandrice polida.

A publicidade cria o mainstream que mais não é que um conjunto de ideias veiculado através de imagens.

Essas ideias ou pré-conceitos, pois não chegam a ser mediados criticamente, criam o mundo contextual no qual o sujeito acha que todos os outros vivem. A sua necessidade de ‘pertença’ e de se actualizar no espírito do tempo, ou o tornam uma ‘maria vai com as outras’ ou um marreta.

Nesse mundo contextual, tudo é permitido ás crianças pois é assim que os outros fazem e a televisão e cinema (com frequentes ajoelhares) mostram. Nesse mundo contextual é dado todo o poder sexual à mulher por detrás de uns saltos altos e batons fluorescentes, é fixe vender o corpo com uma promessa de orgasmo, e nada há que seja mais reificado que o corpo feminino, veja-se que até as ferramentas como berbequins ou lixadeiras não dispensam uma louraça em país de morenas com pouca roupa, passando para segundo plano informação mais técnica sobre o item.

Transforma-se assim o homem em marioneta dos seus mais imbecis desejos, mas é assim que vende.

Falo do homem, porque é o menos debatido, toda a gente desde ‘o segundo sexo’ sabe que as coisas são tramadas para o lado das mulheres. Mas e que ideias emergem sobre o homem, que os homens acabam por mimetizar?

Bem, parece ponto assente que hoje a masculinidade assenta em gostar ostensiva mas bem comportadamente de mulheres, ser fanático de futebol, ou escarrar para o chão e coçar a tomateira. Temos também outro lado que nos mostra o classe média provider,  completamente absorvido com a opinião dos outros e o seu lugar neste mundo em que dá a vida para providenciar a abastança da sua família. Quer num quer noutro, a dimensão espiritual do ser masculino fica reduzida à sua função, ora de chefe de família ora de bruto adorável que acaba domesticado. Tal como a mulher acaba reduzida a dona de casa condenada a ver anúncios estupidificantes, ou sex bomb caso tenha estrutura para isso e ponha pouca roupa.

Há portanto uma redução política, espiritual, e social quer do homem quer da mulher. É normal, a empresa quer vender, não formar cidadãos, isso é tarefa do Estado.

Mas onde deveria ser traçada a linha que separa a propaganda da informação sobre novos produtos? Mas a publicidade não vende produtos, a publicidade vende imagem e paradigma, para se aproveitar do consumidor que se sente compelido para comprar os produtos associados a essas imagens e paradigmas.

II

Hoje analisam-se 2 vídeos sobre cremes de barrar, sejam manteiga ou margarina com sabor a manteiga e um sobre um automóvel.

Ilustram muito bem a galáxia de preconceitos em operação propagandística.

No da Flora, um tipo sonha com torpores eróticos, em fofa cama de algodão, com uma mera sandocha de manteiga, numa hiperbolização corrente dos efeitos de determinado produto no consumidor.

Ora o consumidor sabe que nenhuma torrada lhe dará torpores eróticos, mas acha engraçada este exagero, a coberto da tal ideia de a publicidade é inócua, e assim o anúncio torna-se engraçado, criando uma relação empática que se revela num momento de compra futuro.

Os torpores eróticos levam-no a exclamar o nome do produto que pode coincidir com o nome de uma amante ou relação extra, causando a indagação e indignação da parceira que acordada partilha a cama. A indignada parceira, ao pressentir uma possível traição nem que seja em sono agride o sonhador com o candeeiro na cabeça.

Ora na minha opinião, pese o mau gosto de, num país com vergonhosas taxas de violência doméstica, utilizar uma expressão de violência, o mais grave ainda é a ligeireza com que a mesma se concretiza.

Então por palha vai, toca de agredir uma outra pessoa, só por causa de um sonho. Vulgariza-se a violência bem como o capricho da esposa ciumenta. Esta vulgarização nada mais é que uma normalização da violência e do capricho, apesar de todo o espectador saber que o que passa na TV é encenado e não é verdadeiro. Mas diga o leitor se não partilha no seu local de trabalho anedotas sobre esposas ciumentas e se nunca comentou uma qualquer generalização idiota sobre as mulheres só porque a televisionou.

O 'babaca' termina o clip, com gelo no galo e dormindo no sofá, mas comendo a sua Flora com pão, satisfeito por este prazer, alheio a ter uma mulher psicótica que devia estar a ser identificada quem sabe numa esquadra de polícia.

Que imagem de homem temos aqui, senão, a de um ser mediatamente limitado, condenado a ser um esposo de casa, normalizado às tiranices de uma mulher justificada pela sociedade circundante? A violência cometida por mulheres, ironicamente a soldo da 'paixão‘, é mais sexy ou menos violência que aquela que é cometida por homens?

Neste e no próximo vídeo, emerge a completa figura do porreiraço, que é o estereótipo segundo o qual o homem moderno aparece televisivamente.

O porreiraço tudo tolera com um sorriso nos lábios.

É um gajo que não levanta ondas, anui a tudo, que quase pede desculpa pela sua existência anódina.

No anúncio da Planta, o carácter afrodisíaco deste creme não evoca ‘O último tango em Paris’, mas uma espécie de creme milagroso composto de Ciális e de essência do Grenouille, que permite parceira após parceira, manter uma auréola de fascínio por uma figura masculina com cara de parvo mas porreiro, sem maneiras ou higiene, completamente sôfrego a comer e que supostamente comete todos aqueles pequenos erros que as mulheres detestam, mas que graças à Planta são até virtuosamente atraentes.

A música, tolamente dondoca, os pensamentos das mulheres aparentemente insuspeitos ante a indiferença do homem que come, criam empatia com as mulheres que já pensaram nisso e com os homens que secretamente admiram a promiscuidade do garanhão e a sua total preocupação com as suas necessidades, passando a ideia de força…ou seja um homem para ser forte basta imitar o comportamento do tipo que come de boca aberta, deixa migalhas na cama, rouba as torradas, e parece um hamster a comer.

É a tal mensagem, ainda que aparentemente diferente, do porreiraço que coça os tomates escarra para o chão e é indigente, quer de maneiras quer de vida reflexiva.

É esta a imagem de homem que parece servir de norma.

Este engatatão boçal transfigura-se de novo no anúncio da Ford, sobre o Sync.

Nele reaparece o gajo sem espinal medula. Teve a coragem de dizer o que pensava mas depois volta atrás para obter de novo a aprovação da companheira, que tal como a da flora, é de fácil amuo.

Nele aparecem os mesmo estereótipos, neste caso o namorado / marido a falar 'mal' do sogro.


Neste anúncio é utilizada a tecnologia para a total submissão masculina, como forma de comprar as pazes com a mulher, que se ri, porque a tecnologia é novidade e as desculpas, de abjecta submissão são proferidas por uma voz a ambos alheia.

Ser homem assim, é bom para o negócio.

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Exemplos empreendedores

1/8/2014

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I

Consta que o fundamentalismo é uma postura ideológica que assenta em dogmas, ou seja, em ideias feitas não passíveis de discussão, debate, sequer análise.

Curiosamente, este termo nasce em contexto cultural protestante, nos Estados Unidos, no início do século XX.

É um esforço de ortodoxia ou de fidelidade ao seminal, original, um movimento para a ‘pureza’. Pode assumir outros contextos, mais ou menos conscientes, os sujeitos fundamentalistas podem muitas vezes não saber que são fundamentalistas, pois acham que os dogmas que sustentam não são passíveis de debate, quer por uma questão de autoridade, quer por uma questão de percepção, na qual o dogma é tão evidente que só loucos ou mal-intencionados o podem tentar contrapor.

E assim chegamos à questão central do dogmatismo ou do fundamentalismo, a negação do discurso do outro, a negação ou supressão de tudo o que vá contra o fundamental que é assumido.

Avital Ronell, chega a encontrar nessa negação a melhor definição de estupidez.

Para muita gente, o fundamentalismo passa por ser coisa de muçulmanos com dinamite em nome do Islão. E essa fácil e confortável redução impede geralmente os utilizadores de perceber que ‘fundamentalismo’ é um tópico bem mais vasto e complexo, também a eles aplicado.

De acordo com a ideia burguesa (porque apenas sustentada na teoria, ou sem real intervenção no real) de que a democracia é o sistema do diálogo, do consenso e do debate, o fundamentalismo assume tons anti democráticos.

E no entanto o nosso regime ‘democrático’ é fundamentalista em muitas acepções. Desde logo a sua pesada estrutura, ineficiência e atrito, contribuem para a negação do discurso opositor. Experimente o leitor numa qualquer repartição pública seguir os trâmites processuais e estar coberto de razão, que de nada adiantará senão anuir com prazos ou procedimentos que vão contra o seu direito. Ou mesmo quando protesta, geralmente o protesto cai em saco roto, isto é tem o direito de uma manifestação contrária, só para dizer que tem, mas a mesma não tem qualquer efeito prático. Muitos sugerem isto como parte da cedência de liberdade e de intervenção ao corpo público, que o cidadão assina quando nasce e que faz parte do contracto social. Quem protesta contra a lei, tem de seguir determinado caminho ou enquadramento de protesto, cuja entropia processual, ou mesmo cuja corrupção potencial, transformam o cidadão em caixa-de-ressonância de um emaranhado institucional que o esmaga unilateralmente, pois a ineficiência do protesto seja ele qual for, só tem paralelo na eficiência da cobrança estatal para manter o Estado que esmaga o indivíduo, ou seja, o Estado é um corpo alheio ao cidadão, e ao seu interesse.

É óbvio que o Estado tem de manter a negação de alguns discursos para, teoreticamente, manter os interesses do maior número. Qualquer pessoa sabe que numa fila de supermercado quase nunca o cliente tem razão. E todos sabemos que numa sociedade competitiva e mal formada, o chico esperto vive para tomar vantagem das situações.

A grande desculpa para o desrespeito do escrutínio, quanto mais discurso, do cidadão, é exactamente a sujeição do particular ao bem comum. Teoricamente.

No plano do particular, nenhum de nós gosta que nos mijem na parada, isto é, nem toda a gente lida bem com reparos ou criticismo.

Em Portugal, o reparo ou crítica é tomado como ataque pessoal à autoridade do emissor.

Nas redes sociais e nos jornais portugueses, por mais elaborada que seja a crítica se o crítico é um pobre mexilhão que ninguém conhece, os visados não se dão ao trabalho de responder, pois escolhem estrategicamente os oponentes, revelando também assim a negação do discurso do outro sempre que conveniente. Mas quando (veja-se o caso ideológico entre Vasco Pulido Valente e Manuel Loff), os envolvidos se envolvem publicamente, com as suas volumosas imagens (ou auto percepção dessas imagens), então a coisa muda de figura, porque o outro conta, e o conflito pode provocar dano inacessível ao mexilhão.

A esta tão comezinha realidade, juntou-se nos últimos anos, a psicologia motivacional, proveniente dos Estados Unidos da América, e que surge através da conjugação das ciências da mimésis – aquelas que divisam métodos para ter sucesso na vida, geralmente imitar milionários, cujo vulto de referência é Dale Carnegie – e das ciências motivacionais new age, (em grande parte devedoras do espírito dos anos 60) que vendem produtos que intentam revelar formas de viver e fruir a vida que tragam felicidade.

Esta assimilação tardia contribuiu para a criação de uma autêntica legião de fundamentalistas e porque não dizê-lo, de uma espécie autistas abnegados em positivismo nem que tenha que se deixar alguma coisa pelo caminho.

Já o tínhamos dito aqui.




A tolerância ao confronto de ideias e a capacidade de encaixe às críticas está em pior situação que a nossa dívida externa.

Não se cultiva a palavra, a novilíngua impera, o provincianismo tem glamour e é ostensivamente praticado, e a abnegação optimista, a par da aceitação acrítica das consequências de determinados paradigmas, submetem-se a todos aqueles que procuram uma forma fácil e desenrascada de fazer uns cobres.

‘Empreendedor’ é a palavra da primeira década do século XX, tal como JEEP (jovem empresário de elevado potencial) o foi nos idos anos 90.

Há que ter tino para as modas linguísticas (alguém se lembra do ‘serenamente’ de Guterres?), e empreendedor é aquele que está de acordo com o espírito do tempo. Passa-se a ideia de que à dificuldade de um mercado de serviços, a competição pode ser ultrapassada com a resolução do tendão de Aquiles português, a mentalidade. Como se vence originalmente a mentalidade retrógrada portuguesa, de forma original? Através da imitação dos milionários, isto é, através da adopção de técnicas de psicologia motivacional oriundas essencialmente dos Estados Unidos (existem até sistemas franchisados) como se o poderio económico da maior economia do mundo se devesse não ao seu grau de magnitude, mas a uma legião de fanáticos o optimismo e de mangas arregaçadas.

O ex-delfim de Relvas, Miguel ‘Punhetas’ Gonçalves, acredita que sim, que podemos competir com a China por exemplo, só por arregaçar as mangas, ou comer muita broa, bater muito punho. Os críticos, os cães da caravana? São aqueles que são culpados ou de uma deficiente lógica, ou predadores de energias que parece que dão com tábuas nas costas dos outros, isto é, mijam na parada.

O cavalheiro, é formado, em…Psicologia, e é um bom exemplo de empreendorismo nacional, pois renovou a figura do capataz, isto é, criou uma agência que mascara o facto de vender mão-de-obra. Saiu da área de Braga.

II

Portanto, que se resume até agora?

Nas redes sociais abundam as citações motivacionais, os desabafos com maior ou menor verve, os memes, etc.

Abundam os manuais para vidas felizes e como ganhar dinheiro facilmente, em autênticas bibliotecas de banha da cobra que mais que demonstrarem a esperteza saloia dos autores e seguidores, demonstram a redução de uma complexidade metafísica como forma de afunilar o esforço de…eficiência.

Este paradigma, difícil de exprimir, em meia dúzia de linhas, faz com que ao menor sinal de um possível troll ( personagem que se dedica a mijar em parada alheia) os visados o bloqueiem ou limitem a nível de intervenção, sob a desculpa de que o fazem para não cansar os outros com o mau feitio do troll.

Esta forma de estar é recente, pois se fosse norma há cerca de 2400 anos atrás, não teria chegado testemunho até nós do maior troll de todos os tempos, Sócrates. Não teriam chegado também quase todas as obras de cultura que mais não são dispositivos que solicitam ao ser humano reacção sob a forma de dispositivos (áudio visuais ou outros) que por sua vez solicitarão reacções análogas em gerações futuras. Ou seja, a cultura é feita pêlos trolls e não por optimistas auto satisfeitos.

Um dos primeiros exemplos destas banhas da cobra que tivemos o prazer de observar encontra-se aqui.




Este caro personagem, dedica-se a tornar a Filosofia prática, sob o epíteto de que está a levar a Filosofia às massas. Ás crianças, a saber discursar, a saber desmontar o discurso contrário, etc.

"Levar a filosofia às pessoas, levar as pessoas a filosofar." É o mote.

Workshops pagos também.

Por discordarmos desta forma de instrumentalizar a Filosofia, começámos a trollar. Para o interveniente, exposto publicamente, trollar corresponde a traulitar. Revelou-se a insuficiente preparação científica para ensinar o que estava a ensinar (sob o assunto ‘Sócrates, por exemplo, desconhecia a existência de uma versão de Xenofonte) mas não faz mal porque o Tomás é apenas professor do ensino secundário. De Filosofia.

Existem centenas espalhados pelas redes sociais, que vendem formas de felicidade em que basta acreditar ser feliz e seguir os passos pagos da emancipação, seja por runas, cristais, repetição de mantras, reformulação a pé de cabra dos métodos de pensamento, etc.

A originalidade fez surgir uma miríade de géneros, que contudo se baseiam nos mesmos princípios do fundamentalismo, a adesão incondicional a determinado conjunto de dogmas, a rejeição do contraditório (muitas vezes sob a capa do ‘há vários caminhos, segue o que apraz’), e a classificação dos outros geralmente sob a categoria de tresmalhados.

Proliferou (em movimento que faz surgir os ‘punhetas’ nacionais) a exibição de Ted talks, palestras motivacionais, e uma reformulação da New Age tecnológica em contexto ultra capitalista. Surgem os reversos, parte do mesmo, movimentos comunitários de rejeição da economia vigente, geralmente caracterizados por pessoas com pouca preocupação na aparência, mas igualmente motivados na rejeição do discurso oposto.

Tona-se assim a nossa sociedade no oposto daquilo que pretende mostrar que é, a sociedade do diálogo.

III

Gostaria de deixar aqui dois exemplos do que se afirma, deste fundamentalismo optimista (que é uma cristalização conservadora, e que a nosso ver embora bem intencionada pelas participantes, apenas contribui para o estupor que faz lei nos dias de hoje) e que podem ser consultados, nada ironicamente, no órgão de propaganda Expresso – www.expresso.pt

Ana Gil Campos


e


Ana Santiago


O Expresso, propriedade da Impresa, é um órgão de comunicação social privado. O senhor Balsemão escolhe bem entender quem participa no mesmo, desde o divisionista e divisionário Daniel Oliveira, a Rui Ramos e seu protegido, Henrique Raposo.

A escolha dos elementos que têm espaço de atenção, além de um acto político e ideológico, compõe o livro de estilo do ‘jornal’.

Várias vezes Rui Ramos enviesa ideologicamente a sua visão da História de Portugal, especialmente sobre a do Estado Novo, o que para um historiador é polémico. Polémico tenta ser Henrique Raposo, pescado na blogosfera, como alguns secretários de estado do actual governo, por bons serviços e completo arrepio de método científico.

O Expresso sem surpresa deve ser considerado portanto um órgão de propaganda, como os existem também à esquerda.

É neste sentido instrumental que devemos encarar as Anas, Ana Gil Campos, e Ana Santiago, pois elas fazem parte duma constelação destinada a fazer propaganda. Quer disso estejam conscientes ou não. Repito, que as uso como exemplo sem nada contra elas, e apenas escolho uma parcela do que defendem para análise por causa do conteúdo do texto em questão.

Ana Gil Campos, de novo uma bracarense, tem no Expresso um espaço mediático denominado ‘As aventuras de uma empreendedora’ cujo maior empreendimento é escrever como freelancer, maneira pomposa de dizer que lhe pagam para dizer umas coisas num jornal, sendo ela a patroa de si mesma… (?)

Escreve no Exame/Expresso desde 2009 e a sua qualidade leva-a a estender a solicitação literária, que a partir de 2011 se estende à revista Exame, também de Balsemão.

O seu site é cuidado, a escolha de imagens infalível e merecedora de atenção. Á vista desarmada o site é vocacionado para o público feminino, desde logo com a imagem de fundo de uma frágil mulher, a Ana, com meio pé num degrau de umas escadas que parecem simbolizar a progressão no progresso, passo a expressão. Mulher, com as perninhas à mostra, apostando numa simplicidade e parcimónia de meios cuja finalidade é a criação de uma empatia com o público, pois a leitora da Ana Gil Campos, é de certeza uma mulher com sensibilidade e escolaridade, ciosa da sua identidade e respeitadora dos seus próprios devaneios ou fantasias.

Todas as fotos são cuidadas, tratadas, o que se pretende é criar um contexto, as canetas escolhidas, as agendas, o portátil, a decorada chávena de chá, a parcimónia do seu lugar de escrita idealizado para passar a noção de que o conteúdo da cabeça de Ana é o mais importante, e a escrita de minissaia e salto alto é mais capaz de inspirar as complexas ideias expostas.

As fotos cândidas e honestas com olhar directo para a objectiva, ou com o olhar baixo e absorto em qualquer ponto distante visam o mesmo fim empático anteriormente citado, diz ‘Aqui, apenas eu, mulher.’ A que se somam outras tantas imagens só com uma palavra, como por exemplo ‘voz’, como se uma palavra encerrasse todo um universo de significado, que abstractamente vale por si, descontextualizado de uma mensagem concreta.

Em quase todas as fotos a alusão à escrita, que é uma das coisas que ela mais gosta de fazer, é constante. Tem glamour ser-se escritora.

E o que escreve esta escritora?

Que conteúdos valiosos produz esta criativa freelancer, que a levam a avisar a navegação de potenciais copistas:

« O CONTEÚDO DESTE BLOG ESTÁ PROTEGIDO PELA INSPECÇÃO GERAL DAS ACTIVIDADES CULTURAIS. QUALQUER REPRODUÇÃO DOS CONTEÚDOS AQUI PRESENTES REQUER UMA AUTORIZAÇÃO PRÉVIA POR PARTE DA AUTORA.»

Á primeira vista lemos palavras como ‘autoconhecimento’, ‘criar oportunidades’, ‘motivação’, ‘progresso’, ‘humanidade’.

Afinal os desejos desta jovem, para o Natal.

O silogismo é bastante apreensível.

a)      O auto conhecimento é muito importante.

b)      Sem ele, não se cria bem novas oportunidades, nem boa motivação, nem bom progresso, nem boa humanidade.

c)       Actualmente somos usados e tratados como números

d)      Precisamos de beber a humanidade diariamente

e)      Quem nos governa deve ter atenção, porque também são números e usados, tal como ‘nós’

f)       A diferença é o poder, ‘eles’ podem, ainda que limitadamente, de implantar mais humanidade.

g)      Os que nos governam, só implantando mais humanidade, deixarão de ser mais um número ‘dentro do seu conjunto’.

Bastantes conceitos flutuam aqui.

Se tomarmos o autoconhecimento como introspecção, deduz-se que é o diálogo e conhecimento interior que cria as boas oportunidades, motivações e a boa humanidade.

Assim sendo, e de acordo com a ideia da autora, a função dos governantes, isto é, de implantar mais humanidade, é exortar as pessoas a autoconhecerem-se. Só o autoconhecimento me vai motivar a ser mais motivado e a conhecer-me mais e melhor. O Estado já cumpre essa função, sempre que abro uma carta das finanças, descubro que sou um devedor, ou sempre que sou exortado a emigrar descubro que sou indesejado, ou sempre que descubro que há outros que apenas por colarem cartazes têm emprego e eu não,  descubro que sou incompetente. Penso que é este tipo de autoconhecimento a que a Ana se refere. Cumprem assim os governantes essa função de implantar mais humanidade no nosso coração, com o poder que por ´nós’ lhes é investido.

Os governantes, só sendo assim, potenciadores do meu conhecimento de mim próprio, deixam de ser números, e passam a ser outra coisa qualquer, ‘dentro do seu conjunto’, que conjunto é este não sei.

Sei que a autora prossegue, aludindo à sorte que temos de nascer em Portugal, como se a guerra e seca no Darfur, a radioactividade em Fukushima, ou outra qualquer catástrofe fosse motivo de regozijo só porque não me calhou a mim. Sortudos somos.

Inclusive por privarmos com uma pensadora que percebeu que o mundo anda a ser construído ao contrário,  pois é a malta do ‘sistema’ que manda nos destinos do mundo, em vez dos humanos progressivos descritos na antropologia de Ana Campos. Trabalhar em prol da Humanidade, é o que propõe esta hegeliana, pois o conhecimento para ela, é o conhecimento de si, e o conhecimento de si é a humanidade. Logo quem se conhece a si mesmo é humano, quem não se conhece, tem de olhar mais vezes ao espelho…da introspecção.

Da antropologia, em meia dúzia de linhas passa à economia, pois a tarefa do autoconhecimento (para Ana, o h de ‘humanidade’ significa o mesmo se for maiúsculo ou minúsculo), é a criação de riqueza para todos. Ninguém contou a Ana que a riqueza já é criada e gerida, não chega é a ser distribuída, ninguém lhe contou sobre as crises de sobreprodução ou sobre os carteis, e ela continua a bater na tecla da criação de riqueza, sem saber que se queimou café em locomotivas ou que um quilograma de carne custa 600 litros de água.

Deixa uma exortação, às vezes desviamo-nos da humanidade, nós que fazemos parte dela, e somos mais que um número, tudo porque criticamos os outros por uma ignorância que não conseguimos ver (uma ignorância que conseguimos ver é ainda ignorância?) …e o que acontece? Ficamos intransigentes e egoístas. Só porque nos afastamos da ‘humanidade’ preconizada por Ana. Nada tem a ver com a distribuição de riqueza, digo eu.

Mas não nos preocupemos, afastamo-nos da humanidade, mas faz parte de sermos humanos.

Um pouco como se nos tornássemos um cadinho marcianos, isso ainda era sermos humanos.

Mas isto apenas se através da empatia e do esforço de compreensão nos colocarmos no coração do outro, perceber o outro, colocarmo-nos nos seus sapatos. Isto é sermos humanos.

Mas antes, durante ou depois de nos auto conhecermos?

Conseguimos fazer as duas coisas ao mesmo tempo? Conhecermo-nos a nós próprios e colocarmo-nos na retina e no coração do outro? Pobre Rousseau.

Em outro texto, «Progresso, do verdadeiro», ficamos a saber que o trajecto não é fácil, o progresso não vem ter connosco.

Há competição, e uma pequena vitória sobre os outros é sinal de contentamento moderado.

No entanto progredir é um processo autotélico, em que o resultado não é o mais importante, mas sim a progressão. Se a progressão é um movimento, para onde progride o progresso?

Para Ana o progresso progride para progredir, divorciado do resultado, logo, o progresso é progredir. Mas progredir com uma causa maior, porque progredir sem uma causa maior é um retrocesso.

Dirá a Ana que o resultado do progresso é o que cada um entender, mas se só nos realizamos se encontramos a realização naquilo que nos leva ao progresso, mas não naquilo que nos leva ao progresso.

Cito:« O verdadeiro progresso é a concretização daquilo que se vai construindo aos poucos no desejo da evolução, da nossa e dos outros, que, quando acontece, parece um sonho muito maior do que aquele que conseguíamos imaginar. Para que o progresso nos realize, temos de encontrar a realização naquilo que nos pode levar até ele e não no fim em si, senão seremos, certamente, sofredores crónicos que experimentamos na vida raros momentos de felicidade. »


Aqui

Ou seja e exemplificando, se eu tiro realização no acto de comer salsichas, devo tirar realização não da degustação das salsichas, mas na contribuição que a ingestão de salsichas tem para o meu progresso, que não é um progresso definido, como melhorar alguma faceta concreta na minha personalidade, mas é um progresso lento e conquistado, no progresso de progredir.

Se o leitor se sente confuso, não se sinta mal, pois só estará confuso no caminho da confusão.

Poderíamos continuar por todos os textos, ou quase todos, com a certeza de que tornaríamos mais pesado ainda o trabalho de análise de uma prosa sem qualquer preocupação com a explicação do que diz, ou com integridade lógica do conteúdo.

Dois motivos parecem contribuir para isto, a popularidade, e a capacidade.

Popularidade porque estes textos são vendidos por uma escriba freelancer, para serem lidos num órgão de propaganda, e portanto têm de ser assépticos, sem arestas, e curtos, mas deixar a dose de esperança, optimismo e truques fáceis, que sempre se retiram do discurso moralista de alguém que acha que sabe do que está a falar.

Na minha opinião, esta prosa de dondoca, não tem a mínima preocupação com um conteúdo, com problematização de temas, e de assuntos. Visa ao invés, através de uma estética imagética, e aluada, dar voz a todas aquelas e aqueles, que desiludidos com a eficácia da sua acção no rela, se resignam com uma fuga para uma pseudo espiritualidade, que supostamente fará diferença no mundo, pois só no acto de progressão em que todos progredimos para ser bonzinhos, parece haver hipótese de como por artes de magia resolver os problemas da ‘humanidade’.

Consta certo episódio de um soldado na Batalha de Estalinegrado, ter desarmado um ninho de metralhadoras só pela força do pensamento positivo e do seu auto conhecimento.

Ana Santiago, é de calibre diferente.

Apesar de também vir da Universidade do Minho (relações públicas) e dar aulas, no afamado Instituto Superior de Espinho, instituição privada cuja finalidade é sacar propinas da formação para o turismo a quem as quiser pagar.

Em vez de um toque de cetim rumo ao quimérico, coloca de fora as garras de pompom e aponta ao mercado empresarial, das relações públicas.

Faz parte dos coach profissionais, que são aquelas pessoas que ganham a vida a ensinar os outros a viver, ou melhor, que ajudam os outros a descobrir o que de melhor podem revelar de si. Lembra-se do auto conhecimento de Ana Campos?

A Ana Santiago vai mais adiantada, publica livro e tudo, onde ensina a descobrir o verdadeiro eu, pois como coach e motivadora ela sabe onde anda o verdadeiro eu dos outros.

Ajuda a assumir o comando da nossa vida e a realizar os nossos sonhos, a projectar uma imagem como deve de ser, a relacionarmo-nos, gerir a carreira e muito mais.

Deduzo que a Ana Santiago é uma daquelas pessoas abençoadas com dotes visionários acima da média, e com efeito semelhante à cocaína, com ela tudo se resolve.

O espaço que ocupa no Expresso, (VIPP – valorização da Imagem Pessoal e Profissional) é um tesouro analítico.

Ficamo-nos pelo texto acerca dos ladrões de sonhos, aqueles que parece que nos dão com uma tábua nas costas.

Apela ao hipocondríaco medo de uma classe média envernizada, que por ignorância ou decrepitude decorrente do conforto, desconfia da própria sombra e tudo faz para proteger o santuário do seu mundo asséptico.

Ficamos a saber que temos ladrões fora de nós e dentro de nós. Fora de nós é óbvio, basta consultar isto.

Os que estão dentro de nós são as chamadas limiting beliefs de qualquer aprendiz de Programação Neuro Linguística.

Segundo Ana Santiago, há forma de dar a volta à situação! É tudo uma questão de método.

Basta definirmos os nossos sonhos, desde que sejam realistas (indago se sonhos realistas não devem ser designados como ‘objectivos’… se sonho partilhar o leito com Helena de Tróia, isso não passa de um sonho, mas se ele é realizável, por exemplo copular com a próxima miss Portugal, é realista, é apenas um objectivo).

Definimos os sonhos realistas, parece uma contradição dos termos mas só para o olhar incauto, e traçamos um plano para a sua concretização.

Amealhamos as condições que o possibilitem.

Tiramos quem nos possa mijar na parada, dar com uma tábua nas costas, ou roubar os sonhos, do caminho.

E toca de executar o nosso plano, calibrando-o à medida da viagem, até ao objectivo, que segundo Ana Gil Campos, não é o mais importante.

Ou seja, sonhamos, planeamos, limpamos os sabotadores e cumprimos. Fico de facto com uma dúvida, sobre qual é o passo em que quem não cumpre os seus sonhos falha, e tenha de recorrer a Ana Santiago.

Imagino que muita gente não sonha sonhos realistas, ou nem se permita sonhar. Ou procrastine uma qualquer tarefa ou planeamento, aprazível ou não, há quem falhe em traçar planos para obter algo que realmente quer e depois tenha de recorrer a auto ajuda externa.

Muita gente não consegue identificar os ladrões de sonhos, e por isso não atinge o que realmente quer. Há também quem não entre em acção, ou ajuste o plano, e se contente com tremoços quando o porco não facilita as salsichas.

Mas se lermos bem e sem tentativas de humor, o que é proposto, há algo que não seja óbvio? E que seja mais elaborado que os apelos à coragem e determinação?

Ana Santiago é mais um ‘apóstolo’ da legião de optimistas abnegados. A simplicidade infantil do que propõe adapta-se bem ao target de leitores do Expresso.

Espera-se ver nestes motivadores, algo de verdadeiro, isto é obstáculos e respectivas superações no processo que falha, e todos falhamos o que nos propomos. Não depende só de nós. Mas estes vendedores de banha da cobra, apenas variam o embrulho, bem espremido, opino que nada ou pouco se aproveita. Batem na mesma tecla da abnegação, bater punho, etc.

E têm tempo de antena. Como este texto já vai longo e ninguém o vai ler também por isso, despeço-me com a parte de poema que Ana santiago não citou da ‘Pedra Filosofal’ :

« como bola colorida

entre as mãos de uma criança.»

É isso que estas crianças fazem, brincam com bolas coloridas, a que acharam graça.


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A gaiola enferrujada

1/5/2014

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Parece que a espécie de Presidente da República que Portugal tem, em 2013, como representante máximo da nação, chefe das forças armadas, garante dos bons funcionamentos institucionais, senhor Aníbal Cavaco Silva, presidente de 30% dos portugueses, tem uma longa lista de afirmações sobre a diáspora portuguesa, das quais salientamos:

2006:

-«Quero dirigir uma mensagem particular aos portugueses que vivem e trabalham no estrangeiro (…)um aumento da competitividade da economia, num combate contra as desigualdades e promoção da qualidade de vida e inclusão social»



2011:

-"São frequentes as queixas dos nossos compatriotas, motivados para investirem em Portugal, de que os seus esforços esbarram com regras incompreensíveis, tempos de espera inaceitáveis, e tratamentos inadequados para quem pretende apostar em criar emprego e prosperidade no seu país (…) a sociedade portuguesa como um todo que terá de interiorizar a oportunidade decorrente do potencial empreendedor e de criação de riqueza da diáspora lusitana".

-"Todos não seremos demais para mobilizar esse enorme capital social que a diáspora portuguesa representa. Como já afirmei antes, mobilizar os seus recursos terá, inevitavelmente, de se tornar uma prioridade nacional"

-"Portugal precisa de trabalho, trabalho, muito trabalho".



2013

- «Portugal tem de ser capaz de aproveitar, de tirar partido, das potencialidades desta nova diáspora, como fazem outros países. Estudámos outros casos, como a Irlanda. Este Conselho (da Diáspora Portuguesa) surgiu como resposta a um repto que lancei, no sentido de mais vozes portugueses se juntarem às vozes de políticos e diplomatas para projetar Portugal no estrangeiro pela positiva e contribuir para corrigir alguma desinformação que existe sobre o nosso país e assim ajudar a melhorar credibilidade do país e difundir as suas potencialidades»

Manifesta o desejo de que os portugueses «além da ligação afetiva, tenham agora uma ligação mais empenhada em casos mais concretos para ajudar ao desenvolvimento do país».

- «Temos aqui um grupo de excelência de portugueses que exercem a sua atividade no estrangeiro, em diversas áreas, na economia, nas empresas, na cultura, na arte na cidadania, que ganharam uma projeção através do seu mérito, da sua experiência, e são altamente considerados. Demonstra bem a evolução que teve a nossa diáspora nas últimas décadas, no reforço da qualificação»

- «Espero que não estranhem que no atual contexto do nosso país eu apele a todos que contribuam para o desígnio maior de Portugal neste momento que é o relançamento da economia e o combate ao desemprego, ao mesmo tempo que tentamos tão rapidamente quanto possível reduzir os desequilíbrios das nossas contas públicas» além de acumularem a função de serem "embaixadores do Portugal real" que a malvada imprensa estrangeira representa o país de forma maledicente, afinal cabe ao escorraçado repor a justa imagem, ou nas palavras do presidente -"Corrijam, ponham os pontos nos ‘ís'"



Podíamos continuar com inúmeras outras ocasiões em que o nosso funcionário máximo, se referiu à ‘diáspora’.

Fiquemos por estas. Nelas podemos observar muitos ensinamentos.

Antes de mais, a nível linguístico. A manipulação da linguagem, ou melhor, como se diz hoje em dia, a optimização da comunicação e da imagem, transformou um verdadeiro êxodo, do torrão pátrio, da miséria, da pobreza, da desconsideração, que mereceria a qualquer político titular de responsabilidade na tutela, nos últimos 40 anos, a isolar-se num mosteiro e a não mostrar mais o seu rosto aos compatriotas, pois se um pedreiro falha a função quando o muro cai, se um engenheiro traça mal o traçado do IP5 e deve ser despedido, se um padeiro faz mau pão, se um qualquer profissional faz mal a sua profissão e não percebe ou não quer perceber tal, que se pode dizer de uma classe política que faz um tão bom trabalho que força à saída de centenas de milhar de cidadãos para o exterior?

Qual é o limite para o reconhecimento da incompetência, e da necessidade de um saneamento doloroso do regime republicano?

Não merece neste caso mais respeito, e não florear a realidade como sugere Cavaco Silva, e ao invés de chamar o perfume aventureiro de ‘diáspora’ chamar o êxodo em massa da mais formada geração portuguesa da História, de ‘Fuga’, ‘abandono’, via de desespero e abandono de navio que naufraga?

Este subterfúgio das palavras doces para enganar que ainda se fia em palavras, acolha a quem aprouver. Eu lamento, e sinto-me tão miserável, exasperado como os meus compatriotas que são forçados a sair para sobreviver e respirar, eu que não votei em nenhum partido dos que se podem considerar responsáveis, e que me encontro neste momento também a ponderar ter uma vida e filhos, sem ver que isso seja possível em Portugal.

Enquanto uns se banqueteiam e distribuem sermões por recepções e embaixadas, eu como sardinhas em lata, numa espiral de empobrecimento e miséria que eventualmente me levará a sair do meu país, que me custeou a formação, mas que mercê do seu apego à estrutura social senhorial, está a aniquilar o mais antigo país europeu.

Nas palavras do nosso presidente, uma ideia de fundo é patente. Dinheirinho. Já desde antes da crise imobiliária (2008), que Aníbal exorta às remessas de divisa dos expatriados. Liquidez, liquidez, dinheirinho nos bancos, para colocar a economia a bombar, mas parece que estes neo-escorraçados não caem na esparrela, vão e nada mandam, já não é o tuga que trabalha com a colher de pedreiro e a talocha para mandar patacos para a terrinha. Lamento apenas uma única coisa, o desalento que leva grande parte a amaldiçoar o país, o país não tem culpa nenhuma. Pessoalmente penso que como nação nos deslumbrámos com o ouro de Bruxelas e o eterno provincianismo, que culminou na manutenção e ascensão de novos actores nas mesmas estruturas de posse da propriedade e do sistema republicano. Para mim, o cancro é incurável, sem levar à morte do paciente, isto é da República Portuguesa nos moldes actuais.

Além do dinheirinho, Cavaco teme a imagem que Portugal tem lá fora, e não precisa de um pingo de vergonha para pedir aos escorraçados, para passarem custe o que custar, uma ideia de que temos feito grandes esforços, e que estamos a lutar, com talochas e colheres de pedreiro na mão, para inverter aquilo que planeámos a partir de 1986. A exortação parece-me tão ridícula como alguém num palco em teatro cheio, virado para os actores pedindo para fazerem pouco barulho para não acordar o público, que em sessão esgotada ainda decide se o presidente de costas voltadas desempenha um papel cómico ou trágico.

Muitos comentadores recebem e destilam propaganda, 24 horas por dia para justificar a esfíngica verborreia de alguém de quem sempre se vendeu a imagem de seriedade e sabedoria económica, afinal o Cavaquistão de fundos comunitários foi uma grande experiência de governação.

Pergunto-me se alguém algum dia comporá uma ópera ou um filme sobre esta absurda realidade.

Resta-me pegar no apelo de Aníbal Cavaco Silva, o segundo político com responsabilidades há mais tempo no poder, que os resultados do seu trabalho, trabalho, trabalho, estão aí.

II

Estive algum tempo para conseguir ver o afamado filme ‘ A Gaiola Dourada’ de Ruben Alves, filho de emigrantes portugueses.

O filme, agora que esmoreceu a atenção mediática, não foi uma surpresa, mas foi muito agradável. O Ruben conseguiu coloca-lo em levitação entre a comédia spaguetti, e o fado ladainho do esforçado emigrante que apenas serviria para a menor aceitação do filme.

Ficou-se por uma comédia de costumes que não chega a ser uma crítica de costumes, que só está acessível a uma obra de arte.

Digo isto sem negação do talento do realizador, mas baseado na minha convicção de que este é um assunto demasiado sério, o filme é um ultraje. Na minha opinião.

No filme os portugueses ‘principais’  são apresentados porteiros e mestres-de-obras, governantas e taxistas, muito trabalhadeiros e humildes. O contexto de fundo é a azáfama da vida burguesa, tolita como só pode ser a representação urbana da vida, pincelada com cores de plena integração do emigrante.

Os protagonistas, são serviçais, abnegados, e submissos em terra alheia, embora cordatos e respeitadores.

A aspiração à ascensão social revela-se no projecto de Lurdes, e dos dois bacalhaus, e no momento chave do filme, a revelação, na qual o casal se apercebe que todos conspiram para que fiquem porque precisam deles, numa rede de conveniências pessoais. Nesse momento Maria confessa o desgosto que tem com a sua instrumentalização, e com a indiferença dos indivíduos à sua entidade desde que ela continue a providenciar os apreciados serviços como sempre o fez. O português a queixar-se de ser usado.

O grito de Ipiranga luso não é um desejo de liberdade, mas o desabafo de um ressentimento longamente carregado, ilustrado pelo desejo de Maria em ir dizer à senhora Reichert todas as verdades que não disse ao longo dos anos, em que se esforçou por ser boa, enquadrada, útil, num jogo saloio de bola baixa para ter o meu ao fim do mês, e nem um obrigado me dão por isso.

Que português aparece retratado?

O português do país pobre, que vai ao hotel de luxo e leva a marmita de casa e a mini porque não aprecia a alta cozinha francesa, infeliz com o luxo e o requinte, mais em casa na humildade e comedimento. O português inseguro e bajulador, que se por um lado se apraz com o nascimento do neto em solo pátrio, por outro não se inibe de imitar a cozinha francesa para os convidados franceses Caillaux, com quem convive há 32 anos, para gáudio de uma filha complexada com a nacionalidade que partilha, e o filho com vergonha da profissão dos pais.

É o português que confunde Picasso com Peugeot, que diz ao filho para deixar os estudos e viver da bola. É o português que no trabalho censura e olha de soslaio José, se este se dá melhor com o patrão, ou seja é um português castrador e invejoso, especialmente se José veste ‘fato à patrão’, zombador da integração do compatriota, como se a mesma correspondesse à rejeição da origem comum.

É um tuga preocupado com o que dizem dele, com a imagem alheia, que só pensa no trabalho e que nem para si são bons, e até José quando o filho lhe diz que não quer fazer a mesma profissão que o pai, lhe responde que ainda bem, apesar de quer José quer Maria se sentirem com remorsos de maus serviços propositadamente prestados por vingança, não particularmente por brio, mas por não querer desiludir, isto é dar cabo da imagem, os outros, os ‘patrões’.

A pitada mais genial culmina com o Porsche Cayenne com atrelado atrás, por uma estrada rumo a Portugal, viatura que custa cerca de metade do que rende anualmente a herança de José, numa clara alusão à capacidade de gestão portuguesa. Porsche que será lavado na bica da propriedade vinícola dos donos, a quem a riqueza sobe à cabeça para comprar um carro de rico mas não para mandar os outros lavar o carro, agora que podem pagar.

Ruben retrata o portuguesinho, e não o português, pois não o conhece. E portanto considero o seu filme, como a maior prova daquilo que pretende expor ou denunciar, o complexo. Este filme é redutor e complexado, pejado de estereótipos, como o pastel de bacalhau, o fado para turistas, o tremoço engolido com casca, e a emotividade gestual que talvez encontre eco em Itália ou em alguma aldeia portuguesa apenas habitada por surdos-mudos.

Os franceses não são melhor representados, o patrão é um porreiraço que chantageia José com o despedimento dos outros portugueses, no intuito de ganhar uma obra, os franceses neste filme parecem uns atadinhos, incapazes de clarividência, desenrasco ou de resolverem os seus problemas, adoram vinho do Porto e meter os compatriotas no seu lugar.

O filme foi um sucesso. Projectou a imagem dos portugueses como Cavaco a pretende. Como Salazar a pretendia também, trabalhadeiros, honrados, humildes.

Nada se fala das agruras, da expulsão, dos sacrifícios, das noites de choro, dos regressos estivais revanchistas com altas viaturas e vivendas construídas com telha preta, nem da persistência do francês em terras nacionais e da língua de Camões em terras de Flaubert, apenas para diferenciar o falante.

É um bom filme. É um filme complexado, bom para nos deixar satisfeitos com nós próprios.

Os portuguesinhos burguesinhos podem continuar a achar bonacheirona esta diáspora, e a ignorar os 5 milhões de portugueses forçados a abandonar a sua terra. Os franceses podem continuar a alimentar os seus preconceitos, num ambiente parolo ditado pelas leis da economia e da má escolha política.

A intenção do filme é homenagear os portugueses. A de Cavaco será de resolver a coisa pelo melhor. Com tanta intenção boa, somos mesmo uns azarados.

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Doce celebração da clausura

12/26/2013

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I – Biologia debaixo dos bytes

O Facebook (doravante FB) é uma rede social em suporte informático que permite a interacção entre indivíduos, quer estes estejam organizados ou agrupados ou não. A sua pertinência actual reside na sua capacidade de ligar vários indivíduos de dispares proveniências e contextos, em torno de uma área consensual e supostamente neutra, o FB com o seu mural.

É considerado uma coisa boa, uma ferramenta de comunicação, e pouca gente há, que não o use. Quem o usa sente-se reconfortado por agregar num espaço ordenado e delimitado, a sua rede de conhecimentos e relações, uma espécie de ‘cliente de email’ de amigos. O amigo ou o conhecido estão à distância de um click de rato.

O FB é uma autêntica base de dados sobre pessoas, grupos, movimentos, instituições, etc. É uma base de dados que se autoactualiza para gáudio dos protectores da lei e ordem ou dos serviçais do ‘Big Brother’. Todos sabemos disso, em maior ou menor grau, e por mais patranhas que a comunicação social tente engendrar.

O FB não foi a primeira rede social, mas é até ao momento a mais bem sucedida, tendo entrado recentemente em bolsa e tudo. Capitaliza este sucesso em torno do seu formato, que se baseia em duas atitudes inatas do macaco homem, a) a curiosidade acerca dos ‘populares’ da tribo, e b) o conhecimento da tribo no geral.

Na primeira premissa que a antropogénese nos legou, há o mecanismo do ‘segue o líder’ e o da comparação em relação ao ‘sucesso’ no meio social.

Na segunda, o estabelecimento de alianças e ligações com outros elementos segue os padrões simiescos do comportamento da nossa especial espécie de primatas, observável em qualquer programa de vida animal.

A nossa tribo alargada é o ‘mundo’. O FB alia estas raízes do comportamento com o formato do livro de curso ou ‘yearbook’ que era uma espécie de almanaque em que as escolas americanas ou clubes de basebol registavam a passagem dos indivíduos em determinada fase da sua vida e percurso escolar.

Subjacente, a já conhecida dinâmica entre o ‘popular’ e o ‘looser’  (http://www.raistapartisse.com/5/post/2012/09/aguarela-chuva.html)

A dualidade entre vencedores e vencidos da vida numa espécie de catálogo precoce em jeito de adivinhação.

Este é o ‘yearbook’ que se transformou na época digital em face-book, com as fotos, os desabafos, as citações e toda a parafernália que só a banda larga agora permite.

A ideia de negócio foi sabiamente elaborada (ou copiada e comprada) por Zuckerberg, ainda estudante, colocando em suporte informático a humana e comezinha propriedade de querer actualizar o conhecimento de pessoas que fizeram de alguma forma parte da sua vida, no passado, que partilham o nosso presente e que constituem uma promessa potencial para o futuro.

Durante alguns anos, os meios de comunicação social promoveram esta rede com notícias do grupo cada vez maior de utilizadores, que correspondia à população país x ou z, ou de supostos dramas em torno da utilização do FB por famosos, comuns, empresas que despediam após saberem de pecados dos empregados (aqui), e outros casos relevantes.

Esta atenção mediática (partilhada com uma incompreensível veneração aos produtos da Apple) é perturbadora e recebe tons de actualidade tecno-sociológica, mas nada mais é que propaganda e tecnologia para analfabetos em tecnologia. Poderá ser o target almejado ou apenas desinformação.

II – A falha de amor-próprio

O FB é assim uma ferramenta ao mesmo tempo que uma falha de carácter de amor-próprio.

É uma plataforma de engate, meio de divulgação, de comunicação, mobilização, entre indivíduos, grupos homogéneos, em parte jornal, cartão-de-visita ou publicidade em massa.

É uma falha de amor-próprio e de carácter porque no íntimo, no nosso íntimo, a encoberto do anonimato não conseguimos evitar bisbilhotar a vida de outros, que tão facilmente nos facultam online parte dela.

 Seja para ajuizar do nosso grau de ‘sucesso’ seja apenas por curiosidade, há qualquer coisa nesta nossa curiosidade que cheira a falha de carácter. Dificil de definir, difícil de escapar, da vontade de saber dos outros que participaram na narrativa da nossa vida, como estão, se estão bem, como estão.

Em surdina porém se levantam duas questões.

Se a nossa curiosidade é genuína, porque é que a maior parte dos nossos amigos no nosso perfil são pessoas que não vimos, falamos há anos, apenas ali ficando em banho maria, medalhas desta nossa curiosidade, sem troca de palavras, só porque de certa forma temos receio de alienar alguém que fez parte do nosso passado?

Que pureza de amor filial é essa, que não teve intensidade suficiente para que fôssemos à procura destas pessoas que agora ao fim de tanto tempo são amigos ‘imprescindíveis’?

Pode-se dizer tal como quando se mete um pai ou uma mãe num lar decrépito, que ‘é a vida e o seu curso’? Há aqui qualquer coisa de esquizóide.

Pessoas importantes da nossa vida de quem perdemos contacto e que só agora através da comodidade do FB, retomamos na nossa vida, e do seu curso. Quem quer consegue, quem não quer, consegue desculpas?

Concedo a possível inexactidão do que aqui considero. Mas não se pode negar a sua pertinência.

Propagandeado, o FB é uma forma de unir amigos do mundo real que nunca o foram realmente, apenas amigos de circunstância. Só mantém amigos de circunstância quem por falha de carácter age na vida como rapace oportunista, e quem por falha de amor-próprio não ache merecer algo de melhor. Ambos unidos pela pobreza de espírito que asfixia qualquer intervalo reflexivo sobre o assunto.

III – Amizades de circunstância

Fomos amigos de circunstância quando nos conhecemos, convivemos em determinado espaço e tempo, e perpetuamos essa amizade de circunstância no FB em nome da memória das pessoas que éramos e já não somos, celebrando um tempo ido que nos carrega mais jovens por contraponto ao  tempo presente.

Fora o facto desta amizade de circunstância, a actualização da informação sobre as figuras que de alguma forma nos marcaram, revela o mecanismo interno profundo segundo o qual nos comparamos com os outros (de quem dizemos ser amigos) e ajuizamos sobre o decurso das suas vidas. Em parte e por isso, há uma grande preocupação em compor o ramalhete do nosso perfil, imagem visitável com agradáveis epitáfios, porque sabemos que outros virão bisbilhotar o nosso trajecto e ‘sucesso’.

Assim, a virtualidade facebookiana é uma rede de ficções que são compostas por fotos escolhidas a dedo, informação lisonjeira que em conjunto compõe a imagem de nós que queremos que os outros tenham, tecida com paciência de aranha chinesa.

Sob a ideia superficial de que apenas partilhamos a nossa vida (louca que não deixou aprofundar amizades) com os nossos amigos de circunstância, o que no fundo fazemos é vender uma imagem que tecemos, engolimos e projectamos de nós próprios.

O que fazemos é trocar a nossa ficção composta por aquilo que achamos que os outros vão achar de nós, e que por sua vez confirmará a nossos olhos, a ficção que criámos, num loop de feedback, num círculo vicioso neurótico, que deixa de fora como uma bota no glúteo, a tal vida real, a que se faz nos entretantos do que se tenta mostrar.

É certo que os nossos momentos menos bons ou rotineiros não interessam aos nossos amigos de circunstância a não ser que confirmem a imagem que queremos projectar, nem a banalidade da nossa vida agrada aos amigos e conhecidos mas pode ser usada como hino egóico à própria existência tentando mobilizar para a especialidade do seu umbigo, outros militantes que padecem das mesmas congeminações de uma vida cruel suplantada pêlos achaques infantis de ‘OMG fila para o café de meia hora’ ou ‘Entornei o café nas calças, que mais me vai acontecer hoje?!’, desabafos sobre o último jogo de bola, ou leituras elementares de acontecimentos políticos, celebrando uma noitada, almoçarada  ou ainda o clássico ‘So many bastards so few bullets’.

Isto serve o propósito duplo de angariar cumplicidades de quem se presta a estas celebrações egocêntricas denotadas sob o adjectivo ‘vida’, na fantasia colectiva elaborada a imensas mãos, de um mundo supostamente universal, onde a tirania de um chefe no trabalho provoca mais exasperação que o trabalho infantil envolvido nos gadgets que se dedilham para postar desabafos no mural à espera de compreensão e apoio nas pequeninas cruzadas.

As básicas indagações dadas como profundas cogitações metafísicas só porque saídas do amâgo do umbigo, assumem portanto ou uma genuína indagação por informação, ou uma interrogação retórica que visa somente suscitar comentários e empatias.

IV – Adro da emoção

O desabafo é libertado de várias maneiras, visa não só chamar atenção, como alertar para a pertinência ou sagacidade do emissor que escreve, cita, comenta ou comunica postando imagens, geralmente enunciando a incompetência alheia , feitios difíceis alheios, e castigo físico a condizer.

A frívola celebração pessoal assume uma miríade de formas, o que interessa é ser-se apercebido e valorizado, na virtualização online das mesmas formas de relacionamento social que se observam facilmente na ‘casa dos segredos’ ou em qualquer sitcom de gosto dúbio e falsas gargalhadas.

A celebração da frivolidade por vezes corresponde a uma certa disposição de espírito burguês e pouco elaborado, que visa acolher consideração por insuficiência endémica própria.

Quem tenta chamar atenção para a sua vida necessita de atenção, de se sentir especial, e acalenta no fundo a crença de que a sua vida ou não vale nada, ou em casos extremos que a sua vida merece mais atenção que a devida.

Estes propósitos encaixam como luva no formato do Facebook na medida em que servem a finalidade de mostrar, como em montra, da venda de nós próprios usando os outros como caixa-de-ressonância. Seja a imagem de uma nova tatuagem na pernoca, a cara de um filho feliz a comer algodão doce, um vídeo sobra a tropa/polícia/bombeiros (geralmente por militares, polícias ou bombeiros), de festas, estilos de vida, degraus da vida, happenings da Remax, em álbuns fotográficos que colam o individuo à peça de teatro que representa à espera das palmas.

A criação do nosso alter ego digital para consumo próprio e alheio, é a mais profunda manifestação da sociedade do espectáculo e da nossa transformação em produto fictício. O facebook é apenas mais uma das passerelles deste desfile.

O sujeito de copo de gin na mão em festas da ‘vida loca’ em perfil do linkedin aparece com respeitável fato de macaco azul ou fato de colarinho branco, afinal com o trabalho não se brinca, numa estonteante múltipla personalidade, que o transforma também, em si-próprio de circunstância.

Mesmo os que se esforçam por criar uma imagem ‘séria’, limpa, neutra, profissional, no  Facebook, ocasionalmente colocam fotos de um destino de sonho, ligações para artigos da ‘sua’ área, celebrando o martírio de uma seriedade grave que reveste o mundo deles e dos ingénuos restantes.

Os mesmos que celebram as virtudes familiares, através do diário fotográfico público, revelando todas as frívolas tragicomédias partilháveis empaticamente por outros semelhantes que navegam na mesma camada de superfície acerca das coisas, celebrando assim a comum zona de conforto, postam um retrato dos filhos de manhã a tomar o seu infantil banho, enquanto à tarde exigem mais controlo do flagelo da pedofilia. As definições de segurança da plataforma são fiáveis e por isso ninguém pode ver o que não se quer visto, a não ser o improvável amigo do amigo de circunstância da lista de 500 e tal de perfeitas condições mentais.

É no facebook que parcelas da nossa personalidade se relaciona com as parcelas de personalidades de outros.

Parcelas de personalidade relacionam-se com parcelas de personalidade de amigos de circunstância num mundo virtual e fruto da nossa fantasia paranóica. Esta é a realidade. E esta é a realidade defendida por quem leva tão a sério o seu mural. Sob o véu da normalidade escondem-se personalidades ocas ou com instrução deficiente, que andam no mundo por ver andar os outros, contentando-se com o mastigar do mesmo feno que todos os outros ruminam, encontrando na normalidade o conforto e a segurança que se lhes escapa de uma vida reflectida. Quem leva muito a sério as coisas que colocas ou comentas no seu mural, é sob este ponto de vista, e sob a capa de uma defesa de um espaço público da sua imagem, um ser neurótico e inseguro, que foge da cogitação interior e apenas deseja fazer de si e do que o rodeia aquilo que acha que os outros fazem ou acham que deve ser feito. É uma ‘maria vai com as outras’, um camaleão social que vingaria na tribo e no tecido social tribal, adaptando-se a todas as alianças e guerrilhas, mas nunca será um original, apenas uma caixa-de-ressonância, adaptado ao seu contexto, mas menos humanizado porque não digno de se dedicar à sua espiritualidade.

Ao bloquearem os outros que lhes trolam os perfis, os sérios, os respeitáveis, vão mantendo o mundo real da falsidade, ou da realidade falseada, ou da realidade limitada, marcando o ritmo de um voyerismo e exibicionismo que nos caracterizam a visão do mundo que se sucede a cada instante, no lar de córtex mamífero de seguir e imitar o líder, aspirar à liderança e adaptar-se à tribo.

No facebook a adaptação passa pelas referências à actualidade, à música, aos happenings, gadgets, numa rotação da roda do tempo que traz o mesmo sempre sob a capa do novo, o novo nada é senão a repetição do mesmo.

O mundo da actualidade não é senão a manifestação infantil e tagarela de pertença à tribo.

Tal como no futebol de massas nos sentimos pertença da tribo alargada lusitana, no facebook postamos para nos sentirmos actualizados e vistos como actuais pêlos nossos pares, por aquelas ficções que achamos que fizeram parte da nossa vida.

Procura-se o novo, o viral, o chocante, raramente alguém revela um pensamento parido na solitude reflexiva, ponderado e amadurecido, e além de aforismo insondável. Antes se prefere a citação os lugares comuns, de famosos ou pseudo famosos com frases motivacionais para a vida fora de contexto que passam por sabedoria.

V – as ciências da motivação

Funciona assim em parte o facebook como poderoso engodo para um simulacro de rede social genuína, auto actualizável, placebo para a solidão.

A motivação neuro linguística, o optimismo abnegado e autista, que esteia as opções de muitas pessoas que furiosamente se dedicam a ser felizes, e partilham com os outros os seixos que pavimentaram o seu caminho para o sucesso, como se os outros não soubessem ser felizes, ou como se apenas existisse um caminho para a felicidade, que passa pelas cãibras nos lábios de manter à força um sorriso constante.

Prolifera um acervo assustador de máximas ou motes imbecis e genéricos, e este optimismo abnegado mascarado de postura de bem com a vida, acrítico, extirpa ou trata como criança qualquer parcela de ser humano virtual, assolada pela dúvida ou pela certeza do engodo que exige pagamento pelo meio do caminho de seixos, extirpa bloqueando, pois este negativo vem aqui dar cabo das energias. Positivas.

O ‘The secret’ o Dale Carnegie e outros são mantras ideológicos que dispensam o espírito crítico, em arraiais de franchisings norte americanos de sistemas de sucesso e felicidade, para os quais é necessário ordenar a mente e seguir certos métodos e seminários.

Como em tudo então se revela o facebook, como a melhor ferramenta de venda, de uma imagem da ‘vida’. De um conjunto de princípios que constituem uma mundividência. Uma superestrutura, (da qual os participantes dispensam a troca de ideias com os ‘opositores’, abnegados a ser felizes), reverenciando a citação por mais estúpida que seja só porque reflecte uma crença interior própria.

VI – Os habitantes

O facebook enquanto suposto espaço de liberdade comunicativa, atrai vários tipos de transeuntes.

Organizá-los, enumerá-los é inglório e inútil. Mas podemos enquadrá-los de acordo com os seus humores e intenções.

Há os positivos e os negativos.

Quer num pólo quer noutro, há diversos tons e gradações. No lado positivo, começamos por pessoas que usam o fb de forma neutra isto é, postam pouco, e usam-no apenas como agenda de contactos que precisem contactar, são autênticas miragens e sabemos que existem e estão vivos através daqueles que os tagam em fotos.

Depois dos neutros temos os sérios que usam o fb como algo de muito sério e profissional, é o daddy responsável ou a empregada de escritório que veste fato. Postam pouco, sobre assuntos monótonos que julgam perceber e dominar, e a sua crença de que interessam estes assuntos aos outros só tem par com a gravidade e fatalismo dos seus juízos quando chamados a emitir opinião sobre o que pensam saber. Geralmente, se são economistas ou fiscalistas, no zeitgeist presente, tornam-se em sarcásticos oráculos cujas sentenças provam apodicticamente que a Economia e a Fiscalidade, são mesmo ciências exactas. Os mais grunhos dão-se inclusive ao trabalho de emitir sentenças e soluções para Portugal, que não anda para a frente por causa de pessoas que não pensam como eles, e não veneram certas escolas de pensamento económico.

Depois temos a grande maioria de utilizadores, que posta um pouco de tudo, especialmente das pequenas coisas que se passam na sua vida privada, revelando uma necessidade de atenção, e de trazer normalidade e ‘invejabilidade’ para a sua existência, postando a sua ‘vida loca’ de almoços em horário laboral, férias em destinos paradisíacos e noitadas em sítios da moda, numa panóplia de exibicionismo que mostre aos outros que o sujeito em questão é bem-sucedido e sabe viver a vida, por contraposição às formigas a quem só resta invejar.

Outras tagarelices são a atracção para a vida corrente, como as fotos sobre sushi caseiro, a lareira acesa, abraçados aos filhos como em álbum de família, etc., na celebração da classe média aburguesada que a si mesma se celebra. Múltipla e variada, como só a classe média consegue ser.

Gradualmente até ao pólo negativo encontramos aqueles que usam o fb como meio de divulgação, de produtos motivacionais, esquemas de negócio fácil, esquemas ponzi, blogs, grupos, bandas musicais, etc. …

Temos os gozões que usam o facebook para postar fotos chocantes ou irónicas, links caricatos, numa demonstração que não levam o espaço demasiado a sério, mas ainda assim respeitam quem o frequenta, apesar de sentirem ser contra o ‘sistema’.

No espectro diametralmente oposto, temos os gozões e os trolls. Os gozões gozam pela negativa, isto é provocando e inflamando para se sentirem importantes.

Como os outros já abordados, utilizam o próximo como meio para obter algo.

O chamado troll, é uma criatura irritante e profusamente bloqueada, que provoca e alimenta-se de onde quer que haja uma discussão. Na maior parte das vezes é aquele tipo de pessoa que pressente a falsidade da rede social, e sente-se desadequado do mundo de Pollyanna em que observa os outros. Não perde uma ocasião para inflamar ou provocar, o que lhe causa ostracismo e até inimizades no mundo real daqueles que levam o facebook demasiado a sério.

Não acredita e não respeita a sacralidade do espaço desta imagem pública que considera falsa logo passível de gozo, e desafio. Ofende-se com a gratuidade dos bloqueios e com a sua desadequação da era digital, o que só lhe aumenta o amargor e a vontade de gozar com os cordeiros que bezerram.

Onde quer que intervenha é  mal visto. A sua energia revolucionária é negativa e sobe ou desce sempre com o grau de comentários e posts polidos e assexuados que lê, deitando-se sozinho à noite com raiva dos broncos que celebram a futilidade para gáudio comum, acossado pela indiferença com que o brindam e convicto de que como Sócrates apenas luta por um pouco mais de espinha e autenticidade. Sócrates era um troll.

Como rede social, o facebook é uma experiência de pensamento fascinante. Os seus habitantes geralmente consideram o ‘seu’ perfil ficcionado como um espaço de imagem pública que concedem aos outros para se relacionarem, e que portanto a sua imagem está em jogo nesse espaço virtual, mesmo que seja uma imagem de faz de conta na medida em que não passa de uma dramatis personae elaborada para sacar dos outros alguma coisa que alicia ao sujeito… que se considera dono do perfil de uma plataforma que não lhe pertence, e para a qual é chamado a participar para ser espiado. Defendem esta imagem desejada de modo viril, com o único poder digital que lhes resta, retirar o outro da sua esfera de amizade, limpar as energias no mural, e continuar o prolongamento da fábula.

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Auto racismo II

12/4/2013

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Emerso nesta ideia de que os portugueses são racistas, (não suportam portugueses), tenho vogado pelas ruas tentando estar sempre atento a esta ditadura dos loiros, incógnita para os mesmos.
Que é feito dos morenos? Quem, além de Camões, disse que o povo vão aprecia os nórdicos traços e não os negros cabelos e os bonitos olhos castanhos?

Mas não é o povo que pendura cartazes.Nem é o povo que é loiro de olho azul. Esta ideia toda sai da mão dos publicitários que fazem muito mais que comprar anúncios de fora ou imagens de outros países, eles fazem anúncios cá e com malta de cá, curioso é que proporcionalmente os morenos estejam tão mal representados neste espécie de imagética para as massas.

No cartaz acima temos uma intenção de propaganda política aliada a um desejo de mobilização e pensamento positivo.
Num país urbanísticamente caótico, colocar uma criança num acto de propaganda é de mau gosto, acima de tudo quando se diz que Albergaria-a-Velha é nova e foi feita a pensar em ti (jovem alfabetizado).
Vale pela intenção da imagem pois a nível de uma desconstrução, é uma anedota, desde logo pela associação de uma Junta de Freguesia a um plano de potenciação da juventude, nado e criado por certo em 4 anos de potencial mandato.  A utilização de uma criança e de uma imagem de dinamismo em prol de crianças, é mensagem que se destina a adultos, a criança é nos dias de hoje o veículo da anuência bovina das populações, um filão de ouro explorado até à exaustão pela propaganda, no qual o silogismo é simples, o apego das pessoas às suas crianças é tal que estão dispostas a qualquer sacrifício, ACRITICAMENTE, e apenas porque sim.
A criança é a coqueluche social, onde até já uma junta do interior manipula para programa eleitoral.

Tudo com crianças à nossa volta, tudo para elas, a sociedade tornou-se esquizóide, a idealização da pureza da criança, e da naturalidade da sua tirania, serve de modelo para adultos, a publicidade tenta também que nós sejamos crianças, de modo a que sejamos levados por caprichos e emoções ao invés de pensamento ponderado.
A emoção e o apelo a ela é outra das ferramentas da propaganda organizada, o ser que se move por certo conceito de 'emoção' dispensa o exercício reflexivo.
Logo é tão bom ou melhor cliente que o pai analfabeto funcional que gosta de se pensar no mundo leibniziano em que as crianças são o centro de tudo, e a atmosfera de
Pollyanna , na qual este ar é inspirado sem pensar muito nisso.
Note-se no cabelinho loiro do petiz.
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Esta última foto foi tirada num dos sucateiros, perdão, centros de tratamento de resíduos da região de Lisboa. Como a que a precede, destacamos dois elementos, as crianças como símbolo de um mundo melhor ou de algo porque lutar na vida de merda do dia a dia, e os tais traços teutónicos omnipresentes neste país próximo de África.
Deixamos aqui o testemunho, a ele voltaremos oportunamente.
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A foto acima foi tirada numa sapataria de bairro. De notar o controlo internacional do mercado de fotos, por parte dos setentrionais, pois até no bairro mais recôndito aparece a figura de uma loiraça a apelar para a adesão ao cartão exclusivo da sapataria de bairro.
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